Mãe!: novo filme de Aronofsky é o surrealismo em sua essência
O longa surpreende até os mais habituados com as elucubrações do diretor, já conhecido por brincar de corda bamba na linha tênue entre o real e o fantasioso
Luís Buñuel e Jean Cocteau nunca ganharam um Oscar. Uma Palma de Ouro aqui e outra ali, mas não a aceitação do grande público. A verdade é que o surrealismo se mostra mais desconfortável e provocador no cinema do que as telas de Dali e Magritte. Não é de se admirar, portanto, que Mãe!, novo filme de Darren Aronofsky, tenha estreado com uma bilheteria tímida nos Estados Unidos – apesar de trazer como protagonista a menina dos olhos de Hollywood Jennifer Lawrence.
O longa surpreende até os mais habituados com as elucubrações de Aronofsky, já conhecido por brincar de corda bamba na linha tênue entre o real e o fantasioso – principalmente em Requiem para um Sonho (2000) e Cisne Negro (2010). O assombro é ainda mais presente quando se leva em conta o pouco do enredo que as sinopses e o trailer divulgados revelaram. Nada prepara o espectador para o surreal. E nada poderia tê-lo preparado para Mãe! – nem os pôsteres espetaculares de James Jean.
Se em Cisne Negro ele molhou os pezinhos no imaginário, Aronofsky mergulha de cabeça e de roupas neste – com sapatos nos pés até. Sem correr o risco de revelar o enredo, adiantamos somente que Lawrence dá pele a uma jovem casada com um poeta mais velho (Javier Bardem), que passa por uma fase de bloqueio criativo. O casal mudou-se recentemente para uma casa isolada que pertencia ao artista e que foi destruída por um incêndio. Enquanto Ele – sim, com inicial maiúscula – tenta reencontrar sua inspiração, a Mãe se dedica à reforma do lar. Os dois têm o relacionamento testado quando pessoas não convidadas surgem e interferem na atmosfera tranquila do local.
É importante observar que todas as personagens não possuem nomes próprios – desde os protagonistas até o figurante do figurante. Eles não são representantes de si próprios, não se bastam. Assim como tudo que norteia a película, eles são símbolos, são representações de algo maior. O namoro com a religião que acompanha o diretor desde seu último trabalho – o controverso Noé (2014), que como o nome sugere, conta a história do herói bíblico – é ainda mais explícito na nova película. Em uma metáfora da trajetória que separa o Gênesis e o Apocalipse, sem dar nome aos bois, Aronofsky nos apresenta ao Paraíso, ao Primeiro Homem, à Primeira Mulher, ao Fruto Proibido, Caim & Abel e, claro, à inspiração para o Novo Testamento: o filho de Deus.
Os últimos trabalhos de Jennifer Lawrence foram um banho de água fria para quem esperava um caminho suntuoso pós-estatueta de Melhor Atriz, em 2012. Os desastrosos Trapaça (2013) e Joy (2015), de David O’Russel, e o romance de gosto duvidoso Passageiros (2016) não prepararam a audiência para o show de atuação que a americana entrega. A câmara apaixonada pela personagem – coincidência ou não, ela namora com o diretor – traz a atriz quase sempre ao centro e em primeiríssimo plano. Os experientes Bardem, Michelle Pfeiffer e Ed Harris são ofuscados por uma atuação tão inspirada quanto a sua melhor performance, em O Inverno da Alma (2010). Temos a cena obrigatória de Lawrence berrando descontrolada? Temos. Mas, desta vez, ela vai muito além.
Em determinado momento, Mãe vê um inseto se debatendo no vidro da janela da cozinha, sem conseguir sair da casa. A metáfora perfeita para a situação em que ela se encontra: apesar de toda a aflição que sente, ela é refém do ambiente, mesmo que não haja nada físico que a prenda ali – tal qual as personagens de O Anjo Exterminador (1962) dirigido por, vejam só, Luís Buñuel.
A casa, único cenário do filme, funciona como um grande organismo, intimamente ligado às emoções da protagonista: ela quase fala tamanha a atenção que é dada aos seus mais discretos sons, como o toque humano em determinado objeto, passos no assoalho e bater de portas. A Mise-en-scène da troca dos cômodos, com a câmera nas mãos e em plano contínuo, é tão bem executada quanto a famosa cena interna de O Desprezo (1963), de Godard, e é fator chave para a sensação de confinamento e desespero que o filme transmite ao espectador.
Cerca de 90 anos após o estouro do movimento surrealista nas artes, Mãe! aparece como um manifesto provocativo, não linear e não literal, que busca restaurar os poderes da imaginação castrados por um cinema cada vez mais previsível e repleto de adaptações apáticas, com chances reais de brilhar nas premiações fora do “circuito de arte”. Apesar de apostar no inesperado, uma coisa é certa: você sairá do cinema atônito e com a impressão de que o seu cérebro está tão derretido quanto o relógio da tela “A persistência da Memória”.
Mãe! estreia em Salvador nesta quinta-feira (21). Confira o trailer:
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