Publicado em 23/09/2017 às 06h00.

Tuzé: ‘João Gilberto não fará mais shows porque tem senso crítico’

O músico fala sobre sua carreira (também na Medicina Legal), Axé Music, e, entre outras coisas, um livro de memórias no prelo

James Martins
Foto: James Martins / bahia.ba
Foto: James Martins / bahia.ba

 

Tuzé de Abreu está entre os principais músicos do Brasil. Em um texto histórico sobre os discos de Anton Walter Smetak, o poeta-crítico Augusto de Campos destaca Tuzé de entre os músicos. Aliás, ele é o único que toca nos dois álbuns: “Smetak” (1975) e “Interregno” (1980). Versatilidade é uma palavra que pode ser convocada para referir a trajetória do artista que é flautista da Orquestra Sinfônica da Universidade Federal da Bahia, o primeiro saxofonista solo a tocar em um trio elétrico e o compositor que batizou com uma música que não faz parte da trilha o paradoxalmente clássico do cinema marginal “Meteorango Kid” (1969), de André Luiz Oliveira.

Já o cidadão Alberto José Simões de Abreu, católico experimentalista, é tão versátil quanto Tuzé e passou, no final dos anos 1970, ao mesmo tempo, nos concursos do Instituto Médico Legal Nina Rodrigues e da Ufba (o que a legislação sequer comporta). No Nina, músico entre cadáveres, ele foi responsável por mais de quatro mil autópsias, o que deve ser o sonho de todo metaleiro. “Eu costumava dizer, quando me vinham ‘porra, Tuzé, você ver um cara todo esmagado’! Pense que é um mamão. Um mamão que caiu e ficou pufff… É isso. Nós somos um mamão. Um gato que o carro atropela!”, filosofa.

Nesta entrevista, feita em seu apartamento no bairro da Federação, ele fala sobre música, tanatologia, auto-sabotagem, depressão, Axé Music e a amizade com João Gilberto: “Ele não vai mais se apresentar. Eu garanto, afirmo, aposto com quem quiser. E sabe por quê? Por uma razão muito simples: ele tem autocrítica”. Sem nostalgia, o autor de “Vivendo em Paz”, gravada por Caetano Veloso em “Velô”, fala também do momento atual: “Os músicos de hoje são muito melhores”.

Porém, se não é saudosista, Tuzé de Abreu cultiva a memória com apreço e, motivado por uma perna quebrada que o prendeu em casa, passou a publicar casos no Facebook, envolvendo personagens diversas como Raul Seixas, Emília Biancardi, Tom Zé e tantos outros. Disso, um livro está no forno e aqui ele também fala sobre o projeto e até revela o título em primeira mão. Mas para saber vocês terão que ler a entrevista completa, que, por sorte, está logo aí abaixo:

bahia.ba – Tuzé, quero começar com um lance para o qual André Luiz Oliveira me chamou a atenção naquele dia em que nos encontramos aqui, em janeiro. Você é o único músico-legista do mundo?

Tuzé de Abreu – Na verdade existem outros. Lembro especificamente de um, João Batista, que era sambista e morreu em um acidente de carro. Não era muito conhecido, mas nas rodas de samba era chamado de João Rios. O nome dele era João Batista Rios Soares.

.ba – E você, como entrou nessa área da Medicina Legal?

TA – Tudo é coisa da vida mesmo, não é? Eu terminei o ensino público, me formei em medicina, e fui morar no Rio, com minha primeira mulher. Já músico. E eu era ligado aos baianos, principalmente a Caetano, que estavam indo muito bem. Mas também Gil e Gal. Bethânia é a única que, apesar de eu ter tocado muito com ela, nunca me foi muito próxima. E aí, quando chegou em 1976, meu filho nasceu e comecei a ter problemas com minha primeira mulher. Ela então pegou o menino e se picou, voltou pra Bahia. E eu estava muito envolvido com música lá, fui convidado para ser da banda Black Rio, ia ser o único branco da Black Rio, e também para A Cor do Som. Foi quando aconteceu a coisa que eu considero ter mudado o rumo da minha vida, uma fraqueza: eu não me senti bem lá. Acho que era muito apego à família! Inclusive, Smetak me deu um esporro danado depois, sobre isso. Primeiro, desfiz o apartamento e fiquei morando na casa de uma tia, no Flamengo, o que me pareceu um retrocesso. E eu, que não sabia ainda que tinha traços de depressão, como tenho até hoje, peguei um ônibus e voltei pra Bahia. De ônibus, ainda por cima! (risos) Eu tinha até dinheiro pra vir de avião, mas vim de ônibus. E aqui eu fiquei meio perdido até que pintaram dois concursos: um de médico-legista e outro da Orquestra Sinfônica da Ufba [Universidade Federal da Bahia]. E, ao lado do meu prédio tinha um ex-colega de medicina e sua esposa, Bete, recém-formada, também sem saber o que fazer. E eu comecei a estudar com Bete para o concurso de Medicina-Legal e, paralelamente, também estudei para o da orquestra. E passei nos dois. Mas, para a orquestra eu só fui chamado em 1981. Entrei no Nina [Instituto Médico Legal Nina Rodrigues] e na Ufba. Inclusive, eu só vim a saber muito depois que, pela Constituição, não poderia. Médico não pode ter outro emprego público em área diferente. Até hoje eu tô meio ilegal (mais risos), mas tem um advogado resolvendo isso…

