Publicado em 01/11/2017 às 13h00.

Jesus ‘pode ser tudo, menos travesti’, ironiza atriz de Rainha do Céu

"Jesus já foi representado como homem branco, como homem negro, mulher negra, como criança", protesta Renata Carvalho, em entrevista exclusiva ao bahia.ba

Alexandre Galvão
Foto: Divulgação
Foto: Divulgação

 

“Mistura de monólogo e contação de histórias em um ritual que mostra Jesus no tempo presente, na pele de uma mulher transgênero”, diz a sinopse da peça “O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu”, escrito pela dramaturga britânica Jo Clifford, em 2009.

Em sua adaptação brasileira, o texto tem somado proibições da Justiça – Salvador foi palco da mais recente, com o imbróglio da realização do espetáculo do Espaço Cultural Barroquinha na última sexta-feira (31), e pode voltar a receber a encenação.

O motivo alegado é a infração ao artigo 208 do Código Penal Brasileiro que condena, resumidamente, o ato de “escarnecer alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”.

Em entrevista ao bahia.ba, a atriz Renata Carvalho, protagonista da trama, garantiu que a decisão seria outra se, ao menos, a Justiça tivesse o interesse de assistir ao espetáculo ou ler o roteiro: “Eles viriam que não tem nada demais: a gente fala sobre amor, perdão, tolerância”.

À reportagem, a artista avaliou que o boicote à peça foi mais minucioso na capital baiana. Segundo ela, o Movimento Brasil Livre da Bahia (MBL-BA) se articulou de maneira cuidadosa, ao entrar com “várias ações, em várias varas, como pessoas diferentes, para vários juízes – até que um deles aceitasse”. “Ou seja, eles fizeram um montante”, concluiu.

Sobre a polêmica em volta do espetáculo, no qual histórias bíblicas são recontadas em uma perspectiva contemporânea – contextualizadas em uma vivência cotidiana da população transexual –, a atriz acredita na perpetuação de um preconceito contra a classe em questão. “Jesus já foi representado como homem branco, como homem negro, mulher negra, como criança. Ele pode ser tudo, menos travesti”, finalizou.

Confira a entrevista completa:

Foto: Ligia Jardim / Divulgação.
Foto: Ligia Jardim / Divulgação.

 

Bahia.ba – Apesar da proibição, como foi a recepção da peça em Salvador?

Renata Carvalho – O baiano é incrível! As pessoas foram muito carinhosas mesmo!

.ba – Apesar da negativa da ação do deputado Pastor Sargento Isidório…

RA – Negou? Não sabia

.ba – Sim, a ação que foi acatada não foi a dele. Se você quiser, te mando a decisão…

RA – Por favor!

.ba – Mesmo com a negativa da ação dele, outras foram feitas e uma delas foi acatada. Não é a primeira vez que isso acontece. As constantes proibições preocupam a equipe sobre a continuidade da turnê?

RA – Olha, não tem como não pensar nisso, porque é o meu trabalho – o nosso trabalho – e me preocupa agora, porque em todas as cidades está acontecendo isso. Antes da proibição em Jundiaí já acontecia, mas depois da repercussão dela, em TODAS as cidades houve denúncias. Virou moda e isso é um saco, viu? O que aconteceu em Salvador foi que o MBL [Movimento Brasil Livre] se organizou muito mais do que nos outros lugares. Eles entraram com várias ações, em várias varas, como pessoas diferentes, para vários juízes – até que um deles aceitasse. Ou seja, eles fizeram um montante. Um único documento, para várias varas. Tanto que a vara que aceitou não tem nada a ver com assunto. Eles são muito organizados. Esse método foi positivo, né? Eles têm costas-quentes, são aliados de políticos. Como não podem tocar no assunto da política diretamente agora, estão desviando o olhar, porque existe uma coisa chamada eleições 2018.

.ba – Então você acha que os pedidos de proibição servem como uma cortina de fumaça para interesses políticos?

RA – Sim, porque são políticos e o MBL que organizam isso. O Pastor Isidório é do DEM, não é?

.ba – Na verdade, ele é do Avante, um partido menor.

RA – O que acontece é que eles estão todos queimados e criam outros partidos, com outros nomes. Mas a carniça antiga é a mesma.

