Publicado em 27/10/2025 às 00h00.

‘Springsteen: Salve-me do Desconhecido’ é cinebiografia intimista, mas pouco marcante

Jeremy Allen White encarna Bruce Springsteen em adaptação que valoriza a intimidade do álbum Nebraska, mas oscila entre acertos e excessos

João Lucas Dantas
Jeremy Allen White como Bruce Springsteen
Foto: 20th Century Studios

 

Springsteen: Salve-me do Desconhecido, dirigido por Scott Cooper, a cinebiografia do rockstar Bruce Springsteen, interpretado por Jeremy Allen White (da série The Bear), é uma homenagem intimista e profunda ao ícone da música norte-americana, porém, por vezes, cansativa.

Durante as duas horas de duração do longa, que estreia nos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (30), vemos o processo complexo de produção do álbum Nebraska, de 1982. O filme adapta o livro Deliver Me from Nowhere: The Making of Bruce Springsteen’s Nebraska, de Warren Zanes.

Antes de entrar em minúcias sobre o filme, é necessária uma breve contextualização sobre o disco retratado. Em 1980, o cantor já tinha um status lendário na música mundial. Born to Run já havia sido um imenso sucesso cinco anos antes, e o álbum duplo The River já havia consolidado ainda mais esse momento, com o single Hungry Heart no topo das paradas.

Lotando estádios por todo os Estados Unidos, o roqueiro optou por fazer uma breve “pausa” na sua sequência de hits e se dedicou a olhar para dentro, em um processo de isolamento autoimposto por um quadro de depressão, que viria a resultar nas composições e gravações do acústico Nebraska, lançado em 1982, quando gravou sozinho, no quarto de sua casa, apenas com um violão e uma gaita.

Longe dos hits animados, esse foi um álbum imperfeito, profundo, fruto de uma espécie de pequena crise existencial, olhando para os traumas de sua infância pobre e conturbada, e para o momento de depressão que enfrentava. O resultado é algo completamente fora da curva na carreira, intimista na trajetória do cantor. Se o objetivo da adaptação biográfica era captar essa essência, teve sucesso. O longa também é cheio de imperfeições, porém com decisões artísticas muito mais quadradas do que a criação de Bruce Springsteen.

Bruce Springsteen durante gravação de Nebraska

 

Acertos e tropeços

Antes de elaborar mais sobre a trama, é necessário afirmar o acerto na escolha de Jeremy Allen White. O ator conhecido por projetos na televisão captou bem o espírito rebelde e inquieto do cantor, apesar de não se assemelhar fisicamente. Em outros tempos, acredito que um jovem Kevin Costner seria a escolha perfeita para o papel.

Ao contrário de adaptações fracas de grandes ícones da música, como o Freddie Mercury retratado em Bohemian Rhapsody (2018), aqui o ator canta de verdade e emula, de forma assustadoramente similar, a voz do ícone do rock, e isso, por si só, já é um feito notável.

O elenco de coadjuvantes também é notável. Jeremy Strong (da série Succession) faz o empresário Jon Landau, com toda a timidez e o acalento do amigo que ele foi. Stephen Graham (de Adolescência) interpreta o pai, Douglas Springsteen, com todas as falhas morais e presença intimidadora.

Paul Walter Hauser (Cobra Kai) faz o técnico de som Mike Batlan, papel que não exige muito, nem do ator, nem do roteiro. O único outro destaque seria a jovem Odessa Young (Black Rabbit), que interpreta o interesse romântico do cantor, com a leveza necessária para equilibrar o clima depressivo do protagonista.

Já a E Street Band, banda de apoio de Bruce, é quase inexistente aqui, aparecendo apenas em breves passagens sem fala e menções.

Em termos da trama, é tudo muito simples, por vezes simplório. O filme começa após o fim da turnê do The River, no final de 1980, e segue até o lançamento do álbum Nebraska, em 1982. O recorte temporal, em si, é acertado, porque seria muita pretensão querer adaptar as quase seis décadas da carreira fascinante de Bruce Springsteen, o que lembra o recente Um Completo Desconhecido (2024), que faz uma escolha criativa semelhante para contar um pedaço da história de Bob Dylan.

