‘É um sistema morto’, diz especialista sobre transporte público de Salvador
Para o arquiteto e urbanista Francisco Ulisses, mobilidade precisa ser repensada com urgência
Que a situação do sistema de transporte público em Salvador é grave, não resta dúvida. Além dos problemas habituais como o preço exorbitante da tarifa, insegurança e desconforto, os usuários estão tendo que enfrentar uma crise sem tamanho na mobilidade da cidade.
O caos sanitário causado pela pandemia também trouxe sérios prejuízos para os cofres das empresas que exploram o transporte na capital baiana. Tanto que a CSN, uma das três empresas que operam no modelo de Sociedade de Propósito Específico (SPE) – em vez de concessionária, como é conhecido – decretou impossibilidade de continuar prestando o serviço e precisou passar por intervenção da Prefeitura de Salvador para não deixar os passageiros que dependem das 60 linhas, que atendem a região de Mussurunga e parte da orla de Salvador sem o transporte.
Ao bahia.ba, o arquiteto e urbanista especializado em transporte público e professor aposentado da Ufba Francisco Ulisses Santos Rocha disse que, para evitar ainda mais transtorno e a paralisação total do sistema, é preciso mudanças urgentes.
Como sugestão, ele cita a imediata execução do plano de mobilidade de Salvador, do qual participou como coordenador. Além disso, ele também fala sobre a necessidade de união entre municípios, estados e união, e de uma gestão que integre a mobilidade em toda a Região Metropolitana. Confira a entrevista:
Na sua visão, qual é o maior problema do transporte público hoje em Salvador ?
O transporte está em crise no Brasil todo. A pandemia trouxe uma queda de demanda no início de 80% e hoje em Salvador gira em torno de 40%. Nós temos um modelo calcado no financiamento do transporte apenas na tarifa, então menos passageiros, menos receita. Isso gera um buraco, uma defasagem financeira enorme. Isso acontece em todo Brasil e Salvador não foge à regra. Não podemos sustentar apenas um sistema com a tarifa. É um modelo insustentável. Já está caduco há muito tempo. Não se pode deixar o passageiro sustentar todo o sistema. Se você analisar o modelo fora do Brasil, principalmente na Europa, o usuário paga apenas uma parte da tarifa, algo em torno de 40% a 50%, já aqui 100% é pago pela tarifa.
O governo federal deve intervir ?
O sistema ferroviário é subsidiado, assim como o metrô de Salvador e como não existe subsídio no sistema sobre pneus, na hora que a receita cai a crise vem. O recente veto do presidente, que poderia trazer R$ 4 bilhões poderia ajudar. Por algum motivo, o transporte é encarado como um serviço essencial, assim como a saúde e a segurança. Tem que haver uma ação geral de estados, municípios e governo federal para sanar o problema.
Como o senhor avalia o projeto de concessão que aconteceu em 2014 ? Foi um erro ?
FU: Eu acho que a gente já tinha um sistema que estava desfasado. Tinham 19 empresas trabalhando sobre um regime precário de permissão. Não tinha regras, a tarifa era definida pelo prefeito sem nenhum parâmetro claro. A concessão de alguma forma deu um salto de qualidade, reorganizou a cidade em três áreas geográficas, cada área começou a ser operado por uma SPE (Sociedade de Propósito Específico), que é feita especialmente para operar o transporte e quando acabar o contrato ela encerra as atividades. A concessão deu uma melhoria na qualidade, mas não resolveu os problemas estruturais. Em Salvador tivemos um avanço com outros modelos como o metrô. Hoje a política tarifária é uma política boa para o usuário, que pode pegar dois ônibus e um metrô com a mesma tarifa no período de 2 horas. Mas isso também repercute na questão financeira. O metrô fica com algo em torno de 60% e os ônibus com 40%, o que para gera uma redução na receita. Com esse modelo de usuário pagar os custeios, fica mais insustentável ainda.
É possível uma pane total no sistema de transporte de Salvador ?
Nós já tivemos um sinal. Uma das três empresas já faliu, agora só temos duas. Cada empresa desse tem cerca de 700 carros, então é um peso significativo. Já aconteceu de algumas empesas falirem como a Ogunjá e a Ypiranga, mas cada empresa dessa não representava nem 10% do sistema. Hoje uma CSN representa 1/3 do sistema, então fica mais complicado de assumir uma possível licitação. Tem que se pensar em novas formas. Talvez a metropolização do sistema, deixar de ser apenas municipal. Porque hoje temos uma concorrência do sistema metropolitano, disputando passageiros na cidade. Tem muita coisa a ser pensada. Do jeito que está e da forma que está não pode continuar. Não podemos mais otimizar esse sistema, ele já está morto.
Uma crítica recorrente contra as empresas é a falta de transparência. Por que isso acontece ?
As empresas não evoluíram em termos de gestão. Tivemos mudanças como a bilhetagem eletrônica, integração, multimodalidade, mas há também uma defasagem em termos gestão, assim como no poder público. É no momento de crise que a gente tem que encontrar novas alternativas. Vivemos a tempestade perfeita na mobilidade. Empresas ineficientes e queda de demanda acentuada. A pandemia agravou um problema que já existia. Aqui em Salvador foram vários Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) na tentativa de solucionar o problema, com intervenção do Ministério Público, mas chegou a um esgotamento completo. Agora é o momento de pensar diferente. Não adianta pensar em resolver o problema com as mesmas fórmulas.
Como sanar o problema a curto prazo ?
A curto prazo a Prefeitura está fazendo, que é assumir a área da CSN. As ações estão sendo tomadas. Temos que pensar no que fazer e ver quanto tempo isso vai durar. Podemos também incentivar mais corredores para ônibus, investir em informação e tecnologia, uso do big data, novas formas de contratação de empresas.Vimos experiências interessantes na América Latina como Chile e Colômbia, onde os contratos de concessão são divididos por dois, entre os fornecedores dos veículos e outro para o operador, esse é um caminho a ser seguido. Aqui a licitação é feita para a empresa comprar e operar os veículos. Além disso, os aplicativos tem que ser incorporados na rede e integrados com o sistema, assim como investimentos em mobilidade ativa, como a bicicleta e o pedestre, e incentivar a eletrificação da frota. Um passo importante é focar em um novo modelo de governança, com uma gestão única da mobilidade de dimensão metropolitana. Por que a tendência do sistema é esse, já temos um metrô de caráter metropolitano, assim como um monotrilho que vai ser integrado a uma rede metropolitana. Sair dos limites municipais é uma possibilidade.
E a longo prazo, o que se pode fazer ?
Existe um plano de mobilidade de médio a longo prazo, com horizontes diversos para os anos de 2025, 2032 e 2049. Em termos de propostas para mobilidade Salvador está muito bem servida. Nos temos um plano que muitas cidades do país não tem. Os planos estão aí, falta implanta-los. Podemos citar por exemplo, o BRT, o monotrilho do Subúrbio, como ideias do plano de mobilidade. Salvador está com todo o planejamento feito para a mobilidade. É claro que a pandemia trouxe mudanças, que talvez causem reflexo no padrão de mobilidade. A gente não sabe exatamente o que vai acontecer no pós-pandemia, o que o trabalho remoto e o medo de aglomeração pode gerar. Com certeza teremos mudanças e isso tudo tem que começar a ser pensando de alguma forma.
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