.ba – E, além do boicote ao espetáculo, você tem sofrido ataques pessoais depois da repercussão da peça?

RA – Hoje mesmo eu vi uma matéria de um site gospel, na qual eles anunciam a minha morte. Eles escreveram assim: ‘Quem blasfemar Jesus, vai morrer!’, junto à minha página e um desejo de ‘Boa Sorte!’. É nesse nível: você vai morrer, vai ser espancada na rua. Eles alegam muito o artigo 208 do Código Penal, dos crimes contra o sentimento religioso. Não tem nenhum símbolo religioso dentro da peça. Que a religião é contra os LGBT é visível, é notório. Eu sei que eu, como travesti, não sou aceito nas igrejas. O grande problema é que o Judiciário está corroborando com e assinando embaixo nessa ideia de que o meu corpo é marginal, é sexualizado, é de segunda classe. Que eu não sou humana o suficiente, ou que eu não tenho dignidade o suficiente para interpretar Jesus. O Judiciário estar de acordo com esse preconceito é muito grave! Ele censura a peça pelo fato de eu ser travesti, partindo do pressuposto de que a gente está satirizando a imagem de Deus, que estamos ferindo a fé deles. Eu não estou ferindo a fé de ninguém! Eles estão me acusando, me xingando, me crucificando sem ao menos virem assistir ao espetáculo ou terem acesso ao texto. Se eles tivessem acesso eles viriam que não tem nada demais: a gente fala sobre amor, perdão, tolerância.

Foto: Divulgação
Foto: Divulgação

 

.ba – Então a peça não agride à religião de ninguém…

RA – Por que Jesus foi morto? Porque ele dizia que era filho de Deus para os grandes homens poderosos da época. Como ele, um pária, um judeu, falou que é filho de Deus? Ele tá louco? E aí mataram ele. Se eu gritasse na rua que sou filha de Deus, vão falar que eu sou louca. Então a ideia da autora vem dessa leitura, de quem, agora, é esse corpo excluído, negado. É aquele questionamento fundamental de ‘o que Jesus faria no seu lugar?’. O que Jesus faria se encontrasse um travesti na rua? Ele iria tacar uma pedra? Ele chamaria de traveco? Ele iria matar? Ele iria acolher, porque para ele não importava com quem você se deitava, mas sim quem você era. Eu aprendi com um padre e com um pastor que, se não fala de amor, se não afirma o amor, se não afirma a vida, não é de Deus. Eu não entendo cristão, que são a grande maioria dos que me atacam, com discursos de ódio. É surreal o que eles escrevem para mim. Não sei se você ficou sabendo do bailarino que foi preso em Caxias do Sul durante uma performance. Onde que isso vai parar? Me fala? Quando eu li essa matéria, fiquei assustadíssima! Para eles entrarem em um teatro e me pegarem é um pulo! Eu posso ser presa, com certeza. Como é que vamos respeitar um negócio desses? Caetano Veloso foi proibido de cantar! Caetano Veloso, gente… Referência mundial, Madonna se ajoelhou para ele aqui.

.ba – A questão da censura à arte tem sido muito debatida atualmente, em função dos episódios do Queer Museu e da performance no MAM de São Paulo. Dá para retroceder mais ou ainda há luz?

RA – Olha, nós estamos em 1750. Já retrocedeu, né? (risos). Tem uma história engraçada. Aí no espaço da Barroquinha, era localizado um dos primeiros terreiros de Salvador. Daí as pessoas vieram, derrubaram o terreiro e construíram a igreja no lugar – que pegou fogo, inclusive. As pessoas que derrubaram o terreiro, não sei quantos anos atrás, são as mesmas que destroem terreiros de matrizes africanas no Rio de Janeiro a mando de traficante evangélico. É muito triste isso que está rolando. Eles acham que o Deus deles é maior, mais digno, mais puro. Aí essa igreja que pegou fogo, hoje é um espaço cultural e no altar tem a imagem de Xangô! Nesse lugar com tanta história, proíbem uma travesti de fazer uma hermenêutica dos dias de hoje, com Jesus sendo representado como uma travesti. Jesus já foi representado como homem branco, como homem negro, mulher negra, como criança. Ele pode ser tudo, menos travesti.

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