Publicado em 03/01/2018 às 09h35.

Adeus ao amigo Antônio Moreira

Poeta e jornalista Florisvaldo Matos lembra a amizade com Antônio Moreira desde 1958

Redação

Antônio Moreira

Adeus ao amigo Antônio Moreira, por Florisvaldo Matos

Estou hoje, pela manhã, em casa, ainda me recuperando das tropelias hedonistas de final de ano, quando recebo pela voz embargada do jornalista Carlos Navarro Filho (Navarrinho) a triste notícia de que misteriosamente se fora o querido amigo de todos nós e de muitos mais Antônio Moreira, que desde decênios divide com o irmão Francisco (Chico) Moreira a direção e sustentação do paradigmático Restaurante Porto do Moreira, situado no Largo do Mucambinho, uma das joias, senão a principal, do universo sensorial da Cidade do Salvador. Memorável figura, admirável exemplo de fraternidade e cordialidade, que conciliava na convivência diária com clientes, muitos frequentadores da casa por decênios, gestos de amabilidade e respeito com irreverência bonachã, como bem o caracterizou hoje um deles, o dr. Fernando Santana, presidente do Clube inglês, sempre alegre, sorridente e afetuoso, em todos os momentos e dias em que lá se postava para cumprir a faina que o destino lhe reservara. Para torná-lo um ser humano amado por todos que dele se aproximavam. Desde que o conheci, lá se vão quase sessenta anos, travamos uma relação de consideração e amizade que durou até que os Fados o permitissem. Vai-se Moreira, de repente, deixando em todos os que o conheceram um sentimento de perda incalculável. Que a eternidade o receba coberto com consagrador manto de luz e paz, tornando a sua memória um patrimônio de todos.

Como o conheci, lá mesmo no célebre restaurante, ainda um garçom infanto-juvenil servindo com o irmão Américo à freguesia sob ordens às vezes severas do pai, o saudoso português José Moreira, guardo dele na memória a mesma expressão sociocultural do restaurante, palco de episódios e histórias memoráveis, algumas até de contorno humorístico, que, ao pronunciar recentemente uma conferência sobre trajetos boêmios da cidade, nos anos 1950/1960, não deixei de dedicar uma parte ao significado cultural de seu nobre estabelecimento.

Assim é que, entre muitas histórias que reuni na narrativa de tão rico e inesquecível período da vida de Salvador, sinto-me agora impelido a reproduzir dela a parte que segue abaixo.

“Desse hoje para muitos um urbano paraíso perdido, repositório de sensações e conquistas inauditas, todos teriam histórias prazerosas a contar, mas, de todos esses lugares, talvez seja o Porto do Moreira o que, pela qualificação e variedade da clientela, mais guarde a memória de casos dignos de registro. Fundado em 1938 pelo português José Moreira (o Sêo Moreira), e facultando a seus clientes um assíduo quanto vasto cardápio de pratos caseiros de inspiração lusa e baiana, tornou-se desde cedo uma casa de pasto cujas mesas reuniam diariamente a nata da inteligência e da burocracia, representada por escritores, poetas, artistas plásticos, professores, jornalistas, profissionais liberais, membros da magistratura, além de políticos, funcionários públicos e comerciários, que lhe davam cor local, como até hoje ocorre neste ameno quase octogenário recanto. Além da cordialidade e simpatia do dono, virtudes saudavelmente transferidas aos filhos, Antônio e Francisco, que, na condição de herdeiros, ainda hoje mantêm o famoso lugar como um ícone de prazeres gustativos na geografia da cidade.

Muito de histórias passadas lá permanece no imaginário dos remanescentes de uma fiel clientela. Evoquemos uma delas quase ao acaso, narrada por Carlos Coqueijo Costa, conceituado dublê de jurista do Trabalho, cronista, compositor musical e animador cultural. Com o restaurante funcionando já no atual endereço, no Largo do Mucambinho, mais conhecido como Largo das Flores, na Rua Carlos Gomes, entre os garçons do serviço, havia um mulato magro, calmo, atencioso e simpático, apelidado de Popó. Atendido por ele, certo dia, na hora do almoço, com preguiça de ler o cardápio escrito à mão, um freguês lhe pergunta: “Popó, que temos de bom hoje, aqui na casa, para comer?”. Solícito, lhe responde Popó, suavemente: “Tem galinha de molho pardo, galinha de ensopado, fígado acebolado, ensopado de carneiro, porco assado, salada de bacalhau, filé a cavalo, moqueca de miolo e moqueca de carne”. Fez uma pequena pausa e concluiu: “E, de sobremesa, goiabada com queijo e banana pessoalmente”. Coqueijo contou este curioso diálogo numa das crônicas que então escrevia, às segundas-feiras, no jornal “A Tarde”, cujo recorte ainda hoje, emoldurado, está afixado na parede do restaurante, à vista dos fregueses.”

ADEUS, GRANDE AMIGO ANTÔNIO MOREIRA.

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