.ba – Sim, mas e no Nina, você chegou a exercer mesmo, lá com os cadáveres?

TA – Muito. E eu gostava! Inclusive, podia ter escolhido várias especialidades e fiquei em tanatologia mesmo, que era a que eu gostava mais. Mas fiz de tudo: exame de estupro, lesões corporais… Minha especialidade, porém, era tanatologia. Fui responsável por mais de quatro mil autópsias. E eu gostava. Aprendi muito. Uma das coisas mais bonitas do mundo é a organização dos órgãos humanos. Você vê que de fato tem uma inteligência naquilo. Agora, também pode-se ver isso nas frutas, por exemplo. Eu costumava dizer, quando me vinham “porra, Tuzé, você ver um cara todo esmagado”! Pense que é um mamão. Um mamão que caiu e ficou pufff… É isso. Nós somos um mamão. Um gato que o carro atropela!

.ba – Sim, mas certamente tiveram momentos difíceis, não?

TA – Ah, claro! Lembro que duas vezes vi amigos meus lá, mortos. Uma menina de dança chamada Cristina e um cara, filho de um professor meu da Escola de Música. Cristina eu não fiz [a autópsia], passei pra outro. Mas o cara, Wolf, eu fiz.

.ba – Mas, o que me fez puxar esse assunto, e que me botou a pensar, desde a observação de André Luiz, foi o quanto isso é representativo de uma versatilidade sua, artística e de personalidade.

TA – Sim, é verdade. Mas, eu vou levando, porque tem um lado muito ruim, muito difícil, nisso: que eu nunca me decidi a fazer nada! Por exemplo, agora meu show, “Novas Aventuras no País do Som”, ganhou um prêmio [Troféu Caymmi 2016 – Melhor Show] e imediatamente eu… recolhi. Os meninos cobram. É terrível.

.ba – E você acredita que isso é o quê? Auto-sabotagem?

TA – Sim, é. Um pouco, pelo menos. Tem um lado objetivo, que é o fato de eu não gostar de me ouvir cantando. Eu até gosto muito da minha inteligência de cantar. Isso eu gosto. Eu acho que eu canto de uma maneira muito inteligente, modéstia à parte. Como dizia Waly Salomão, baiano adora dizer modéstia à parte… (risos). Eu acho que canto de uma forma inteligente, de um modo que a mensagem passa. Mas, o aparelho, como diz João Gilberto, é uma merda! Eu ouço e me dá… [faz careta] Eu não gosto! Só gosto de uma coisa que eu fiz, que é “Namorando”, do filme “Trampolim do Forte”, que eu fiz um tema para o casal. E esse eu cantei bem. Mas é uma coisa esporádica. Em geral, não gosto.

Foto: James Martins / bahia.ba
Atrás, desfocados, uma partitura de João Sebastião Bach e um retrato de um dos filhos (Foto: James Martins / bahia.ba)

 

.ba – Mas, Tuzé, não é comum as pessoas não gostarem de si mesmas cantando, de ouvir a própria voz gravada?

TA – Não sei. Pode ser… mas tem um componente psicológico aí, sem dúvida, da minha auto-sabotagem. Luiz Melodia venceu isso. Ele tinha isso fortemente quando o conheci. E venceu isso. Venceu bacana mesmo!

.ba – E como você identificava isso nele?

