Publicado em 10/02/2017 às 10h13.

Faraó 30 anos: Análise estético-histórica da canção que mudou o Carnaval

Continuando o especial dos 30 anos de "Faraó - Divindade do Egito", o hino do samba-reggae, um esboço crítico sobre seu impacto

James Martins
Cena do carnaval do "Faraó", 1987 (Reprodução do filme de Ariel de Bigaut).
Cena do carnaval do “Faraó”, 1987 (Reprodução do filme de Ariel de Bigaut).

 

[Como anunciei no final da matéria em que apresentamos Luciano Gomes, o compositor da música “Faraó – Divindade do Egito”, lançada há 30 anos, farei aqui uma breve análise estética e histórica da canção, para tentar situar o impacto de seu surgimento sobre a música baiana e, mesmo, brasileira. Farei-o em formato de artigo, não de matéria, por acreditar que assim diminuo a distância entre o que almejo e o que eventualmente conseguirei. Segue]:

Para chegar a “Faraó”, lançada em 1987, precisamos retroceder ao surgimento dos blocos afro, com o Ilê Aiyê, em 1974. E para falar do Ilê, acho justo voltarmos não apenas aos blocos de índio como às escolas de samba da Bahia, que surgiram nos anos 1960. A história é muito rica, mas vou resumir porque, conforme aprendi com Vivaldo da Costa Lima, “quem pretende esgotar um assunto, acaba esgotando a audiência”. Isso posto, perdoem as eventuais omissões. Pois bem, em 1965 o bloco Filhos do Tororó, fundado em 1943, virou a Escola de Samba Filhos do Tororó, com enredo de Nelson Rufino: “Postais da Bahia”. Ritmistas do Samba, Juventude do Garcia…, essas agremiações surgiram de uma vontade de refazer aqui o carnaval carioca e tiveram seu esplendor naquela década. O jovem Antônio Carlos dos Santos, o Vovô da Escola Parque, era um desses aspirantes a carnavalesco. Quando o Ilê Aiyê surgiu, fundado por Vovô e Apolônio de Jesus, em pleno processo de decadência das escolas, foi um choque: se não era um bloco de índio, como o Apaches também do Tororó, tampouco era escola de samba. Afinal, “que bloco é esse?”. Bloco afro, eles classificaram, criando um novo segmento.

Existem várias interpretações para os negromestiços de Salvador terem criado os blocos de índio, em que células musicais africanas eram/são tocadas por homens vestidos como os pele-vermelha do cinema americano. O caráter combativo dos índios do Oeste dos Estados Unidos, a opressão comum, e mesmo a figura guerreira do Caboclo da Independência da Bahia, muita coisa colaborou nessa fantasia. Mas, um outro aspecto menos falado também pode ser trazido à roda: a estética indígena sempre foi melhor aceita, com seus cabelos lisos etc, que a africana, na sociedade brasileira que se pretendia (pretende?) europeia. No livro “O Negro no Futebol Brasileiro”, Mário Filho observa que alguns jogadores pretos tentavam passar por “descendente de índio”, alisando os cabelos. Não significando, vejam bem, que a opressão ao índio tenha sido menor. A questão é outra. E para dar uma ideia da importância dos blocos de índio, pensemos que Carlinhos Brown não é chamado de “cacique” à toa. Porém, quando surge o Ilê Aiyê, com seus panos africanos, seus colares, seus cabelos, enfim, sua africanidade explícita, a coisa muda, literalmente, de figura. Repito: foi um choque!

