Antonio Jorge Ferreira Melo é coronel da reserva da PMBA, professor e coordenador do Curso de Direito do Centro Universitário Estácio da Bahia e docente da Academia de Polícia Militar.
O caminho errado
A morte do soldado Hélio Vieira não motivaria um decreto de luto oficial, em todo o país, se ele não estivesse a serviço da Força Nacional
Nem mesmo o grande esquema de segurança montado no Rio de Janeiro, durante a realização dos Jogos Olímpicos, consegue esconder os graves problemas enfrentados pelo país e, particularmente, pela maioria das grandes cidades brasileiras, quando o assunto é segurança pública: a violência.
Sem negar o seu caráter endêmico no cenário nacional, inegavelmente, o quadro fica ainda mais sério nas favelas e periferias cariocas, onde o tráfico de drogas exerce um controle interno e paralelo, com a criminalidade predominando sobre a força das leis estatais, banalizando a violência e impondo suas regras pelo poder das armas a todos que ali residem ou transitam, como se fossem uma espécie de território estrangeiro encravado em nosso país.
Nesse contexto, numa repetição de acontecimentos que há muito confirmam o paradigma de uma territorialidade desvinculada da ordem estatal, na última quarta-feira (10), uma viatura da Força Nacional foi atacada com tiros de fuzil, ao entrar por engano em uma localidade conhecida como Boca do Papai, na Vila do João, no Complexo da Maré, Zona Norte do Rio, resultando na morte do soldado da PM de Roraima Hélio Vieira Andrade que dirigia o veículo policial.
Esse trágico episódio, ao expor de forma contundente as consequências da incapacidade do Estado de exercer a sua “soberania” sobre determinadas zonas da cidade sede dos Jogos Olímpicos, deixa claro, mais uma vez, os equívocos históricos das nossas políticas públicas de segurança.
A consciência dessa incapacidade de exercer a “soberania” e da consequente perda do monopólio do uso da força em partes do seu território já está tão arraigada na cúpula do Estado brasileiro que o próprio ministro da Defesa, autoridade a que está subordinada a Força Nacional de Segurança Pública e as Forças Armadas, seguindo a tradicional lógica da culpabilização, em busca do sempre confortável efeito vacina, praticamente considerou o fato um erro de exclusiva responsabilidade dos policiais que, inadvertidamente, entraram com a viatura numa favela controlada pelo tráfico, ao pegarem o caminho errado.
A organização espacial das favelas
dificulta a ação das forças policiais
Polêmicas à parte, a ciosa autoridade governamental tratou de fugir do processo de responsabilização que, além de impedir a minimização do fato da própria existência dessas áreas sem lei, também levantaria, no mínimo, questionamentos a respeito de quem seria, em última análise, o responsável pelo emprego do efetivo sob suas ordens, sem o adequado e necessário conhecimento do terreno onde se desenvolvem as operações policiais a cargo da Força Nacional.
Infelizmente, tenho consciência de que a libertação desses setores mais empobrecidos das cidades, do jugo do poder autocrático dos grupos criminosos que os dominam, não será obtida, apesar das variadas formas de intervenção governamental, sem a inserção plena das comunidades populares ao conjunto da cidade, em uma perspectiva republicana, o que implica na efetiva retomada do controle territorial pelo Estado.
Em busca desse objetivo, o Estado brasileiro enfrenta um grande dilema, pois a grande densidade populacional, aliada à organização espacial interna das favelas e de outros espaços pobres e segregados das nossas cidades, marcados por becos, vielas e ruas estreitas, além de dificultar o acesso e a ação das forças policiais, permite que os moradores locais sejam utilizados como verdadeiros escudos humanos pelas quadrilhas de traficantes e outros grupos criminosos que ali atuam.
Nesse sentido, como ressalta Jailson de Souza e Silva, coordenador do Observatório de Favelas, urge a formulação de novas estratégias de enfrentamento da violência, além das já conhecidas megaoperações de pacificação de territórios hostis da “guerra às drogas”, tão ineficientes quanto aqueloutras marcadas por uma louvável preocupação com os direitos humanos, mas incapazes de construir uma política de segurança alternativa ao paradigma estabelecido pelo autoritarismo.
Em meio a um cenário de preocupações voltadas quase que exclusivamente para afastar o crime e manter a Olimpíada isolada da realidade da cidade, a morte do soldado Hélio Vieira, com certeza, não repercutiria ao ponto de levar a Presidência da República à decretação do luto oficial, em todo o país, não estivesse o militar estadual a serviço da Força Nacional de Segurança Pública. Afinal, seria apenas mais uma das muitas mortes que já nos habituamos a contabilizar, pois, apesar da colocação de um letreiro luminoso na entrada da Vila do João, indicando a rota correta para quem quer seguir pela Linha Vermelha, continuamos no caminho errado, sem ver no horizonte a menor indicação de saídas para o insano, a brutalidade, a selvageria que inviabilizam qualquer projeto de construção de políticas integradas que permitam a existência da pluralidade em um território uno, sob o império da lei.
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