TA – Ah, por que ele fugia… botava dificuldade em tudo… não ia a shows… Teve um dia que Caetano chamou ele pra abrir um show e ele levou um cara chamado Daminhão Experiença (risos). E esse cara, doido, ficava no palco fazendo [grita e grunhe] “Ahhhh…”. É porque Caetano é Caetano – um cara com o coração desse tamanho! Mas, se fosse qualquer pessoa, não queria mais saber de Melodia na vida.

“Eu acho que canto de uma forma inteligente, de um modo que a mensagem passa. Mas, o aparelho, como diz João Gilberto, é uma merda!”

.ba – Mas esse Experiença hoje virou um cara cult, tá sendo estudado, como um gênio incompreendido.

TA – Tá sendo estudado?! Estudado?! [muito espantado]. Eu gostaria de ver. Se você tiver um texto sobre ele eu quero.

.ba – É, tem gente que defende que ele é um gênio, um João Gilberto às avessas.

TA – Ah, é? Pois eu quero ver, porque eu comprei os dois discos dele e não vi nada disso. Mas, eu também tenho um lado bom, que aos poucos estou me situando, que é a constatação de que eu sou um sujeito mediano, quase medíocre. E eu tenho que assumir isso. Então, pode ser que eu não tenha percebido a dimensão de Daminhão Experiença. Eu acho que aquilo é uma catarse. E só. Veja bem, você sabe que eu adoro coisa experimental e acho que a gente não pode censurar. Se o cara quiser ir no palco fazer cocô, dar peido… legal. Agora, não quer dizer que… não me passa. Eu aceito, tudo bem, mas, eu acho que tem que ter uma coisa que eu sinta um link. Existem casos que são meramente de psiquiatra. O Daminhão, por exemplo, eu conheci, comprei os discos, mas não percebi nada. Pode ser que alguém com uma inteligência mais brilhante perceba alguma coisa.

.ba – Agora, de volta à Medicina-Legal, imaginando você lá entre os mortos eu fiquei pensando que esse seria o sonho de todo músico de heavy-metal (risos). Enquanto Ozzy Osbourne finge que come morcegos e o Sepultura se chama Sepultura, quem vivia com os mortos mesmo, de verdade, era o flautista da Orquestra Sinfônica da Bahia. Eu acho isso revelador de que você tem e guarda, mesmo nos momentos líricos, uma violência que é importante para não deixar esse lirismo ser um lirismo barato. Ao mesmo tempo que, quando você parte para as atitudes mais experimentais, aquilo tampouco é mera maluquice, mas experiências verdadeiras, profundas. Não?

TA – Sim, são experiências de verdade. Já ouvi muitas críticas negativas e positivas, mas são coisas que eu queria e quero fazer ainda se tiver força e energia. Não gratuidades.

.ba – Não é um vale tudo…

TA – Não, não. E eu vejo muitas coisas por aí que eu aturo porque são meus amigos e tal, mas, eu costumo até fazer uma brincadeira dizendo que são coisas que só divertem a quem tá fazendo. Só é legal pra quem tá fazendo. Quem não tá fica ali sob tortura (risos)…

.ba – Como você, que começou em outra época e ainda convive muito de perto com a garotada, vê essa geração de músicos d’agora?

TA – Os músicos de hoje são muito melhores. Talvez eles não tenham a mesma motivação em questão de conceito e conteúdo. Mas são muuuito melhores. Outro dia fui ver um recital de alunos da Escola de Música, porra!, no meu tempo um ou outro tocava daquele jeito. Hoje, todos. Tem uma menina chamada Luíza Britto – essa menina canta bem pra caramba! E sabe música, faz arranjo!

.ba – Sim, mas recentemente vi um comentário de Lobão no mesmo sentido: que os músicos dos anos 1990 eram melhores que os dos 80, mas que o estofo intelectual, a ambição, era menor. O que você acha?

TA – A ambição não é menor, mas, sim, o estofo intelectual é que, de fato, diminuiu um pouco. Ficou muito acadêmico. Agora, eu aprendi a separar coisas que eu gosto de coisas que considero importantes, embora a mim não digam nada. Por exemplo, o Axé [Music]. Eu admiro imensamente o Axé, acho uma coisa da maior importância. Agora, não fico ouvindo. Não me alimenta.

.ba – E, nas vezes em que você defendeu publicamente o Axé, isso te causou animosidade com os colegas?