Vou acelerar um pouco: em 1989, quando o Olodum completou 10 anos, Gilberto Gil, tentando explicar o bloco aos não-baianos, resumiu: “É uma escola de samba da Bahia”. Tinha razão, os blocos afro eram/são uma versão das escolas de samba melhor adequada ao nosso carnaval de rua, onde o trio elétrico é a informação-chave, que as verdadeiras escolas de samba baianas formatadas pelas cariocas. E escolas mesmo, porque, além de samba, os blocos ensinavam história. Se hoje temos nos currículos oficiais as histórias da África, afrobrasileira e indígena, em parte devemos isso aos blocos afro. E, enquanto não aconteceu, esses próprios blocos assumiram o papel de contar tais histórias e estórias. Nomes como o do rei Axanti, Ossei Tutu, informações sobre a geografia e/ou a cultura de países como Daomé e Senegal, fatos da Revolta dos Búzios circulavam entre nós quase que exclusivamente através das músicas do Ilê, do Olodum, Malê Debalê, Muzenza etc. E eu disse quase porque, justiça seja feita, o Centro de Estudos Afro-Orientais (Ceao), da Ufba, criado em 1959 pelo visionário luso-brasileiro Agostinho da Silva (com Edgard Santos), merece destaque em seu pioneirismo e qualidade, inclusive e sobretudo no ambiente acadêmico. Mas continuarei dando apenas toques, profundidades só depois do carnaval. Pois bem, naquela época pré-Google, os blocos, uma vez definidos os temas, elaboravam apostilas para munir os compositores de informações que seriam, fatalmente, usadas nas músicas.

Assim como as escolas de samba do Rio têm sambas de quadra e sambas de enredo, os concursos dos blocos afro tinham/têm duas categorias: samba-tema e samba-poesia. Tema correspondendo ao enredo, desenvolvendo os temas propostos como uma espécie de redação. Já “poesia” sendo a parte das canções de tema livre, como os sambas de quadra. Pois o tema do Olodum naquele carnaval de 1987 foi “Egito dos Faraós”. No ano seguinte seria “Madagascar”. Entre os compositores, alguns se dão melhor fazendo samba-tema, outros, samba-poesia. Tem até os que, de tão especialistas, encarnaram a preferência no nome artístico, como Adailton Poesia, autor de, entre outras, “Deusa do Amor” (Olodum) e “O Mais Belo dos Belos” (Ilê Aiyê). No caso de Luciano Gomes, nosso autor sempre preferiu fazer samba-tema, que é o caso de “Faraó – Divindade do Egito”, composta em setembro de 1986 e que ganhou toda a cidade no carnaval de seguinte. E por que, afinal, “Faraó” foi/é tão revolucionária? Algo desse impacto deve-se ao próprio estilo, à própria categoria. Com a obrigação de contar a história proposta, os sambas-tema costumam ter letras quilométricas. E quando “Faraó” surgiu, o rap era quase anônimo no Brasil. Foi um primeiro choque, muito bem explicitado pelo produtor Nestor Madrid, responsável pela gravação de Djalma Oliveira com Margareth Menezes: “Eu recebo a letra… [faz cara de espanto] A letra é isso? Tudo isso? Quem vai decorar? Isso é impossível acontecer…”, disse ele, em depoimento ao filme “Axé – Canto do Povo de um Lugar”.

Outra coisa, o vocabulário: nomes de lugares, enumeração de fatos históricos, vocábulos bantos e iorubás, algumas vezes frases inteiras transplantadas das apostilas para a letra – tudo isso introduziu em tais canções uma pletora de sons e palavras esquisitos ao comum da música popular que também contribuiu para o estranhamento. Sem falar que, talvez para impressionar a banca, os autores (a grande maioria iletrada) procuravam expressões rebuscadas para mostrar que estudaram direitinho, ou seja: dourar a pílula. Assim, Osíris não casou, simplesmente, com Ísis, mas “proclamou matrimônio”. E se o tema induzia à longa-metragem, também provocava um certo didatismo que, em contraste com os floreios, geram um efeito poético inovador, no mínimo curioso. Um exemplo perfeito vem de outro samba-reggae famoso, “Canto Para o Senegal” (Ythamar Tropicália/Walmir Brito), que, entre outras coisas, explica direitinho que “Senegal faz fronteira com Mauritânia e Mali”. E como flui! Aliás, essas frases diretas, prosaicas, parecem ter a mesma raiz de certas letras de Jorge Ben, como “Xica da Silva” – uma espécie de samba enredo sem escola, que sugere ter sido feito pela mera musicalização do roteiro. E tudo isso, em dada medida, tem que ver com os orikis e seu caráter enumerativo.

