Publicado em 14/08/2025 às 17h06.

Desconhecimento, silêncio e impunidade: a sistemática violência contra a mulher na Etiópia

Dentre os crimes relatados no estudo, os mais praticados foram estupro em massa, gravidez forçada e praticas de tortura sexual

Júlia Cezana
Foto: Reprodução / Médicos Sem Fronteiras

 

Nota ao leitor: Essa matéria contém informações de conteúdo sensível. Recomendamos leitura consciente.

 

O mais novo relatório conjunto entre o Médicos pelos Direitos Humanos e a Organização para Justiça e Responsabilização no Chifre da África denuncia os diversos atos de violência contra a mulher cometidos por milhares de militares durante o conflito em Tigré (ou Tigray) na Etiópia. 

O novo relatório (“Você Nunca Será Capaz de Dar à Luz: Violência Sexual e Reprodutiva Relacionada ao Conflito na Etiópia”) é o estudo mais abrangente até hoje a utilizar evidências médicas para compreender a intenção dos perpetradores na região de Tigray. Ele foi realizado através de dados coletados em mais de 600 entrevistas com profissionais de saúde locais, quase 50 depoimentos diretos e análise de mais de 500 prontuários médicos, coletados entre 2020 e 2024.  Dentre os crimes relatados no estudo, os mais praticados foram  estupro em massa, gravidez forçada e praticas de tortura sexual, como a introdução de objetos cortantes nas partes intimas das mulheres, o que a impederia de ter filhos. Uma enfermeira que atua na região do Tigré afirmou que 

“Eles inseriram papéis com cartas escritas na vagina das mulheres, causando danos, e eu ainda tenho uma foto dessas cartas. Vimos isso em mais de uma paciente. As cartas encontradas em suas vaginas detalhavam um plano de vingança por 1990 [Guerra Etiópio-Eritreia; 1990 refere-se ao calendário etíope, equivalente ao ano de 1998 no calendário gregoriano], com o objetivo de destruir o povo de Tigré. Ameaçavam erradicar a linhagem tigrina, prejudicar esposas tigrinas e impedir que mães tigrinas dessem à luz. Muitos objetos estranhos, como pedras e mais de 10 pregos, foram encontrados em seus úteros. [Esses objetos permaneceram] dentro da vagina por vários dias. Eles mencionaram que todo o pessoal militar eritreu recebeu instruções para ferir a vagina das mulheres tigrinas”.

Esse relato é um dos vários utilizados para compor o estudo, que identificou um padrão indicando intenções genocidas claras, com o objetivo explícito de destruir a capacidade reprodutiva das mulheres na região e, para além disso, de destruir comunidades e a etnia tigrina. O documento detalha ainda como as forças armadas etíopes e eritréias visavam impedir nascimentos futuros entre os tigrinos e exterminar o grupo étnico.

De acordo com o artigo 2 da Convenção das Nações Unidas para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio (1948), conceitua-se por genocídio: qualquer dos seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal:

  1. matar membros do grupo;
  2. causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo;
  3. submeter intencionalmente o grupo a condição de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial;
  4. adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio de grupo;
  5. efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo.

 

Para além do supracitado, o estudo ainda mostrou como a existente impunidade em casos de violência sexual e reprodutiva na Etiopia está permitindo a perpetuação de violência contra a mulher e a disseminação de atrocidades, incluindo crimes contra a humanidade e crimes de guerra que se extende para as regiões de Amhara e Afar. Abaixo, vamos elucidar a respeito do longo conflito etiope.

O conflito na Etiópia

O conflito em Tigray, na Etiópia, teve início em novembro de 2020, envolvendo o governo etíope e a Frente Popular de Libertação do Tigray (TPLF), com a participação das forças militares eritreias, chamadas para apoiar o Exército etíope, além de diversas milícias étnico-regionais, especialmente das regiões de Amhara e Afar. Somando todos os combatentes, estima-se que aproximadamente 1 milhão de combatentes estavam mobilizados e ativos na região. Foram dois anos de violência praticamente ininterrupta na Etiópia, marcada por formas generalizadas e severas de violência sexual e reprodutiva, assim como por outras violações de direitos humanos cometidas por atores de diversas partes. 

