Publicado em 17/11/2017 às 17h20.

Jef Rodriguez: ‘Quando se vive pobreza, a primeira coisa que falta é cultura’

Vocalista do grupo de rap OQuadro, de Ilhéus, conversa com o bahia.ba sobre a série de shows na Caixa Cultural a partir desta sexta-feira (17)

João Gabriel Veiga
Foto: Divulgação
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O segundo disco pode só ter saído esse ano, mas a estrada é uma velha amiga do grupo de rap baiano OQuadro. Naturais de Ilhéus, terra do cravo e canela no sul da Bahia, e juntos desde 1996, o conjunto faz da música uma tela em branco para pintar retratos da realidade negra. “Nêgo Roque”, lançado pelo selo independente Isé, é mais um capítulo dessa jornada.

Em entrevista exclusiva ao bahia.ba, Jef Rodriguez, um meio da dupla de vocalistas d’OQuadro, conta sobre a criação do personagem Nêgo Roque, que é uma representação para a população negra que foge aos estereótipos, como os próprios músicos são: “Quando se vive a pobreza, a primeira coisa que falta é a cultura. Quando comecei a conhecer pessoas que tinham acesso a arte, eram de classe média, e eu ficava de fora, era estereotipado”.

Porém, se no início da carreira OQuadro era visto com olhos tortos por serem um grupo de rap do interior do estado, hoje eles cativaram um público e fazem parte da cena da música alternativa baiana, com companhia ilustre do Baiana System. Eles têm três shows marcados neste mês na Caixa Cultural, de sexta-feira (17) até domingo (19), cada dia com um convidado para agitar a noite.

Confira aqui a conversa na íntegra:

Foto: Divulgação
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Bahia.ba – O título do disco [“Nêgo Roque”] parece fazer referência às origens do rock, que são negras, com nomes como Chuck Berry sendo esquecidos pela história em benefício de Elvis e outros. Esse disco foi uma tentativa de resgatar essas raízes?

Jef Rodriguez – Sim. O rock é uma música negra, mas a gente raramente vê nos meios de comunicação artistas negros fazendo rock, não se vê muito na capa de revistas especializadas… Isso é um fato, mas não reflete somente o rock, que talvez seja o ponto de partida para começar a perceber isso em outras coisas. Até o axé, que é uma música daqui e que tem uma característica parecida historicamente, mas os rostos das pessoas tidas como representantes dessa cultura são rostos  brancos. Mas o Nêgo Roque é um personagem da periferia, que tem a oportunidade de gostar de outras coisas, e acaba vivendo um deslocamento. Eu sou um cara da zona rural da Bahia, e comecei a gostar de rap na minha comunidade. Lá, tinha pessoas que trabalhavam o dia todo, e não tinham o direito ao ócio criativo para frequentar espaços ou buscar referências culturais, de arte. Quando se vive a pobreza, a primeira coisa que falta é a cultura. E quando eu comecei a conviver com pessoas que tinham acesso a essa arte, eram pessoas de classe média e eu ficava de fora, era estereotipado. Isso reflete muito a realidade de outros suburbanos.

.ba – Vocês estão trabalhando desde os anos 90, e desde o início a questão racial é um tema muito presente no trabalho de vocês. Vocês acham que, com o passar do tempo, “negro cantando sobre negritude” passou a ser mais aceito pelo público, ou ainda há uma resistência?

JR – As duas coisas, porque toda aceitação é resultado de muita luta. Eu tive a oportunidade de crescer ouvindo Racionais, os blocos afros da Bahia, e isso me trouxe à tona o questionamento, me fez olhar diferente para as aulas de história. Acho que há muito ainda a se lutar, não só por parte dos negros, mas também por parte do povo indígena, das mulheres, do pessoal LGBT. Todo mundo está em um momento de luta por um espaço que é seu por direito, mas ainda falta muito para uma sociedade igualitária. Nós lutamos com música, porque, da mesma forma que fomos tocados pela arte, queremos usar a arte como via de conhecimento, de ponte para chegar até as pessoas.

.ba – Com vocês fazendo turnê fora do país e o Baiana System tocando no Rock in Rio, vocês acham que a música tida como alternativa da Bahia está ganhando espaço no país?

JR – Sim, mas ainda é um espaço muito pequeno. Eu moro no Rio de Janeiro há quase três anos, e as pessoas lá são tão bombardeadas pela ideia do axé que esquecem que Raul Seixas e Glauber Rocha eram baianos. Isso é culpa de uma gestão cultural de anos, de uma indústria cultural que acabou gerando uma monocultura. Desconstruir isso é algo que leva tempo, mas já está acontecendo. O resultado está aí, com outros grupos como o Ifá, Attoxa, Pedro Pondé… Existe uma Bahia enorme acontecendo e a gente tá lutando para o povo ver isso.

“Quero saber se meu dinheiro vai para as mãos de um preto ou de um branco, e que relação esse branco tem com a cultura do hip hop. Se eu estou comprando um produto caro e o dinheiro vai para mão de um preto, maravilha!”

.ba –  Vocês são de Ilhéus, mas vão tocar essa semana em Salvador. Vocês acham que há uma cultura distinta da capital e do Recôncavo e uma do resto do estado, ou dá para dizer que existe uma identidade baiana maior que une todos os cantos daqui?