Mas, se “Faraó” inovou por ter sido composta a partir de um estilo em si mesmo inovador, foi também por inovar dentro desse próprio estilo que ela se destacou. Sim, porque trata-se de um samba-tema com características de poesia. O próprio Luciano explica, em entrevista a mim para a referida matéria, que seu pulo-do-gato foi não focar nem ficar apenas nas riquezas e proezas do faraó, mas entrar em seu coração. O resultado da trama de ciúmes, amor e assassinatos no “Olimpo” egípcio é que, 30 anos depois, aqui estamos ainda envolvidos pelas riqueza e eternidade do soberano. Mas, voltemos à cena da origem: se alguns estranharam a terminologia rebuscada, outros acharam, ao contrário, a letra pobre naquele primeiro momento. A própria Margareth, que o autor considera a melhor intérprete do clássico, confessa que não queria cantar uma música cujo refrão dizia “Faraó-ó. Ó-ó-ó”. Na verdade, conforme se vê no filme “Samba-Reggae – a Arma é Musical” (2010), de Maira Cristina, Maga conheceu primeiro o refrão e não pretendia colocar seu vozeirão a serviço de nenhum “ó-ó-ó”. Porém, ao tomar contato com a letra completa, ela que começava a se interessar por mapa-astral e coisas que tais, se encantou e, enfim, cantou. Deu no que deu. Estava escrito nas estrelas?

Vejamos a letra:

“Deuses, divindade infinita do universo.
Predominante esquema mitológico.
A ênfase do espírito original, Shu,
formará no Éden o Ovo Cósmico.

A emersão, nem Osíris sabe como aconteceu.
A emersão, nem Osíris sabe como aconteceu.
A ordem, ou submissão do olho seu,
transformou-se na verdadeira humanidade.

Epopéia do Código de Geb.
E Nut gerou as estrelas.
Osíris proclamou matrimônio com Ísis
e o mau Seth, irado, o assassinou, em Empera Há.

Hórus, levando avante a vingança do pai,
derrotando o império do mau Seth,
o grito da vitória é que nos satisfaz.

Cadê? Tutankâmon
Ei Gizé
Akhaenaton
Ei Gizé
Tutankâmon
Ei Gizé
Akhaenaton

Eu Falei Faraó
Êeeee Faraó
Eu clamo Olodum Pelourinho
Êeeee Faraó
Pirâmide a base do Egito
Êeeee Faraó
É eu clamo Olodum rebentão
Êeeee Faraó
Batendo na palma da mão

Que mara-mara-mara
Maravilha-ê
Egito, Egito Ê
Que mara-mara-mara
Maravilha-ê
Egito, Egito Ê
Faraó-ó. Ó-ó-ó
Faraó-ó. Ó-ó-ó

Pelourinho, uma pequena comunidade
que porém o Olodum unira, em laços de confraternidade.
Despertai-vos para a cultura egípcia no Brasil:
em vez de cabelos trançados, veremos turbantes de Tutankâmon.

E as cabeças se enchem de liberdade.
O povo negro pede igualdade
deixando de lado as separações.

Cadê? Tutankâmon
Ei Gizé
Akhaenaton
Ei Gizé
Tutankâmon
Ei Gizé
Akhaenaton

Eu Falei Faraó
Êeeee Faraó
Eu clamo Olodum Pelourinho
Êeeee Faraó
Pirâmide a base do Egito
Êeeee Faraó
É eu clamo Olodum rebentão
Êeeee Faraó
Batendo na palma da mão

Que mara-mara-mara
Maravilha-ê
Egito, Egito Ê
Que mara-mara-mara
Maravilha-ê
Egito, Egito Ê
Faraó-ó. Ó-ó-ó
Faraó-ó. Ó-ó-ó”.