TA – Muitas vezes. As pessoas não compreendem. Eu fico: será que eu falo grego? Rapaz, Dorival Caymmi, os Doces Bárbaros, João Gilberto… ninguém morou aqui na Bahia, todo mundo se picou. Era uma conjuntura. Agora, Ivete Sangalo, Bell… todos eles moram aqui, produzem aqui, para o mundo! E fazem um sucesso extraordinário! É certo que, musicalmente, raras vezes me interessa. Só uma coisa ou outra. Mas é muito importante.

.ba – Porém, critica-se muito também que eles, os astros e empresários do Axé Music, no auge, não fizeram muito pela cidade: uma grande casa de shows etc. E aí?

TA – Tudo bem. Eu vou responder que nem Caetano (eu tô falando muito em Caetano, né? Mas é que ele é realmente um modelo pra mim), quando Pelé fez o milésimo gol e, na entrevista, ele disse “pense nas criancinhas do Brasil, nas criancinhas com fome” e tal. Por causa disso, nêgo caiu de pau em Pelé, rapaz! A imprensa, os intelectuais… Aí Caetano se saiu… Caetano é foda! Ele fez assim: “Rapaz, o homem gastou a energia dele toda pra ser aquilo que ninguém nunca foi no futebol e, porque ele falou isso, tudo o que ele fez é diminuído? O que é isso? A energia dele foi tão bem colocada em uma arte, vocês acham que é pouco?”. É isso que eu digo também: vocês acham que é pouco o que o Axé fez? Tem bobagem? Tem. Tem rasteira nos outros? Tem. Tem sacanagem? Tem. Tem gente que fecha o bloco pra não entrar o novo? Tem isso tudo. Mas isso não é novo e nem é do Brasil. Se você viu Ray Charles, o filme, se você leu a biografia de Miles Davis, você viu que isso também aconteceu nos Estados Unidos e deve acontecer em toda parte do mundo onde tem música comercial, onde começou a se vender um milhão de discos, sei lá.

.ba – Acho que mesmo no ambiente menos comercial, das orquestras, por exemplo, tem também essas mesmas picuinhas, gente querendo dar rasteira, não é não?

TA – Tem. Na Orquestra Sinfônica tem. Em toda parte. Agora, é por isso que a coisa é menor? Não pode.

“Acham que é pouco o que o Axé fez? Tem bobagem? Tem. Tem rasteira nos outros? Tem. Tem sacanagem? Tem. Tem gente que fecha o bloco pra não entrar o novo? Tem isso tudo. Mas isso não é novo e nem é do Brasil”.

.ba – Tuzé, nós nos conhecemos na fila para o show de João Gilberto, em 2008. Desde então surgiram vários boatos, shows marcados e desmarcados, e, por enquanto, aquela foi mesmo a última turnê. Será que ele não vai mais se apresentar em público?

TA – Ele não vai mais se apresentar. Eu garanto, afirmo, aposto com quem quiser. E sabe por quê? Por uma razão muito simples: ele tem autocrítica. Gilberto Gil viu esse mesmo show que a gente viu aqui no TCA, mas no Municipal do Rio. Ele me disse: “Tuzé, foi a primeira vez que eu vi João Gilberto errar”. Outra coisa, aqui na Bahia você viu como ele tocou baixinho? E Fred Dantas, que gosta dele mas, não é igual à gente, gosta mas quer não gostar também (risos), falou assim pra mim [imita o jeito de Fred]: “Porra, Tuzé, o cara com o violão desafinado!”. E tava mesmo. Tinha uma corda desafinada um pouquinho. E ele tem problema de afinação de violão. Tanto que quem afinava era eu… Eu só não, alguns amigos.

.ba – É, dizem que ele não afina o violão…

TA – É. Mas, naquela gravação na “Casa de Chico Pereira” tem ele afinando o violão. Aparece. Mas ele tinha 26/27 anos…

.ba – E, já que estamos falando em João, essa figura tão enigmática. E já que você é amigo dele, o acompanhou em tantas viagens etc., como foi que você o conheceu?

