Marcos Sampaio é advogado, procurador do Estado da Bahia, professor da Faculdade Bahiana de Direito e da Faculdade de Direito da Unifacs.
A coisa coisamente
Aos poucos, não sabemos mais o significado real das coisas e passamos a valorizar mais o que eu pareço ou o que a mim se apresenta, em rótulos


Em sua irônica e bem humorada crítica à sociedade contemporânea, Carlos Drummond de Andrade, no poema “Eu, Etiqueta” [Obra poética, Volumes 4-6. Lisboa: Publicações Europa-América, 1989] notava uma cilada difícil de ser superada e que nos tornara ser-anúncio itinerante.
O rótulo apresentado não teria maiores consequências não fosse tomado, em regra, como abdicação de meu gosto, de minha capacidade de escolher e de minhas idiossincrasias tão pessoais. E com essa inocente demissão de nós mesmos, acabamos nos tornando, simultaneamente, quatro pessoas: quem as pessoas pensam que eu sou; quem eu penso que as pessoas pensam que eu sou; quem eu penso que sou; e, finalmente, quem eu realmente sou.
Nesse quadrante confuso, quiçá místico e mítico, passamos a valorizar mais o que as pessoas aparentam ser e o que apresentam de si mesmas nas redes sociais, no palco das vaidades do Facebook, do Instagram e de tantas outras plataformas que servem, não para estabelecer relações de confiança entre as pessoas, não para conhecer alguém, mas simplesmente para que os usuários se coloquem na vitrine. Nada mais.
Talvez por isso, nunca foi tão dramática a solidão. Embora num mundo com tantas estradas, jamais nos visitamos tão pouco. A superficialidade passou a protagonizar as relações sociais, valendo apenas os rótulos e etiquetas exibidos. Curiosamente, insistimos em aparentar alguém que não somos e acabamos nos confundindo em torno de nós mesmos.
Num mundo com tantas estradas,
jamais nos visitamos tão pouco
A consequência experimentada é a do vazio dolorido. Nessa escuridão, o resultado somente pode ser a indiferença maquiada pela tecnologia e, com ela, a arte do desdém. Perdemo-nos na compreensão própria e na alheia. Aos poucos, não sabemos mais o significado real das coisas e passamos a valorizar mais o que eu pareço ou o que a mim se apresenta, em rótulos.
Às vésperas dos Jogos do Rio de Janeiro, bem que merecemos travar uma olimpíada da alma. Nela, não há mérito algum em ser melhor que o outro, mas na nobreza de se buscar ser melhor do que seu eu anterior. O grande desafio não está em vencer o outro, mas em vencer a si mesmo.
Na prova de afastamento de etiquetas, além de conhecermos melhor quem se situa ao nosso lado, ainda poderemos ofertar algum conforto ao maior poeta brasileiro do Século XX, em seu desabafo:
“Por me ostentar assim, tão orgulhoso
de ser não eu, mas artigo industrial,
peço que meu nome retifiquem.
Já não me convém o título de homem.
Meu nome novo é coisa.
Eu sou a coisa, coisamente.”
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