Publicado em 15/09/2025 às 14h30.

‘A Longa Marcha’ é o terror de uma sociedade transformada em espetáculo

Uma adaptação cinematográfica triunfal de Stephen King que expõe crueldade, resistência e a desumanização em uma competição distópica televisada

João Lucas Dantas
Foto: Lionsgate

 

Em 1976, a dupla sertaneja Milionário & José Rico cantava: “Nesta longa estrada da vida, vou correndo e não posso parar”. O que descreve perfeitamente a premissa de A Longa Marcha: Caminhe ou Morra (The Long Walk), de Francis Lawrence, que estreia nos cinemas brasileiros na próxima quinta-feira (18).

O filme, baseado no livro homônimo de Stephen King, extrapola as ideias da letra da dupla sertaneja, já que vemos uma competição em que 50 jovens homens são voluntariados para caminhar, sem parar, e sem linha de chegada, para não ser baleado durante uma brutal prova de resistência, que é transmitida para milhares de espectadores ao redor dos Estados Unidos, em troca de grande premiação financeira.

O livro

A Longa Marcha é um dos primeiros romances de Stephen King, publicado em 1979 sob o pseudônimo Richard Bachman. Escrito ainda na juventude do autor, durante seus anos de faculdade, o livro já trazia os elementos que mais tarde marcariam sua carreira: tensão psicológica, crítica social e personagens mergulhados em dilemas existenciais. Diferente da maioria de suas obras, não há sobrenaturalidade aqui. O terror vem da realidade brutal de uma competição distópica organizada por um governo autoritário.

A narrativa acompanha Ray Garraty, um jovem de 16 anos do Maine, que se junta a outros noventa e nove rapazes para participar da competição. Trata-se de um evento anual no qual os competidores precisam caminhar sem parar, mantendo uma velocidade mínima. Reduzir o passo é arriscar-se a receber advertências; três delas significam a execução sumária no próprio percurso, sob os olhos atentos dos soldados que acompanham o evento. O último sobrevivente recebe como recompensa o “Grande Prêmio”: qualquer desejo que queira ver realizado pelo resto da vida.

Imagem: Reprodução/ Redes sociais

 

Mais do que uma corrida pela sobrevivência, o livro se torna um mergulho na mente dos personagens. Ao longo da caminhada, alianças e rivalidades surgem, revelando não só o limite do corpo humano, mas também da sanidade diante da morte constante dos companheiros. A crítica de King é direta: uma sociedade capaz de transformar a morte em espetáculo é também uma sociedade profundamente desumanizada.

Apesar de ter sido lançado sob pseudônimo, o livro ganhou status e é considerado por muitos leitores um dos trabalhos mais fortes do autor. Sua influência é perceptível em outras histórias distópicas posteriores, como o mangá Battle Royale ou os livros de Jogos Vorazes. Até hoje, o romance é lembrado tanto pela simplicidade da trama quanto pela intensidade da experiência que proporciona, sustentada quase inteiramente pela tensão da caminhada.

Adaptação cinematográfica

Para adaptar o romance pela primeira vez, a tarefa ficou a cargo do roteirista JT Mollner e da direção cuidadosa de Francis Lawrence, conhecido por seu trabalho em Constantine (2005) e por ter encabeçado a franquia Jogos Vorazes para os cinemas. E que nome melhor poderia ser escolhido para assumir a tarefa do que alguém que dedicou uma década inteira de sua carreira adaptando livros sobre uma brutal competição entre jovens que só permite um sobrevivente ao fim?

Longe da leveza e dos dramas adolescentes da saga de Katniss Everdeen, aqui o cenário e o tom são outros. Todo o sadismo e a crueldade literária de Stephen King são temperos em uma trama que já é, por si só, naturalmente maldosa com os espectadores, porém a crítica social nunca esteve tão moderna. Se esse enredo publicado no final da década de 1970 já dialogava com a realidade da “sociedade do espetáculo”, só nos resta imaginar o quanto deixamos de evoluir mesmo após 46 anos passados.

