Publicado em 21/11/2016 às 16h45.

‘O Nascimento de uma Nação’: neologismo para soco no estômago

O longa aborda um lugar onde o cinema tem a obrigação histórica de revisitar de tempos em tempos: a sociedade escravocrata do sul dos Estados Unidos

Clara Rellstab
Foto: Divulgação
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“O Nascimento de uma Nação”, filme de estreia do diretor Nate Parker, que também é protagonista, roteirista e produtor da obra, chegou aos cinemas nacionais na última quinta-feira (17). A grande sacada do filme começa no título: a escolha faz alusão ao famoso longa racista, de D. W. Griffth, que exalta a Ku Klux Klan e foi usado pelo movimento como ferramenta de recrutamento até meados da década de 1970.

O roteiro é baseado na história de Nat Turner, um escravo americano que estudou a Bíblia a fundo – pois os demais livros não eram permitidos à sua “espécie” –, e acabou designado a pregar o evangelho para os negros, a fim de “acalmá-los”. Em meados de 1800, após presenciar todo tipo de tortura a seus irmãos, ele passa a olhar o livro como um documento de libertação, e acaba líder de uma rebelião de escravos no Condado de Southampton, na Virgínia, que durou 48 horas. Afinal, como fica demonstrado, Deus além de Deus do amor, é também o Deus da ira.

O  longa aborda um lugar onde o cinema tem a obrigação histórica de revisitar de tempos em tempos, com seu último grande expoente em “12 Anos de Escravidão”. Diferentemente do vencedor do Oscar de Melhor Filme em 2014, “O Nascimento…” capricha no realismo brutal – detalhe para a podridão dos dentes de todas as personagens. Com cenas de violência que funcionam como um soco no estômago, não há tentativa de humanizar nenhum branco na história: o ponto de vista é todo dos escravos. Destaque para a cena dos negros enforcados em florestas com a ácida “Strange Fruit” entoada por Nina Simone. Dói quase que fisicamente.

Deslizes – O grande pecado de Parker, que apresenta uma atuação digna de indicação na categoria de Melhor Ator, foi o namoro de Nat com Nancy. Com direito a buquê de flores, frases clichês e pedido de casamento que mais parecem enredo de contos de fadas da Disney, o romance é tão brega quanto os livros de Nicholas Sparks. Esse aspecto prejudica a narrativa de maneira excessiva: após a consumação do matrimônio, a história retratada parece não ser a mesma do início.

As associações semióticas com a trajetória de Jesus Cristo também incomodam pelo exagero. Não cabem em uma mão os momentos em que Parker aparece de braços abertos como se estivesse sendo crucificado. A escolha de um personagem traidor, como o Judas Iscariotes, também não parece ter sido coincidência. Longe de reclamar do cristianismo, mas fica a pergunta: se Nat era cristão, por que o som dos tambores africanos tocam somente nas horas de fúria e combate?

Corajoso e importantíssimo, o filme funciona como manifesto político e de insubordinação em relação às tensões raciais presentes nos Estados Unidos, assinado e dirigido por um homem negro. Se depender de “O Nascimento de uma Nação”, o Oscar 2017 não será tão branco.

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