O lance é que, para compensar a longura e o didatismo hipotático da narrativa, os compositores geralmente lançam mão de refrões fáceis, onomatopaicos, para pegar mesmo, e que podem ser confundidos com pobreza criativa, mas não são. E Luciano Gomes também sempre soube fazer isso muito bem. Há um ou dois anos, participando de um debate na TVE, durante o carnaval, ouvi do cineasta José Araripe Jr. uma crítica, a meu ver pobre, sobre a pobreza das letras do pagodão baiano. Diante de minha discordância, ele confessou que, quando o Olodum surgiu, o espanto diante daquelas letras foi semelhante, e que hoje já se faz outro juízo. Acho a comparação, guardadas as inúmeras diferenças entre “segura o tchan” e “epopéia do Código de Geb”, pertinente. Embora caudalosas e rebuscadas, de estrutura hipotática em relação à parataxe pagodística, as letras dos blocos afro de fato têm algo em comum com essas: sobretudo o fato de servirem à melodia, como serviçais mesmo. Assim é que o vilão Seth, chamado de mau, foi quase rebatizado como “Malseth”. O refrão de “Rosa” (Pierre Onássis) é pagode puro com seus vocábulos isolados, nucleares, montados como um ideograma chinês: “Ô-ôôô Rosa / Ôôô Rosa / Olodum / Alegria / Cidade / Canta / Salvador”. No caso dos sambas-tema, note-se como é difícil fixar suas letras. Seria resíduo da tradição oral, reforçado aqui por uma outra tradição, a de melodias criadas sem referência harmônica? Eu mesmo, para transcrever “Faraó” aqui, precisei consultar Luciano em alguns pontos.

Influências

Peculiares como são, dificilmente as músicas da linhagem de “Faraó – Divindade do Egito” criariam escola fora do seu próprio ambiente. Como Tetê Espíndola dificilmente terá uma sucessora. Como Caymmi ou João Cabral de Melo Neto não deixam herdeiros. Mas influenciam. E muito. O sempre antenado Caetano Veloso captou a radiação logo no primeiro momento. Naquele disco de 1987, intitulado apenas “Caetano”, em que sintomaticamente a contracapa faz referência ao Egito, ele lançou “Eu Sou Neguinha”, referência explícita a “Eu Sou Negão”, de Gerônimo, e, já na faixa de abertura, “José” – referência menos clara a “Faraó”. Na verdade, essa interpretação vai por minha conta e risco. Nunca conversei com o compositor a respeito. Mas, embora se refira, no livro “Verdade Tropical”, aos “blocos afros que buscam no Egito absurdo de suas canções uma origem que lhes dê sentido à existência”, Caetano parece nessa música jogar trocadilhescamente com o erro auditivo que transformou “Ei Gizé” em “Ei José” (quem nunca cantou assim atire a primeira pedra) e com o “José” do poema de Drummond: aquele que também está numa espécie de fundo do poço. E se, de fato, nossa ascendência africana passa longe do Egito dos faraós, ele enxerga, ou melhor, ouve o eco de um Egito futuro fadado em nosso destino, em nosso umbigo, em nós (“Qual será o Egito que responde / e se esconde no futuro? / O poço é escuro, mas o Egito resplandece / no meu umbigo. E o sinal que vejo é esse: de um fado certo, enquanto espero, só comigo e mal comigo, no umbigo do deserto”), como aliás já está na melhor parte da canção de Luciano Gomes: “Pelourinho, uma pequena comunidade / que porém o Olodum unira, em laços de confraternidade. / Despertai-vos para a cultura egípcia no Brasil: em vez de cabelos trançados, veremos turbantes de Tutankâmon. // E as cabeças se enchem de liberdade. / O povo negro pede igualdade / deixando de lado as separações”. Cadê?

Abaixo, o compositor recita sua letra mais famosa:

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