TA – Bom, eu já conhecia ele de disco, de fama, é claro. E tinha uns amigos na minha rua, Edson Diniz, Paulinho, Plínio, Gustavo… E João era muito amigo de Edson Diniz, se hospedava na casa dele quando vinha a Salvador e tal. Ele fez um show na Associação Atlética da Bahia, da qual meu pai foi diretor. Carlos Coqueijo era muito amigo dele e muito amigo de meu pai. E eu já conhecia a música “Doralice”, através dele, antes mesmo de ele gravar disco, porque Paulinho, um da família Diniz, falava muito em João e dizia: “João está cantando uma música linda: ‘Doralice eu bem que lhe disse…’”. Eu nem sabia que era de Caymmi. E Caymmi nunca gravou, nunca vi. Eu conheço tudo quanto é gravação de Caymmi e nunca vi essa. Aí, surgiu o disco dele, “Chega de Saudade”, e meu pai comprou. Meu pai adorava João Gilberto. Esse disco tocava lá em casa o dia inteiro: quando meu pai não tava, tava eu. Então eu sei de cor, “Chega de Saudade”. Um dia, então, eu fui ao Rio, ainda não tinha o [aeroporto do] Galeão, era no Santos Dumont, o Galeão tava construindo, e, na volta a Salvador, Paulo Lima (tem três Paulos Lima baianos e músicos: esse é o de Ilhéus, que foi empresário de Gal, produtor etc.) vinha de lá com João Gilberto, no aeroporto. João com aquele mesmo jeito dele, só mais jovem, com o violão, todo apressadinho, de paletó, sem gravata assim… Aí Paulo Lima fez assim: “Tuzé!”, e João Gilberto se despertou “Tuzé? Hein?”, ele é meio assim, né? (risos). E Paulo nos apresentou e eu disse “claro que eu conheço João Gilberto. Sou amigo de Edson, Paulinho…”. E ele: “O quê? Você é Tuzé, amigo de Edson e Paulinho? Puxa! O que é que você vai fazer?”. “Eu tô indo pra Bahia”. E ele: “Tá indo pra Bahia hoje? Eu tô chegando de Nova York, mas me espere lá. Me dê seu telefone”. Eu dei o telefone. E ele disse que ia à Bahia dali a poucos dias que era pra eu o esperar. Aí, viajei e poucos dias depois toca o telefone: era ele. Ele me disse: “Eu tô aqui no Hotel Plaza, venha pra cá”. Foi assim, uma amizade instantânea! Parecia que eu já o conhecia há tempos… Pronto. Foi assim.

Foto: James Martins / bahia.ba
Espécie de Jardim Suspenso no bairro da Federação (Foto: James Martins / bahia.ba)

 

.ba – Onde era o Hotel Plaza?

TA – No Corredor da Vitória. E eu, por coincidência, morava bem perto, quase ao lado. Passava o tempo todo lá com João. Só não dormia. Embora ele até quisesse alugar um quarto no hotel, pra eu ficar por lá mesmo. Eu que não quis, pois não precisava. Eu dizia: “Mas João, eu moro aqui perto, cinco minutos, não precisa”… Mas ele já fez muito isso: alugar outro quarto (no mesmo quarto ele não gosta de ficar não) pra eu ficar: no Japão, no Rio… comigo e com vários amigos ele já fez isso.

.ba – E eu imagino que, nesses momentos, você deve ter ouvido muita música maravilhosa que ninguém nunca ouviu. Até porque, me parece, os músicos algumas vezes, na intimidade, atingem performances melhores que em público, não?

TA – Muuuito! Muitas coisas de Newton Mendonça. Ele ama Newton Mendonça! [baixando um pouco a voz] João Gilberto tem uma dificuldade com Tom Jobim… Mas, é uma coisa assim, complexa… no fundo ele gosta, claro. A música que ele mais gosta, de todas no mundo!, é “Wave”, que é só de Jobim. Ele diz: “Tuzé, essa música é perfeita”! Agora, ele não suporta “Luíza. Detesta essa música. Não gosta de “Chovendo na Roseira”, acha artificial. [como se fosse João falando de Tom] “Ele diz assim, vou fazer uma música… aí pega aqueles livros lá e fica tirando… não, Tuza, não… ele não me engana não” (muitos risos).

.ba – Por coincidência, um dia desses eu estava lembrando justo dessa música, “Luíza”, por ser uma letra do próprio Tom, e pensei exatamente assim: João Gilberto nunca cantaria essa música!

TA – (risos) Muito bem. Ele nunca cantaria mesmo. E, quando gravou “Lígia” ele mudou a letra. Aliás, foi por isso que Lobão se retou com ele, quando gravou “Me Chama”, porque também mexeu na letra. E ele cantou tão lindo! Um dia eu pedi pra ele cantar essa música e ele: “Essa não”.

.ba – Qual música?