JR – As duas coisas. Existe uma falta de unidade na relação entre capital e interior. Há um olhar muito segregado por parte da capital ainda. Eu lembro que, quando viemos tocar aqui pela primeira vez, as pessoas ficaram surpresas com nossa música, por a gente ser de Ilhéus. O fato de você ser do interior quer dizer que não é possível fazer um som de rap? A Bahia é cheia de culturas, de sotaques, de alimentos, de comportamentos. Para essa unidade acontecer, é preciso que a gente se aceite como estado. E a Bahia ainda tem um olhar muito hierárquico sobre a perspectiva soteropolitana. O fato d’OQuadro ter sido abraçado pela capital não significa que todos os outros também foram, é algo que precisa mudar.

.ba –  Nos últimos tempos, alguns artistas negros que se tornaram populares têm se envolvido em algumas polêmicas. A Karol Conka, por exemplo, foi bastante criticada por assinar uma linha de roupas caras. Vocês acham que esse tipo de crítica é válida, ou é um reflexo de um pensamento racista?

JR – Uma discussão que tem ocorrido nos últimos tempos é a da apropriação cultural, que é quando tem o uso de produtos típicos de negros por pessoas brancas. Essa é uma questão com nuances que precisam ser levadas em consideração. Se eu comprar um caderno da Tilibra no mercado que tem “hip hop” escrito na capa, por exemplo, eu quero saber quem é que está recebendo esse dinheiro. Quero saber se meu dinheiro vai para as mãos de um preto ou de um branco, e que relação esse branco tem com a cultura do hip hop. Se eu estou comprando um produto caro e o dinheiro vai para mão de um preto, maravilha! Méritos para Karol Conka, méritos para Emicida, méritos para todos aqueles que chegaram a um status de poder serem empresários. Depois de tantos anos, a gente merece isso. A gente precisa ascender socialmente, e ninguém está obrigando ninguém a comprar na mão deles.

.ba – Em “Gang”, vocês falam sobre a questão da “ostentação” e de uma perda da essência do rap. Há quem ache que a “ostentação” do negro no rap é uma maneira de autoafirmação, de ter sua presença reconhecida, mas há quem não concorde e diga que as questões culturais sempre têm que vir primeiro. De que lado vocês ficam?

JR – A ostentação é compreensível quando vem de um cara que nunca teve aquelas coisas, e que sempre foi bombardeado com a ideia de que ter aquelas coisas vai o tornar uma pessoa melhor. O cara ostenta aquilo porque ele cresceu sonhando com isso. Eu não aceito é ostentação vinda de um rapper branco de classe média, porque ele sempre teve aquilo. O que acontece com programas como ‘Estrela’ [da Angélica, exibido na Globo], é mostrar a vida luxuosa dos artistas, mas isso não é visto como ostentação. E isso é a ostentação branca. “Gang” é sobre uma onda de muita gente fazendo rap mas que não conhece a própria cultura, e ficam apontando que é ou não é verdadeiro. É sobre o “gangster fake”.

“Tudo tem a versão gourmet, daqui a pouco vai ter rap universitário também.”

.ba – Então, você está do lado do Baco Exu do Blues, que canta que o rap dele “é pipoca, não é bloco”? Você acredita na existência do rap gourmet?

JR – Tudo tem a versão gourmet, daqui a pouco vai ter rap universitário também [risos]. Eu não posso impedir que essas coisas aconteçam, mas eu tenho que fazer minha parte.

.ba – Em “Muita Onda”, vocês fizeram uma colaboração com o Emicida. Como surgiu essa ideia? E como foi o processo de criar com ele?

JR – Na verdade, isso foi o resultado do projeto Conexões Sonoras, onde muitas bandas da Bahia, e algumas do Sudeste, eram colocadas em uma lista e as pessoas votavam com quem elas queriam que elas colaborassem. O Ifá fez com Flora Matos, e o Emicida foi quem elegeram para trabalhar com OQuadro. A gente já tinha feito três shows com ele, o que facilitou. E a gente já tinha uma música encaminhada, que estava com parte da letra pronta, e sobrou um espaço. Emicida chegou lá e fez o trabalho dele, e foi maravilhoso. Ele é um artista com quem a gente se identifica e admira muito, não só como rapper, mas como militante, como empresário. Emicida é um cara que tem relevância em tudo que faz.

.ba – E se vocês pudessem escolher um artista para trabalhar com vocês, quem seria?

JR – É uma lista infinita. A gente gosta de muita música, e também de arte audiovisual. No Brasil, tem o Mano Brown, Black Alien, Gilberto Gil. Fora do Brasil, queria trabalhar com Kendrick [Lamar]… Também tem artistas do cinema para fazer um clipe com a gente, como Edgard Navarro [produtor de cinema soteropolitano], Spike Lee… Queria que Glauber Rocha estivesse vivo ainda… Fazer uma música com Nina Simone, imagina aí como seria?

.ba – Vocês vão se apresentar três noites seguidas na Caixa Cultural. Como farão para que cada show seja distinto um do outro?

JR – Cada dia teremos um convidado. Vai ter o Letieres Leite, da orquestra Rumpilezz. Teremos o Attoxa, que é esse pagodão digital e eletrônico que tá tomando conta da Bahia. Tem o grupo Opanijé, que é referência, é vanguarda no rap afro-baiano. Só gente que a gente tem admiração.

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