Ao contrário dos exemplos citados acima, aqui você não encontrará nenhum grande número musical. Tirando algumas passagens muito breves, que recriam de forma fantástica a época e a grandiosidade dos shows, o foco é ver o protagonista usar sua depressão a favor da música, isolado em uma casa no meio do nada. Assim como o disco original, é um filme de pequenas proporções, intimista, e nisso faz jus ao espírito da obra.

O interesse romântico, no fim das contas, parece algo sem muita expressão para a trajetória do personagem principal, e está lá, talvez, apenas para constar um elemento que poderia ser uma nota de rodapé em uma biografia sobre o cantor. Aqui, ao contrário de muitas cinebiografias de artistas, não vemos grandes crises de estrelismo e abuso de substâncias alucinógenas ou alcoólicas. O grande vilão da vez seria, realmente, a depressão. Afinal de contas, como não se identificar na camada mais humana?

Jeremy Allen White contracena com Jeremy Strong
Foto: 20th Century Studios

 

A empatia pelo homem falho

Um grande mérito do filme, que talvez deva ser creditado mesmo à pessoa Bruce Springsteen, é que o cantor sempre adotou uma atitude pública humilde e pé no chão. Vindo da classe operária, o cantor se tornou popular porque sempre fez música para o povo. O grande foco das músicas do rockstar nunca foi luxos e ostentações absurdas. Sempre contou histórias identificáveis, das camadas sociais mais baixas até os mais bem abastados.

E nisso o filme transporta bem para as telonas. É um personagem muito humano, com falhas cotidianas, como citado acima, sem grandes abusos ou passagens de ira e sem empresários maquiavélicos que querem tomar seu dinheiro. Aqui, o Jon Landau de Jeremy Strong é extremamente empático e verdadeiramente um amigo para o protagonista, algo raro de ver neste tipo de adaptação.

As maiores falhas do filme talvez sejam o didatismo com que lida com o processo criativo do cantor. Sempre reforçando informações ditas em falas, através de estímulos visuais que querem dizer, basicamente, a mesma coisa. Ou vice-versa, já que também vemos a ordem inversa acontecer. Reforçados constantemente pelo uso de flashbacks da infância do Bruce, que buscam, da forma mais didática possível, explicar de onde vieram as tristes letras do álbum.

Mas o cantor está ali, presente a todo momento, com todo seu carisma, falhas, anseios e um grande amor pela arte, que lhe permite se rebelar contra tudo e todos para fazer sua visão acontecer da forma que deseja, através de um Jeremy Allen White que captou a essência do personagem para além de maneirismos baratos.

Foto: 20th Century Studios

 

Aspectos visuais e sonoros

Em termos técnicos, o filme é impecável. A direção de Scott Cooper, também roteirista do longa, que adaptou o livro de Warren Zanes, recria imagens belíssimas e muito fidedignas das décadas de 1950 e 1980, retratadas nas tramas paralelas provocadas pelos flashbacks, com o auxílio da direção de fotografia de Masanobu Takayanagi, que pinta os cenários com cores vibrantes por meio de sua iluminação bem trabalhada.

Os flashbacks em preto e branco, quando vemos lapsos da infância do vocalista são muito bem trabalhados visualmente e dividem bem os recortes temporais trabalhados no longa.

A trilha sonora é embalada, em sua maior parte, pelas músicas do próprio Bruce, o que já abrilhanta a experiência por si só, mas também há composições originais de Jeremiah Fraites, que adicionam uma trilha calma com seus pianos.

O resultado acaba sendo mais uma cinebiografia, gênero que tomou os cinemas nos últimos anos, com uma enxurrada de adaptações da vida real, mas que se beneficia do recorte temporal bem feito e do carisma do personagem adaptado, somado a uma boa atuação do protagonista. Porém, nada que fará o espectador sair do cinema com o sentimento de que viu algo memorável, como poderia ter sido.

João Lucas Dantas
Jornalista com experiência na área cultural, com passagem pelo Caderno 2+ do jornal A Tarde. Atuou como assessor de imprensa na Viva Comunicação Interativa, produzindo conteúdo para Luiz Caldas e Ilê Aiyê, e também na Secretaria Municipal de Cultura e Turismo de Salvador. Foi repórter no portal Bahia Econômica e, atualmente, cobre Cultura e Cidade no portal bahia.ba. DRT: 7543/BA

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