TA – A de Lobão. “Essa não”. Eu aí calei, né? (risos).

.ba – E ele também não falou por quê?

TA – Não disse nada.

.ba – Mas era pra cantar assim, só pra você, ou em um show?

TA – Num show. Eu tava fazendo a lista, o repertório. Ele me botava pra fazer a lista, mas só de papo furado, na hora H, só tocava o que queria. Aí eu botei “Me Chama” – “Essa não” (risos).

.ba – E aquela história da música “Chega de Saudade”?

TA – Sim, tem essa história de que a música, inicialmente, seria de uma aluna de Jobim, e que este colocou nela o jeito de tocar de João. E também que João Gilberto teria uma parceria, fez uma parte importante da música (não lembro qual), mas que João, com muita humildade, não quis entrar na parceria e deixou só Tom e Vinícius. E foi a primeira música que Tom fez usando a jogada de João Gilberto: a bossa nova. Depois, evidentemente, surgiram milhares.

.ba – Sim, depois ele fez canções, sobretudo com Newton Mendonça, que parece que são o próprio João falando, como “Desafinado” e “Samba de Uma Nota Só”, não é?

TA – Sim. E Newton, que morreu muito cedo, era adorado por João. Ele já me disse assim: “Tuza, Newton era o melhor”! Agora, João também mitifica coisas que não são tanto. Isso é pra poder, um pouco, diminuir Tom Jobim. – “Ele era o melhor. Antônio fazia as coisas por causa de Newton”. Antônio era Tom Jobim. Aí mostrava várias coisas pra mim. Mas, o cara era bom pra caralho mesmo. Você sabe que João Gilberto odiava ouvir falar em “bossa nova”, dizia que era invenção de carioca, não existe bossa nova e tal. Mas, quando Tom morreu, ele assumiu. Em um show dele, no Japão, estava lá: “A bossa nova – João Gilberto”. Antes disso, ele não gostava nem de ouvir esse termo. “Isso é coisa de carioca, que não tem o que falar. Bobagem”, dizia. Mas, quando Tom morreu ele carregou a carga, pegou o título e ficou. Mas, eu já vi ele esculhambando com Tom várias vezes: “Antônio não sabe nada. É um bobão. Carioca, bobão!” (muitos risos). Mas, é maluquice. Ele é meio maluco! (mais risos). Eu digo, “porra, João, o cara é um músico retado!”, e ele “é, é, ele aprendeu aqueles negócios ali…” (gargalhadas).

“Sim, tem essa história de que a música, inicialmente, seria de uma aluna de Jobim, e que este colocou nela o jeito de tocar de João.”

.ba – É meio de sacanagem também, né? Porque, quando Tom morreu, ele que é tão avesso a entrevistas, imprensa, se abriu, deu um depoimento tão aberto, desarmado, sincero, cita um verso de Drummond: “e se todos vivêssemos?”

TA – Ele deve ter sentido pra caralho! Muito! Deve ter sentido pra caralho!

.ba – E, ainda no campo da memória, você está publicando histórias maravilhosas no Facebook. De onde veio essa inspiração e você pretende lançar um livro com esses relatos?

TA – Em parte, pela perna quebrada, que me obrigou a ficar em casa. E, sobre o livro, um cara chamado Fernando Oberlaender, da editora Caramurê, teve aqui e disse que quer fazer. Estou aguardando. E eu quero publicar sim, porque estou numa fase muito ruim comigo mesmo e isso seria uma motivação.

.ba – E as histórias são realmente muito boas. Aquela de Raul, por exemplo, lhe dando conselho para tomar cuidado com o ambiente de drogas no Rio de Janeiro. Vocês nem se conheciam direito, não é?

TA – É. Ele veio me falar aquilo e eu achei legal, assim, um cuidado. Mas, o mais interessante foi o depois, quando o encontrei de novo, todo vestido de cowboy, saltando de um galaxy branco, me levou pra casa dele e ali aconteceu tudo, rolou tudo. E ele nem aí. Nem lembrava do que tinha me falado, mas eu lembrei (risos).

.ba – O livro já tem título?

TA – Tem. Você vai ser o primeiro a saber, ninguém sabe. Eu pensei vários títulos, mas, um dia, eu tava vendo uma fitinha do Bonfim em um carro: “Lembrança do Bonfim” – queria cortar um pedaço dessa fita e deixar só “Lembrança…”. É o título.