Para além do supracitado, a população enfrentava outros tipos de violações de direitos básicos: houve a tentativa, por parte do governo central, de impedir a entrada de recursos essenciais à população na zona de conflito, como água, medicamentos, alimentos, energia elétrica e telecomunicações, incluindo alimentos, medicamentos, água, energia elétrica e até telecomunicações. 

Apesar das várias tentativas de estabelecer um cessar-fogo entre as partes, a assinatura de um acordo se deu apenas em novembro de 2022, com o Acordo de Cessar-Fogo (CoHA) entre o governo etíope e a TPLF, mas que o governo da Eritreia não é signatário. Apesar do cessar-fogo, a violência persistiu e, infelizmente, são incontáveis os relatos de episódios de violência sexual e reprodutiva, motivados por linhas étnico-políticas, perpetrados por atores militares nas diferentes regiões afetadas. 

A situação atual 

Atualmente, pode-se observar um padrão de violência sexual contra a mulher nas regiões etíopes de Amhara e Afar, padrão este que indica que esses atos foram motivados tanto pela presença de um conflito ainda em curso, quanto pela falta de responsabilização dos crimes cometidos do conflito em Tigray. Nas regiões supracitadas, os combates entre o exército etíope e milícias resultaram em centenas de mortes e ferimentos de civis, incluindo ataques a refugiados e a infraestrutura civil, como hospitais. Ainda, as autoridades assediaram, vigiaram e prenderam, defensores de direitos humanos, figuras importantes e  jornalistas, criando um ambiente cada vez mais hostil e restritivo para a imprensa. Inclusive, os meios de comunicação permaneceram sob forte controle governamental, e muitos jornalistas precisaram escolher entre a autocensura, violência, a prisão, ou o exílio.

A situação dos direitos humanos na Etiópia é extremamente crítica. Atos extremamente violentos ainda são cometidos por forças governamentais, milícias e grupos armados não estatais, tanto nas áreas afetadas pelo conflito quanto em outras partes do país. A prática generalizada e sistemática de violência sexual e reprodutiva por atores eritreus em Tigray é considerada crime contra a humanidade. No entanto, esses atos foram e continuam sendo cometidos com impunidade, não havendo responsabilização no atual processo de justiça etiope. Para além disso, há grande descaso e falta de transparência para aqueles que buscam justiça e responsabilização. Cinco organizações de direitos humanos foram suspensas pelo governo da Etiópia, país onde, infelizmente, a impunidade continua sendo a norma.

A falta de justiça pelos crimes cometidos em Tigray e a subsequente perpetuação para outras regiões da Etiópia levantam um alarme da necessidade urgente de que se lide com os problemas na região. Aqui, cabe citar que, quanto à resposta internacional, os parceiros internacionais da Etiópia continuam relações intergovernamentais de forma normal, sem dar a devida atenção aos abusos em curso. 

O relatório publicado no dia de ontem demonstra falhas de diversos atores, nacionais e internacionais, em cumprir adequadamente suas obrigações perante o direito internacional humanitário. Ademais,  deixa claro a necessidade ação internacional imediata para que os crimes sejam documentados, os autores sejam responsabilizados e para que haja a construção de um sistema de apoio às sobreviventes, os quais, atualmente, estão quebrados por falta de financiamento. 

Júlia Cezana

Graduada e mestre em Relações Internacionais, com foco em Geopolítica; tem experiência em análises conjunturais para diversos institutos de pesquisa da PUC MINAS, Universidade Federal de Minas Gerais e Universidade de Groningen, na Holanda; já trabalhou na pesquisa e redação de clippings e notícias para a base de dados CoPeSe, parceria com o programa de Voluntariado das Nações Unidas.

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