Antonio Jorge Ferreira Melo é coronel da reserva da PMBA, professor e coordenador do Curso de Direito do Centro Universitário Estácio da Bahia e docente da Academia de Polícia Militar.
Estupro: vitimização ou cumplicidade?
O caso da adolescente carioca é típico de uma sociedade na qual a violência sexual é tão usual que acaba sendo tolerada, gerando uma indignação seletiva


Quando tomei conhecimento do estupro sofrido por uma adolescente de 16 anos, segundo relatos, violentada por nada menos que 33 homens, em uma favela do complexo São José Operário, zona oeste do Rio de Janeiro, confesso que, também, imaginei que poderia se tratar de mais um desses boatos, fruto da ação de alguma mente mórbida e desocupada, que, não raro, povoam as redes sociais.
À medida que a mídia divulgava detalhes do ocorrido e das circunstâncias que revestiram o brutal ataque, mesmo ainda um pouco desconfiado da veracidade dos relatos, em função das marchas e contramarchas das investigações sobre o caso, foi difícil não ser tomado pela onda de indignação e revolta que assolou as ruas e as redes sociais em todo o país, em face da vileza e atrocidade da história que chocou a opinião pública.
Acompanhando o surgimento e crescimento da inédita onda de protestos que se espalhou pelo país, lembrei-me do caso da estudante indiana agredida e estuprada dentro de um ônibus, na cidade de Nova Déli, em 2012, que ganhou as manchetes dos principais jornais, sites e televisões do planeta, pois, hoje, é o Brasil que, em função de um estupro coletivo, também, chama a atenção do mundo.
Acostumados a falar da Índia e a nos chocarmos a cada caso de estupro coletivo noticiado lá, esquecemos que a nossa realidade é bastante similar. Afinal, crimes graves contra a mulher como esses tendem a ser mais comuns em países onde a desigualdade de gênero é mais acentuada, mas as semelhanças não param por aí, pois, não são meras coincidências atitudes machistas claramente desqualificadoras da vítima e da violência que ela sofreu, não raro, responsabilizando-a pela ocorrência do delito como se esta fosse, no mínimo, uma espécie de cúmplice do estuprador.
A desigualdade ainda não foi ultrapassada, por isso
as vítimas deixam de denunciar os agressores
Nessa lógica, cada vez mais, surgem fatos que vão transformando a trama sórdida do estupro da adolescente carioca em algo ainda mais assustador, mas, infelizmente, próprio de uma sociedade marcada pela cultura do estupro, onde a violência sexual torna-se algo tão usual que a tolerância e a normalização de comportamentos como a culpabilização da vítima, a sexualização da mulher como objeto e a banalização da violência de gênero acabam incentivando ainda mais as atitudes violentas que permeiam todos os aspectos da vida humana de acordo com cada cultura.
Entre nós, do tempo marcado pela herança do direito penal português onde somente a mulher honesta, por mais enigmática que fosse essa interpretação, podia ser sujeito passivo do crime de estupro, aos dias atuais, são nítidos os avanços e os êxitos que as mulheres vêm obtendo na conquista de certos direitos sociais e progredindo em direção à igualdade de gênero. Mas, infelizmente, a desigualdade, no entanto, ainda não foi totalmente ultrapassada, sendo um reflexo da tradição patriarcal da nossa sociedade, tornando fácil perceber os porquês de tantas vítimas ainda deixarem de denunciar seus agressores.
A jovem indiana, infelizmente, morreu duas semanas depois no hospital em consequências dos ferimentos que lhe foram causados pelos seus agressores, mas, em função da indignação e dos protestos públicos subsequentes ao caso, a sua morte não foi em vão, resultando na aprovação de uma emenda à legislação criminal daquele país que, além de ampliar a definição do crime de estupro e agravar as penas cominadas, tornou crime sexual ações como assédio sexual, voyeurismo, assédio e os ataques com ácido, responsáveis por vitimar centenas de pessoas por ano, a grande maioria mulheres.
Não foi sem sentido que a ministra Cármen Lúcia
se pôs no lugar da vítima da violência no Rio
Tenho receio de que a comoção pública possa transformar o caso da violência coletiva cometida contra a adolescente carioca em emblemático e seja contraproducente para a luta contra a violência de gênero no Brasil, por eclipsar a realidade das violências cotidianas normalizando-as, quando é exatamente essa lógica que precisa ser combatida, pois, é a “banalidade do mal”, em sua plena brutalidade e plenitude.
Nessa lógica, não foi sem sentido que a vice-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), a ministra Cármen Lúcia, se pôs no lugar da vítima da violência no Rio ao afirmar que: “o que ocorreu não foi apenas uma injustiça a se corrigir; mas uma violência a se responsabilizar e a se prevenir para que outras não aconteçam”.
Não! Mesmo que uns não queiram, a vítima não é cumplice. Assim, não nos cabe perguntar quem é a vítima? Ou por quem os sinos dobram? Afinal, em cada menina, em cada mulher indiana ou brasileira, branca, negra, indígena ou cigana violentada, somos todos violentados juntos, pois os sinos dobram por todos nós.
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