Cada jovem é um voluntário escolhido de um estado dos Estados Unidos, totalizando 50, para caminharem no ritmo de 5 km/h, no mínimo, sem parar. Sem linhas de chegada. Para os maratonistas acostumados a grandes distâncias nas corridas de rua que acham que seria moleza, pode esquecer a ideia. O filme não perde tempo com maiores contextos, apenas um breve texto inicial, e já nos joga de cara no olho do furacão.

O país norte-americano foi atingido por uma grande guerra que causou um colapso econômico e, no momento, vive uma repressão de uma ditadura militar. O pano de fundo que deu contexto à competição é tratado como um futuro distópico, mas para a América Latina segue sendo um passado muito presente. Porém, aí entra a sagacidade de Stephen King, que foi muito bem adaptada nos roteiros de Mollner. Imagine que os competidores não podem parar, em nenhum momento, para nada. Eles têm direito a três advertências antes de receberem o “bilhete” de uma passagem só de ida.

No início, tudo parece razoável, todos cheios de saúde e disposição. Mas e como fica quando as necessidades fisiológicas começam a aparecer? Todo o limite da escatologia que uma competição dessa poderia causar é muito bem explorado durante as 1h48m de duração. Todas as consequências de se estar andando centenas de quilômetros a fio começam a dar as caras: tornozelos torcidos, pulmões falhando, exaustão extrema, a sanidade posta em jogo, além dos competidores que incitam violência e jogos mentais para desestruturar os colegas, já que, afinal de contas, só pode restar um ao fim.

Não importa se está chovendo torrencialmente, se está um frio congelante ou um sol de enlouquecer qualquer um, os competidores não podem desistir em nenhum momento, nem diminuir o ritmo, enquanto tudo está sendo televisionado nacionalmente e monitorado de perto pelos militares.

Foto: Murray Close/ Lionsgate

 

Elenco impecável

O filme é protagonizado por dois jovens atores: Cooper Hoffman (no papel de Raymond Garraty) e David Johnsson (interpretando Peter McVries). Para quem não ligou os nomes ainda, o primeiro é filho do saudoso Philip Seymour Hoffman (1967 – 2014), um dos grandes atores da história do cinema americano. Já Johnsson é um cometa em ascensão. Ele já tinha brilhado como coadjuvante em Alien: Romulus, no último ano, e aqui faz o filme respirar lado a lado com seu parceiro.

Um dos grandes elementos que Stephen King explora perfeitamente em suas obras é o poder da amizade. Clássicos como Um Sonho de Liberdade, Conta Comigo, À Espera de Um Milagre, It: A Coisa e tantos outros mostram isso, e aqui não é diferente. O coração do filme bate forte com a improvável amizade que é feita pelos personagens de Hoffman e Johnsson, que se dão bem de cara no começo da corrida.

Um clichê muito comum nesse tipo de história é vermos a batida dos bonzinhos contra os malvadões. Aqui, todos operam em uma zona cinzenta. Ninguém é 100% bom nem 100% mau. As pessoas vivem em uma realidade desesperadora e não veem outra opção a não ser se sujeitar ao ato mais desumano possível, na esperança de poder sustentar suas famílias e suas vidas.

Apesar da dupla de protagonistas ser o destaque, juntam-se ao grupo outros atores iniciantes, cujos personagens também formam uma espécie de grupo com os dois, e que roubam a cena em alguns momentos: Tut Nyuot (como o religioso Arthur Baker), Garrett Wareing (como o inteligentemente chato Stebbins), Ben Wang (como o elo fraco Hank Olson), entre outros tantos com participações mais breves, mas não menos importantes para o andamento da trama.

Outra grande vitória do filme se chama Mark Hamill. O eterno Luke Skywalker (Star Wars) vem se reinventando na terceira idade e pode finalmente sair das asas do personagem que marcou sua vida, para interpretar papéis que fogem totalmente do estereótipo do bonzinho a que ficou atribuído durante tanto tempo. Aqui, faz o Major, que é o grande responsável pela corrida, e que o tempo todo lembra os personagens do quão descartáveis eles são.