.ba – E, falando ainda em histórias, como foi aquela da Feira da Bahia, que você foi curador?

TA – Foi uma das coisas mais legais que eu fiz na vida. Veio até João Gilberto, que eu consegui. E botei Raul também, na programação. Só baianos. Mas, aí, duas coisas cortaram um pouco a minha: Raul não pôde viajar, porque já estava muito mal no hospital, e Caymmi, rapaz, meu amigo Caymmi ligou pra mim e disse assim “ô, Tuzé, você me desculpe, eu gostaria muito de ir, mas meus filhos conseguiram um show em Ribeirão Preto e eu vou ter que fazer”. Eu, na hora, fiquei puto. Mas… “Ah, tá bem Caymmi, tudo bem, ótimo!”. E aí veio Chico Buarque, que não estava no programa, nem era baiano, mas eu, já desanimado, aceitei. Agora, o que eu tomei de porrada, meu amigo, dos blocos afro principalmente, porque eles achavam que tinha que ter não sei quantos grupos afro… e tinha dois: Olodum, ainda começando, e o Bahia Afro Banda, que não existe mais, mas era muito bom. E o segundo foi um sacana, chamado Fernando José, que foi prefeito daqui e tinha um programa de televisão, um proto-Varela, ele tinha um protegido chamado Geraldão e fez uma campanha pra eu botar esse Geraldão. E eu neguei. E ele conseguiu espalhar pela cidade que eu estava, eu, pessoalmente, estava pagando um milhão a João Gilberto. Rapaz, o que eu recebi de telefonema! De Batatinha, Walter Queiroz… Enfim, esse Fernando José boicotou os ônibus que levavam pra feira, botou alto falantes pra atrapalhar a sinfônica… Filho da puta! E aí aconteceu a seguinte coisa: João Gilberto ia batizar minha filha isabel. Isso foi em 1987. Ela tinha nascido em 4 de janeiro. Isso era 29 de novembro. Aí, minha filha ficou doente, piorando, piorando… e o médico decidiu colocá-la na UTI “só por segurança”. E aí eu fui pro show, porque senão João Gilberto não ia entrar no palco. E me disseram: “Pode ir. Quando você voltar sua filha já saiu”. Quando eu tô lá meu irmão chegou e disse que minha filha morreu, rapaz. Morreu. Eu soube antes do show de João Gilberto, botei ele dentro do palco e saí. Que noite! Puta que pariu! De madrugada eu chorando pra caralho… Fiquei arrasado. João Gilberto, quando soube, chamou eu e Greice (ele tava no Hotel da Bahia) e leu o livro de Yogananda pra gente, inteiro. Você já viu esse livro? Dessa grossura! “A Autobiografia de um Iogue”, ele leu todo pra gente. A noite inteira, ele lendo pra mim e pra Greice. Uma luzinha assim… Porra, [com voz embargada] essa cena nunca vai sair de mim. Aí, quando acabou, ele fez: “Vamos tomar um café agora” (risos).

.ba – Sim, que história! E ela faria 30 anos este ano, se nasceu em 87, né?

TA – É. Mas o que eu quero dizer é, repare, que agora você vai ver uma coisa. Um cara, Clóvis, irmão de Helena, da flauta, minha querida amiga, que estuda coisas místicas, e nunca fomos amigos nem nada, um dia veio aqui em casa sem nunca ter vindo antes e nunca voltaria depois, nunca tivemos nenhuma intimidade, veio aqui com um aluno, nem lembro pra que, sentou no sofá e me disse: “Tuzé, sabe o que aconteceu com você? Você estava muito aberto. Você estava desprotegido. Você falou muito, deu muita explicação”. E, realmente, eu dei muitas explicações, naquele caso da Feira da Bahia, e isso me enfraqueceu. E ele disse, sem saber de nada: “Aconteceu porque você tava muito aberto e foi muita gente com olho em você. Muita gente. A explicação é essa”. Eu fiquei assombrado!

.ba – E você é católico, não é? Como é que se desenvolve, se dá, o seu catolicismo?

TA – Pois é, muito boa pergunta. Eu, primeiramente, não acho que religião e polícia sejam necessários pra ninguém. Agora, no meu caso, eu encaro como se fosse, falando grosseiramente, como se fosse uma espécie de academia de ginástica que eu procuro e obtenho bons resultados. Me ajuda a segurar ondas. Não uso pra fazer proselitismo. E eu muitas vezes sou agraciado com momentos onde a quietude é uma força que não é estranha.

