EXCLUSIVO: Mãe descobre troca de bebês em hospital após 39 anos
Exame de DNA comprova, 39 anos depois, que parturiente teve o filho extraviado na maternidade do Hospital Santa Izabel, em Salvador
Imagine o que é para um homem ser olhado durante quase 40 anos como marido traído. Imagine o que é ser vista durante quase 40 anos como infiel, a mulher que pulou a cerca, pelo menos uma vez, ao longo do casamento de mais de quatro décadas. Agora, ainda num esforço de imaginação, tente supor o que é para uma criança, depois uma adolescente e, hoje, uma pessoa adulta, ser apontada, a vida inteira como a prova irrefutável da suposta infidelidade da mãe.
Esqueça as hipóteses. O que poderia ser o intrincado enredo de uma história de ficção tem nome, sobrenome e endereço fixo, aqui mesmo em Salvador: durante 39 anos, o policial civil Felipe de Assis dos Santos, de 65 anos, a mulher dele, a dona de casa Luzia Neiva da Silva Santos, 62, e a filha Luciane da Silva Santos Alves, 39, viveram esse drama. O casal tem pele clara e características da etnia caucasiana; a filha do meio é negra, de pele escura e cabelos crespos. Somente há poucos meses, um exame de DNA esclareceu o mistério: Luciane foi trocada na maternidade.
E como tudo aconteceu? “Eu lembro como se fosse hoje”, diz dona Luzia, mulher miúda, de longos cabelos lisos e negros. Sentada na sala da casa ampla e confortável de um condomínio de classe média no bairro de Plataforma, subúrbio ferroviário de Salvador, vai contando a história. É como se voltasse no tempo. O marido estava de plantão naquela madrugada de 16 de junho de 1976, quando a bolsa rompeu e as contrações apertaram. Previdente, Felipe já havia pedido a um casal de vizinhos: caso a mulher entrasse em trabalho de parto quando ele estivesse trabalhando, que os amigos fizessem a caridade de levá-la à maternidade. Foi o que aconteceu.
Acompanhada dos vizinhos, Luzia foi para o Hospital Santa Izabel, em Nazaré, bairro próximo ao centro de Salvador. Estava tranquila. Não era “marinheira de primeira viagem”, já era o seu terceiro parto e ela conhecia o passo a passo. Do subúrbio do Lobato – onde morava à época – para a maternidade, gastou pelo menos uma hora. O trajeto foi feito de ônibus. “Não sei como não tive neném no caminho”, surpreende-se, lembrando que o parto evoluiu rapidamente. A criança nasceu ainda na sala de pré-parto, assim que a paciente deitou na maca, por volta das 5h30. O bebê não chorou, nem foi apresentado à mãe, que foi informada apenas quanto ao sexo: “Só me disseram que era uma menina”, lembra Luzia. “Consegui passar a mão na coxa dela, que era bem roliça, mas não me deixaram pegar nem ver”, lamenta.
Horas mais tarde, uma recém-nascida identificada no berçário como filha de Luzia foi levada ao quarto. Foi um choque. Era totalmente diferente dos dois irmãos mais velhos, Fábio e Fernando (este, já falecido). Durante as visitas, ainda no hospital, começaram as insinuações. Vizinhos e parentes não poupavam observações cáusticas. Os comentários variavam entre um sutil “ela não parece com vocês…” aos mais diretos “essa menina não pode ser filha de Felipe”.
‘Só me disseram que era uma menina’ (Luzia)
Foram anos e mais anos de sofrimento, insinuações, discriminações. De nada adiantava contemporizar com a informação de que Luzia tem ascendentes negros. Cansada de arrastar uma culpa que não lhe cabia e disposta a libertar a alma de um peso que, às vezes, lhe deixava paralisada, em março deste ano, Luciane decidiu fazer um exame de DNA. A espera durou 21 dias, quase uma eternidade. Ao ler o resultado (“probabilidade zero” para paternidade e maternidade), ela ficou meio que anestesiada. Ligou para a irmã mais nova e foi logo dizendo: “Eu não sou sua irmã”. Imediatamente, todos os irmãos se mobilizaram. A notícia foi levada a seu Felipe e dona Luzia. Foi uma comoção na família.
