Publicado em 18/08/2016 às 14h10.

Desafios diários de sobrevivência

A ginástica financeira dos assalariados requer cuidados que vão desde a racionalidade desses parcos recursos a práticas cotidianas de atenção com todo o ambiente

Liliana Peixinho

 

Foto: Site This Big City
Foto: Site This Big City

 

Tenho acompanhado, de perto, o desafio de um casal de idosos em tentar sobreviver com um salário mínimo de renda mensal para comprar remédios, pagar contas de água e luz, alimentação, e ainda tentar ajudar alguns agregados familiares, desempregados – seja com um prato de comida aqui, um quilo de café e açúcar acolá – num sistema de labuta diária pesada, para tentar viver, minimamente, com dignidade e saúde. Não é justo para quem trabalhou por mais de 80 anos de vida. Mas é real. E o exemplo se espalha, Brasil afora.

Num país moralmente destroçado, economicamente arrasado, politicamente desacreditado, e socialmente desajustado, os contrastes sociais são indignantes entre quem não tem quase nada e tenta se manter fiel a princípios e valores como trabalho árduo, honestidade, coragem para enfrentar desafios e compromisso com o bem-estar coletivo e solidário; e entre quem ostenta, desperdiça, esbanja, faz de conta que trabalha, e tem olhar raso, egoísta, sobre problemas profundos. É triste, vergonhoso, indecente, criminoso mesmo, ver tios, pais e avós estressados, cansados de lutar, doentes, em delírios de vida injusta, com direitos que tardam a chegar. É cada dia mais visível os hiatos entre direito e dever, vida e morte, saúde e doença, discurso e prática, amor e cuidado. Problemas sérios  que precisam de ajustes, e faz é tempo.

Não são políticas e ações apressadas, em visão de aparências estéticas sobre roupas, cabelos, calçados e perfumes, por exemplo, que mostram o estado de vida de uma pessoa. O Brasil é um dos países que mais gastam em produtos de beleza, roupas, sapatos… É também o país dos desdendatos, dos desnutridos, dos que comem apressados, sem mastigar, dos que dormem mal, dos que usam medicamentos tarja preta de forma massiva e parece ser normal, aceitável, porque foi receitado por um médico e isso basta. Precisamos entender, acompanhar e valorizar o que de mais sagrado a vida precisa para nos sentirmos bem dispostos, com desejo, vontade e compromisso de trabalhar, em executar tarefas domésticas, por exemplo, não como para nos livrarmos de algo, mas como necessidade primordial para nos prevenirmos de doenças, acidentes, e um sem-fim de problemas que se avolumam, de geração a geração, por simples falta de educação, de informação, ações propulsoras de um bem-viver, simples, limpo, seguro, harmonioso.

Como especialista, apaixonada e comprometida com a construção de cadeias produtivas harmoniosas de ponta a ponta, do consumo ao descarte, não tem sido fácil evitar que se suje, para não ter que se perder tempo e energia em limpar, depois. Gosto de citar o exemplo da avó de uma amiga que diz assim: “Se você está comendo numa mesa e algo cai sobre ela, por que passar a mão e jogar aquele resíduo ao chão, se pode limpar ali mesmo, com um pano e a própria mão como aparador, de uma vez só? Por que ter dois trabalhos em limpar a mesa, jogar ao chão para depois ter que varrer e até passar um pano? Pois, se for arroz, por exemplo, alguem pisa e a sujeira gruda, não sai com uma vassoura!”. São simples ações cotidianas preventivas que, se levadas a sério e formos educados de verdade, com rigor, nem mesmo um grão de arroz cairia do prato sobre a mesa, quanto mais da mesa ao chão. Parece pouca coisa, besteira, mas são sujeiras aqui e ali, que demandam tempo, recursos, estresse e outras doenças características da falta de educação doméstica e correria para lugar nenhum.

 

Desperdício e descuido tem tudo a ver

com desafios para o bem-estar de vida

 

A ginástica financeira dos assalariados mínimos requer cuidados que vão desde a racionalidade desses parcos recursos, a costumes e práticas cotidianas de cuidado com todo o ambiente. A velha história de se dizer: “Joga aí, ou ali, que depois eu pego”. Ou, “deixa aí, que depois eu lavo”, gestos nocivos que se repetem no dia a dia e que acabam por acumular sujeiras, problemas, doenças, desarmonia no ambiente onde a vida se desenvolve.

Tenho fotografado verdadeiros monturos de lixo, ao lado de paredes de casas de esquinas, Bahia adentro, Brasil afora. São gestos assim: uma latinha hoje, um saquinho de plástico amanhã, uma vasilha mal lavada, ou quebrada, depois de amanhã, que, em pouco tempo, uma montanha de resíduos, descuidados, causam prejuizo à saúde, da casa e da comunidade onde se localiza.

Desperdício e descuido, com si próprio, e com as coisas que se usa no dia a dia, tem tudo a ver com desafios para o bem-estar de vida; poucos recursos, prevenção e harmonia. Vejamos este exemplo: visitei um casa, aliás um lar,numa zona rural da Bahia, onde uma família numerosa, mais de oito pessoas, entre idosos, jovens e crianças, vivem muito mal, é claro, com renda de um salário mínimo. Mas tudo na casa é harmonia, compartilhamento, divisão de tarefas e compromisso de cada um, com o todo, e com todos. Dessa forma, não se paga a terceiros por serviços, como lavar roupas, pratos e limpeza da casa. Tudo o que se cozinha é consumido, sem desperdício. Todos têm sempre alguma atividade a executar a partir do raiar do dia, até o início da noite. O estudo, a leitura, as conversas em roda familiar, as brincadeiras coletivas , estão sempre como prioridade, sem o vício nefasto de ficar em frente à TV grande parte do tempo, como um robô, programado para não piscar o olho, em direção à tela.

Dessa forma, um cuida do outro, todos se cuidam harmoniosamente, cada um sabe o que é mais importante priorizar em adquirir para que, de forma simples, humilde, decente e limpa a vida se desenvolva como cada um merece. E como informação é moeda de valor,  o que falta em dinheiro, sobra em criatividade, coragem e dignidade para viver com invenção, criação e disposição em ser livre, em caminhos limpos, sem preocupação em não ter que se pagar o que não se pode ter. É aquela velha diferença entre ter e ser; desejo e necessidade; coragem e acomodação; fazer com cuidado, e fazer de conta que faz, só para constar.

Em tempos de desafios de vida há que cuidarmos uns dos ouros, em amor e entrega d’alma, coração e cérebro, conectados a valores como Ubuntu, Ecossocialismo e Teko Porá, filosofias de vidas onde menos, sempre será mais. Porque a vida é para se sentir profundo, e não para se fazer de conta.

Liliana Peixinho

Liliana Peixinho é jornalista, ativista social, integrante de diversos grupos de luta e defesa de direitos humanos. Fundadora e coordenadora de mídias livres como: Reaja – Rede Ativista de Jornalismo e Ambiente, Mídia Orgânica, O Outro no Eu, Catadora de Sonhos, Movimento AMA – Amigos do Meio Ambiente, RAMA -Rede de Articulação e Mobilização em Comunicação.

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