Publicado em 06/09/2025 às 05h30.

Vício em pornografia: especialistas debatem riscos e consumo saudável

No Dia do Sexo, psicanalista e sexóloga alertam para sinais de dependência, impactos psicológicos e importância da educação sexual

João Lucas Dantas
Foto: Freepik

 

Um tema sensível e muito debatido nos últimos anos, no campo da saúde mental, é o vício em conteúdo pornográfico. O ator Terry Crews (Todo Mundo Odeia o Chris) e a cantora Billie Eilish já se abriram publicamente sobre problemas relacionados ao consumo excessivo desse tipo de produção. Neste Dia do Sexo (6/9), o bahia.ba conversou com especialistas para esclarecer se existe consumo saudável e como reconhecer dependência.

Em termos de manutenção da saúde mental, a psicanalista Luci Souvignet explica que existem níveis de consumo saudável de conteúdo adulto e que é importante reconhecer e distinguir diferentes situações. “O debate sobre a pornografia frequentemente cai numa polarização ineficaz de ‘bom’ versus ‘mau’. Do meu ponto de vista, a questão central nunca é o objeto, o ato ou o conteúdo em si — seja pornografia, comida ou redes sociais —, mas a relação que estabelecemos com ele”, diz a profissional, que também mantém um canal no YouTube.

“O ponto nevrálgico é a intenção e a consciência por trás do consumo. Por que você busca esse conteúdo? É por curiosidade, exploração da própria fantasia, complemento para a vida sexual a dois ou uma forma de relaxamento consciente? Se a resposta estiver nessa esfera da escolha e do prazer, podemos falar em uso saudável. O problema surge quando o consumo vira fuga, um anestésico para dores emocionais, solidão ou vazio existencial. Aí a pornografia deixa de ser um acessório e passa a ser uma muleta — é nesse mecanismo que reside o potencial de dano à saúde mental e aos relacionamentos, podendo interferir até no trabalho”, acrescenta Luci.

Para a sexóloga, terapeuta especialista em sexualidade e educadora Gel Salles, a pornografia pode, inicialmente, ser tanto uma via para prazer instantâneo quanto uma fonte de dificuldade. “Isso depende muito da intensidade do consumo. Vale ressaltar que tudo o que gera expectativas irreais sobre intimidade, prática sexual, padrões ou estereótipos físicos, não pode ser considerado positivo”, esclarece.

“A pornografia, por si só, não precisa ser consumida em excesso para causar impactos na vida de alguém. Basta assistir a um conteúdo e sentir-se frustrado ou insatisfeito com, por exemplo, o próprio desempenho sexual ou o corpo. Isso pode ser um gatilho silencioso e, posteriormente, afetar a saúde mental”, pontua Gel, que também atua nas redes sociais.

Como identificar sinais de dependência

É importante reconhecer sinais de dependência para saber se há, de fato, um vício. É preciso lembrar que consumir pornografia por si só não caracteriza um problema — mas é possível separar quando a prática passa a ser compulsiva.

Do ponto de vista de Luci, a linha que separa uso e vício é a perda da liberdade. “O sinal mais claro de dependência é a presença de uma necessidade emocional que impulsiona o consumo. A pessoa não assiste mais por escolha livre, mas por compulsão, tentando regular um estado interno de desconforto, como ansiedade, estresse ou tristeza”, aponta.

“Para detectar essa transição, é necessária auto-observação honesta. Pergunte-se: ‘Consigo passar uma semana ou um mês sem consumir e ficar genuinamente bem com isso?’. Se a ausência do conteúdo gera irritabilidade, ansiedade, mudanças bruscas de humor ou a sensação de que ‘algo está faltando’, é um forte indício de dependência”, acrescenta a psicanalista.

O comportamento problemático pode se manifestar de várias formas: a pessoa passa a precisar de conteúdos cada vez mais intensos ou de mais tempo de consumo para obter o mesmo efeito — um processo de escalonamento. Com o tempo, responsabilidades profissionais, sociais ou familiares podem ser negligenciadas. Aparece também o secretismo, quando o indivíduo esconde o comportamento por vergonha ou culpa. Além disso, é comum o fracasso nas tentativas de reduzir ou interromper o consumo, mesmo após esforços repetidos.

Para Gel, o vício em pornografia pode ser tanto causa quanto consequência. “Nas discussões atuais, há foco nas consequências, o que pode levar à marginalização do tema sem indicar soluções. Na maior parte das vezes, concentra-se nos sinais e sintomas de quem já está consumido pelo vício”, disse.

Os sintomas costumam se manifestar na falta de controle e na dificuldade para parar ou reduzir o consumo. “Outra característica é a negligência em áreas da vida — trabalho, estudos, relações pessoais e responsabilidades. O isolamento social é um sintoma bastante presente. A partir dele, surgem duas questões antagônicas: descuido com a aparência ou excesso de cuidado para se adequar a padrões”, observou a sexóloga.