O elo entre relações

Os personagens Garraty e McVries têm passados muito diferentes, mas ambos se unem por uma vontade maior de ajudar ao próximo, enquanto descobrimos mais sobre os traumas de infância que os assombram e que os fizeram se sujeitar a essa situação. Tudo isso é explorado e colocado à prova por uma direção inteligente de Lawrence, que é esperta em chocar de cara para, lentamente, deixar a violência mais distante dos olhos do espectador, e focar na reação do grupo a toda aquela brutalidade dilacerante.

A dor de ver os amigos e colegas partindo de maneiras brutais — e criativas — um a um. Afinal de contas, ao fim da corrida, valerá a pena ter ganho ou é melhor desistir e se juntar ao destino dos demais? Tudo isso são questionamentos e reflexões provocados a todo tempo para a plateia. Não há respostas fáceis, e o sofrimento só cresce ao longo do filme. O terror dá lugar a fortes emoções, em que o público é colocado a todo tempo na pele daqueles que seguem caminhando. O triunfo do filme é justamente o drama e os dilemas morais das relações construídas ali.

Ao final, se torna muito difícil não se emocionar a cada personagem que é, literalmente, eliminado, e a ansiedade provocada de saber que eles vão cair. Os monólogos finais de Hoffman e Johnsson são carregados de emoção, e provam a capacidade que ambos têm de seguir uma bonita carreira no futuro. Qualquer projeto será sortudo em ter qualquer um dos dois a partir de agora.

O diretor de fotografia Jo Willems capta imagens lindas, nas devastadas estradas retratadas ao longo do filme, ao mesmo tempo que nos angustia com a presença constante das armas e do poderio militar que cerca os participantes durante todos os segundos da prova, através de luzes fortes, silhuetas marcadas e a escuridão bem trabalhada.

Foto: Murray Close/ Lionsgate

 

Reflexo da sociedade do espetáculo

A “Sociedade do Espetáculo” é um conceito do filósofo francês Guy Debord que descreve uma sociedade capitalista onde a vida real é substituída por uma coleção de imagens e aparências. O espetáculo, mediado pela mídia e pela indústria cultural, transforma tudo em mercadoria, levando à passividade, alienação e à valorização do “aparentar” em detrimento do “ser”.

A crítica de Debord analisa como as relações sociais se tornam cada vez mais baseadas em imagens mercantilizadas, alienando o indivíduo e bloqueando seu pensamento crítico. Claro que a história ser motivada para o entretenimento televisionado de milhões de pessoas é uma grande crítica a uma constante realidade do poder da televisão, dos reality shows e, hoje em dia, mais do que nunca, das redes sociais. Mas também é um grande comentário sobre a violência perpetuada, que nunca acaba.

Em 1963, Malcolm X deu um forte discurso após o assassinato do então presidente dos EUA, John F. Kennedy: “Eu não acho que alguém aqui negaria que, quando você solta as galinhas pela manhã no seu quintal, elas vão voltar à noite para o seu quintal, não para o quintal do vizinho. Acho que este é um exemplo claro das galinhas do diabo voltando para casa para se empoleirar. As galinhas que ele soltou, a violência que ele praticou em outros países, aqui e no exterior, voltou para cobrar um dos seus”.

A Longa Marcha: Caminhe ou Morra dialoga muito com o comentário acima a respeito da violência, e isso fica claro após um final que diz muito a respeito do momento que o mundo vive. O filme é mais um triunfo como adaptação de Stephen King e pode, facilmente, figurar entre os mais emocionantes, tal qual À Espera de Um Milagre. Portanto, preparem os lenços e aproveitem um dos grandes filmes do ano no cinema.

João Lucas Dantas

Jornalista com experiência na área cultural, com passagem pelo Caderno 2+ do jornal A Tarde. Atuou como assessor de imprensa na Viva Comunicação Interativa, produzindo conteúdo para Luiz Caldas e Ilê Aiyê, e também na Secretaria Municipal de Cultura e Turismo de Salvador. Foi repórter no portal Bahia Econômica e, atualmente, cobre Cultura e Cidade no portal bahia.ba. DRT: 7543/BA

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