Publicado em 23/11/2016 às 10h13.

‘Apê de Geddel é pinto’, diz Risério, ao criticar obra na Paralela

Para o antropólogo, a construção do metrô é "o maior crime urbanístico contra a cidade, desde que Thomé de Sousa comandou a sua construção em 1549"

James Martins
Foto: Escola da Cidade / Divulgação
Foto: Escola da Cidade / Divulgação

 

O antropólogo e poeta baiano Antônio Risério usou seu perfil (recém-criado) no Facebook para criticar o que considera “um crime contra a Bahia” e contra o qual “ninguém protesta”. Ele, que começa comentando o coro contra o ministro Geddel Vieira Lima, no “caso La Vue” – “O negócio é chutar Geddel e seu apartamento na Ladeira da Barra” – entende, no entanto, que “em comparação com o que o governo estadual está fazendo na Avenida Paralela, o apê de Geddel é pinto”.

“Salvador assiste hoje àquele que é o maior crime urbanístico contra a cidade, desde que Thomé de Sousa comandou a sua construção no ano de 1549. E não vejo ninguém bater na mesa. Nem sequer reclamar”, inicia. O escritor, que em 2012 lançou “A Cidade no Brasil” e tem feito diversas palestras sobre arquitetura e urbanismo em todo o país, critica duramente a obra do metrô – “ferrovia murada” – em que enxerga a concretização do processo segregacional em curso na cidade: “Mas o mais escandalosamente cruel, como disse, é o apartheid. De um lado, vai ficar a cidade pobre tipo Pau da Lima. De outro, a cidade privilegiada tipo Pituba-Costa Azul. Com o muro, a segregação física será oficializada – e por um governo que faz de conta que é de esquerda”.

Nem a Secretaria de Meio Ambiente escapa das críticas. Risério afirma que o “órgão existe apenas para carimbar oficialmente as ordens do governador”, a quem classifica como “um bundão autoritário”. E, para encerrar, ele chama os baianos à responsabilidade. “Onde estão os ambientalistas que tempos atrás defenderam as lagoas do lugar, virando inclusive manchete na mídia local? Como o ex-ministro da Cultura, por exemplo, que, com sua retoricazinha de merda, acha um crime o apê de Geddel, mas não diz uma sílaba sobre o muro da vergonha, sobre o apartheid físico que seus chefes estão construindo?”, questiona.

Leia o texto na íntegra:

Salvador assiste hoje àquele que é o maior crime urbanístico contra a cidade, desde que Thomé de Sousa comandou a sua construção no ano de 1549. E não vejo ninguém bater na mesa. Nem sequer reclamar. O negócio é chutar Geddel e seu apartamento na Ladeira da Barra. Mas, em comparação com o que o governo estadual está fazendo na Avenida Paralela, o apê de Geddel é pinto.

A Paralela é, hoje, o retrato mais preciso que conheço desta cidade. Tem de tudo: vendedores de crack, sede da Odebrecht, lojas (não vou dizer “igrejas”) evangélicas, oficinas de carros velhíssimos, revendedora de automóveis importados, condomínios, terreiros de candomblé, etc.
Era uma avenida bonita. Quase 20 km de extensão, com um belo canteiro central – um parque longitudinal muito bonito, obra de Burle Marx. Lateralmente, havia lagoas e bosques.

Mas notem que estou empregando os verbos no passado. O governo do Estado da Bahia, com sua estética sindicalista, está destruindo a avenida. Montando ali um trem suburbano, uma ferrovia murada ligando Salvador e Lauro de Freitas.

Mas o mais grave nem é a destruição de um belo parque de quase 20 quilômetros. Claro que isto é um delito absurdo. A delinquência governamental em ação. Que merece todas as minhas vaias. Mas o pior ainda não é isso (somando-se à poluição sonora do futuro pseudometrô).

O pior, como disse, é que teremos uma ferrovia MURADA. Olhem no mapa. A Avenida Paralela passa justamente entre os bairros pobres do miolo da cidade e os bairros privilegiados da beira do mar. Com o MURO, a cidade ficará irremediavelmente apartada. Teremos o nosso MURO DA VERGONHA.

“Nem Soweto em Johannesburgo foi tão segregada durante o apartheid. A Paralela perderá o jardim de Burle Marx para dar lugar a uma ferrovia murada com nove estações que ocuparão toda a largura do canteiro central. Seus moradores, funcionários e trabalhadores terão ainda que suportar a matraca do trem dia e noite” – escreveu o arquiteto Paulo Ormindo, o único baiano que até hoje protestou contra esse crime.

Mas o mais escandalosamente cruel, como disse, é o apartheid. De um lado, vai ficar a cidade pobre tipo Pau da Lima. De outro, a cidade privilegiada tipo Pituba-Costa Azul. Com o muro, a segregação física será oficializada – e por um governo que faz de conta que é de esquerda. Um amigo me lembra que nem mesmo um cachorro vira-lata conseguirá passar de Cabula para Piatã. Comparativamente, o Minhocão paulistano é obra delicadíssima…

Não posso esperar nada da Secretaria de Estado do Meio Ambiente. Este órgão existe apenas para carimbar oficialmente as ordens do governador, um bundão autoritário, como sempre o chamei. Foi a Secretaria, afinal, que assassinou a área de proteção ambiental de Pituaçu, deixando que invasões “white collar” reduzissem o parque ecológico ao tamanho de um dedal. Como se não bastasse, a destruição do parque de Burle Marx foi autorizada pelo Inema, o Instituto Estadual de Meio Ambiente, órgão do governo.

Mas onde estão os baianos, que não protestam? Onde estão os ambientalistas que tempos atrás defenderam as lagoas do lugar, virando inclusive manchete na mídia local? Como o ex-ministro da Cultura, por exemplo, que, com sua retoricazinha de merda, acha um crime o apê de Geddel, mas não diz uma sílaba sobre o muro da vergonha, sobre o APARTHEID físico que seus chefes estão construindo?

Onde estão os ambientalistas que abraçavam chaminé e a velha igrejinha do Rio Vermelho? Todos calados, comprados, cooptados. Onde estão os celebrados artistas locais? Onde estão os contestadores da tropicália? Onde estão Capinan e Caetano Veloso? Cadê a axé music? A cidade que se foda, que o importante são as coreografias do próximo carnaval?

Tudo indica que sim. Política e culturalmente, Salvador vive hoje os seus mais tristes e desprezíveis dias.

[Antônio Risério – novembro de 2016]

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