Foto: Freepik

 

Influência nas expectativas sobre relacionamentos reais

Um problema recorrente do consumo excessivo de conteúdo adulto são as expectativas irreais sobre sexo, relacionamentos e a autoestima. “É inegável que o acesso irrestrito e o volume de pornografia hoje podem criar expectativas irreais. Pornografia é fantasia, uma construção cinematográfica com atores, roteiros e edições. O perigo é consumi-la inconscientemente e tomá-la como manual para a vida real, o que gera frustrações, ansiedade de performance e desconexão da intimidade genuína — que envolve vulnerabilidade, imperfeição e conexão emocional, e não só performance”, afirma Luci.

Dados do site PornHub indicam que, em 2022, o Brasil ficou em 10º lugar entre os países que mais consomem pornografia no mundo: 39% do público era feminino e 61% masculino. A audiência concentrou-se principalmente entre jovens: 41% tinham entre 18 e 24 anos, 26% entre 25 e 34 anos e 14% entre 35 e 44 anos.

Segundo Luci, o apelo entre o público jovem se explica pela fase de transição em que se encontram. “Os jovens estão em processo de conhecer o próprio corpo, entender a sexualidade, decifrar sinais de desejo e aprender a se relacionar. A internet, com anonimato e acesso ilimitado, oferece um campo de exploração que parece seguro e livre de julgamentos”, explicou.

“A pornografia, nesse contexto, pode funcionar como uma ‘educação sexual’ informal, preenchendo lacunas deixadas por uma educação formal muitas vezes falha. Oferece um vislumbre, ainda que distorcido, do que é o ato sexual, aliviando ansiedade e curiosidade naturais da idade. O problema é que essa ‘educação’ vem sem manual sobre afeto, consentimento e intimidade — elementos que deveriam ser transmitidos também em casa”, pontuou a psicanalista.

Quanto aos homens serem predominantes no consumo, a especialista aponta haver uma miscelânea de fatores biológicos e, principalmente, culturais. “Existe uma socialização histórica que incentiva a expressão sexual masculina de forma mais visual e direta, enquanto reprime a feminina. A masculinidade é frequentemente associada à performance e à potência sexual, e a pornografia reforça esses estereótipos”, diz Luci.

Gel reforça a importância da educação sexual para uma transição saudável ao início da vida adulta. “É fundamental trabalhar a questão pela via da educação e da orientação, protegendo o indivíduo. Mesmo com várias fontes de conteúdo, se a pessoa estiver preparada para identificar o que é nocivo, fará uma leitura crítica”, afirmou.

“Nesse sentido, a educação sexual atua não só pela disseminação de informações por profissionais qualificados e em rede, mas também pelo apoio e aceitação da família. Isso deve ocorrer na educação formal, com filtros de idade e atenção à forma de disseminação do conteúdo. É essencial pensar na educação como ferramenta de proteção”, acrescentou Gel.

Consumo saudável

Também é importante não vilanizar o consumo: quando feito com moderação, ele não é necessariamente nocivo. “As redes sociais, por exemplo, têm impacto igual ou até maior na criação de expectativas irreais sobre corpo, alimentação, relacionamentos — basicamente tudo — do que o conteúdo pornográfico, que está ligado ao ato sexual. Culpabilizar apenas a pornografia é uma visão limitada, que impede olhar para o cerne da questão: a condição psicológica da pessoa. Muitas vezes, a busca pela perfeição é central no desequilíbrio emocional, e a comparação torna-se constante”, analisou Luci.

“Se tirarmos a pornografia sem olhar para o fator psicológico, o vício será substituído por outro comportamento igualmente prejudicial e socialmente aceito — trabalhar em excesso, passar horas nas redes sociais ou praticar exercícios compulsivamente”, completou.

Para Gel, é crucial identificar as causas da compulsão antes de tratar apenas suas consequências. “Do meu ponto de vista, com base em pesquisas e na experiência clínica, é mais eficaz trabalhar as causas — não só os sintomas — para entender por que o indivíduo recorre ao consumo compulsivo de pornografia ou conteúdos explícitos”, ponderou a terapeuta.

“Acredito que isso leva a ações voltadas à educação e à orientação do indivíduo, envolvendo família e meio social, que influenciam diretamente nas escolhas pessoais”, concluiu Gel.

 

João Lucas Dantas

Jornalista com experiência na área cultural, com passagem pelo Caderno 2+ do jornal A Tarde. Atuou como assessor de imprensa na Viva Comunicação Interativa, produzindo conteúdo para Luiz Caldas e Ilê Aiyê, e também na Secretaria Municipal de Cultura e Turismo de Salvador. Foi repórter no portal Bahia Econômica e, atualmente, cobre Cultura e Cidade no portal bahia.ba. DRT: 7543/BA

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