Mas, o que poderia significar um passaporte para a libertação, acabou se transformando em um novo tormento. Sim, seu Felipe não foi traído. Verdade que dona Luzia não havia concebido Luciane mediante adultério. Mas, se a filha que criaram não é deles, onde está a criança por eles gerada? E onde estão os pais de Luciane?…
Foi em busca de respostas que Luciane contratou o advogado Mouzar Santos Cardoso, em agosto deste ano. Ela quer encontrar sua família biológica e, para isso, precisa ter acesso à lista das pacientes que deram à luz na maternidade do Hospital Santa Izabel, naquelas primeiras horas do dia 16 de julho de 1976. A procura ainda não obteve êxito. Como se estivesse tratando de um caso envolvendo a troca de um produto de consumo, a direção da Santa Casa de Saúde optou por seguir os trâmites burocráticos e já avisou ao advogado: só disponibiliza informações dos arquivos, mediante mandado judicial.
Felipe e Luzia também estão ansiosos. Não que o resultado do exame de DNA vá mudar o amor que sentem por Luciane, mas querem exercer o direito de saber o paradeiro da filha biológica. “Eu preciso saber se ela está viva, como vive, com quem vive. O que foi feito dela?”, angustia-se Felipe, o mais falante do casal. “Eu queria mesmo era ficar com as duas: a que criei e a que tem meu sangue”, resume.
Para Luciane, a ficha ainda não caiu direito. É com muito esforço e envolvida em um turbilhão de emoções que rememora as humilhações sofridas ao longo do tempo. Não dentro de casa, mas entre os parentes, que nunca perdiam a oportunidade de mostrar que ela era uma estranha no ninho. Uma espécie de grãozinho de café em meio a espigas de milho. “Eu era sempre a pretinha”, diz, enquanto enxuga algumas lágrimas que teimam em escorrem pelo rosto. Até mesmo quando constituía um tratamento carinhoso, aquele “pretinha” pesava – afinal, naquela casa, ninguém nunca foi chamado de “branquinho” ou “branquinha”, ela pontua.
Microempresária do segmento comercial, divorciada e mãe de duas adolescentes (uma de 15, outra com 18 anos), Luciane quer a verdade, embora ainda não saiba exatamente que rumo vai dar à vida, quando (e se) encontrar a família biológica. “Um papel não muda uma vida de uma hora pra outra, mas eu quero saber quem é minha mãe”, decreta.
‘Eu queria ficar com as duas: a que criei e a que tem meu sangue’ (Felipe)
Além de acesso aos arquivos do hospital, o advogado entrou com uma ação de indenização por danos morais sofridos pela família. O processo 0560732-47.2015.8.05.0001 corre pela 8ª Vara Cível e Comercial da Comarca de Salvador. Mesmo conscientes de que não há dinheiro que pague o sofrimento e as humilhações vivenciados por quase 40 anos, Felipe, Luzia e Luciane aceitaram acionar o hospital . “Pelo menos para servir de exemplo e para que eles sejam mais cuidadosos”, justifica seu Felipe.
Antes de concluir a reportagem, pergunto a seu Felipe se ele duvidou da fidelidade de dona Luzia, em algum momento dos 43 anos em que estão casados. Sem pestanejar, ele responde: “Nunca!”. E explica, entre risos, que sempre foi muito vigilante. “Tinha hora pra sair, mas não tinha para chegar. Batia na porta da frente e corria pra entrar pelos fundos. Chegava sem avisar… Como é que ela ia ter chance de pular a cerca?“.
Apesar dessa certeza inabalável, ele diz que vai “esfregar o exame de DNA na cara” de alguns parentes que lhe humilharam. “Vou dizer assim: você tinha razão, a menina não é minha filha mesmo. Mas também não é de Luzia”. Uma espécie de desagravo. Vai ser uma bofetada com luva de pelica. Detalhe: ele nunca quis fazer DNA. Sempre atribuiu a negritude da filha à herança genética da esposa.
NOTA HOSPITAL
Procurada pelo bahia.ba, a Santa Casa da Bahia, gestora do Hospital Santa Izabel, se manifestou através de sua assessoria de comunicação.
Em nota oficial, a instituição informa que não foi notificada judicialmente em relação ao assunto. Garante que a atual direção do HSI não tem conhecimento de caso semelhante na maternidade, que deixou de prestar assistência em 2003. E se comprometeu em verificar no livro de registros se há informações referentes a esse atendimento prestado em 1976.
A instituição não soube informar à reportagem o número de partos diários que eram feitos na maternidade do hospital até o fechamento em 2003.
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