Foto: James Martins / bahia.ba
Foto: James Martins / bahia.ba

 

.ba – Dos trabalhos que você fez e participou, quais o que você gostou mais?

TA – “Novas Aventuras no País do Som”, talvez o número um. “Os Doces Bárbaros” também foi maravilhoso. Uma apresentação com Smetak. Algumas das apresentações com Emília Biancardi. Eu tô dizendo assim, as que me vieram à cabeça agora.

.ba – E o “Novas Aventuras” não vai voltar?

TA – Eu tô com uma relação de amor e ódio com ele. To querendo fazer, mas com medo também. É muita gente, muito trabalho.

.ba – E das suas músicas, quais você gosta mais?

TA – Rapaz, “Eu Me Lembro” é uma. “Namorando”, que eu fiz com Greice e Gil Camará. Gosto muito de “Cara de Farinha”, “Orientação”…

“Eu, primeiramente, não acho que religião e polícia sejam necessários pra ninguém. Agora, no meu caso, eu encaro como se fosse, falando grosseiramente, como se fosse uma espécie de academia de ginástica que eu procuro e obtenho bons resultados”.

.ba – E músicas dos outros que você queria ter feito?

TA – São muitas! “É d’Oxum”, de Gerônimo e Vevé Calazans. Essa música é impressionante, né rapaz? Que canção! Eu dizia muito a eles: “Vocês roubaram essa música de Caymmi”. E eles morriam de rir. Tem várias, de Caetano e Gil. De Rita Lee, então, tem muitas que eu gostaria de ter feito.

.ba – Uma coisa curiosa nessa proximidade de Caymmi e Gerônimo é que, quando a Axé Music surgiu, Dorival não gostou e apontou sua crítica justamente no suposto fato de aquela não ser uma música genuinamente baiana, mas uma coisa caribenha pousada como que artificialmente na Bahia. E, dentre todos os artistas daquele início, o mais caribenho é justamente Gerônimo, que é, também, o mais caymmiano de todos. E assim fica um nó curioso, um paradoxo, não é?

TA – É sim. Caymmi era caribenho. Eu tenho a impressão de que essa ideia de Caymmi era um pouco dos filhos dele, não sei. Caymmi se deixava levar muito pelos filhos, principalmente por Dori.

.ba – E Dori é o mais conservador, né?

TA – É, o mais careta. [enfatizando] Ca-re-ta! Gosto muito dele, já trabalhamos juntos, mas ele é careta.

.ba – Agora, é um careta importantíssimo, um arranjador deslumbrante, além de tudo.

TA – Ah, sim, claro. Ele escreve muito bem. Uma vez ele fez aqui uma oficina de arranjos e a nossa orquestra que tocou. E eu toquei e fiquei impressionado que ele tem uma coisa que eu só vi em Puccini [Giacommo, compositor italiano do século 19]: ele escreve bonito e fácil! Tudo funciona bem.

“‘É d’Oxum’, de Gerônimo e Vevé Calazans. Essa música é impressionante, né rapaz? Que canção!”

.ba – Pra terminar, o que você recomenda da música nova, da garotada?

TA – Tem muita coisa boa. Um cara chamado Tó Bradileone, paulista, jovem, bom pra caralho. Embore eu nem goste, pessoalmente, de ouvir, mas ele é muito bom. Aqui na Bahia tem a Luíza Britto, Giovani Cidreira, vários…

.ba – E dos mais populares, pagodão, arrocha, funk?

TA – Eu gosto no varejo. No atacado não gosto não. Mas tem coisas pontuais maravilhosas. É como Axé. Rapaz, aquela música do Asa de Águia, [cantando] “Tô a toa, se ligue! Tô a toa, se ligue!”, eu acho uma obra-prima! Porra! [cantando de novo] “Tô a toa, se ligue! Tô a toa, se ligue! Tô a toa, se ligue!”. E é do Asa de Águia, que é um dos piores do Axé, mas fez essa obra-prima. Que é que eu vou fazer? Vou dizer que não gosto? Que refrão, rapaz! “Tô a toa, se ligue! Tô a toa, se ligue! (…)”. Eu acho isso maravilhoso. Lembra aquela aquela música: [canta] “Soda, limonada, Antarctica”… Outra obra-prima. Pô, eu queria ter feito isso. Uma coisa linda. “Tô a toa, se ligue!”.

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