Publicado em 20/03/2017 às 14h33.

Há algo de podre no reino do Brasil

Cunhada em referência a situações vividas na peça teatral Hamlet, frase de Shakespeare define bem o cenário tupiniquim, onde, há muito tempo, corrupção virou sinônimo de política

Jorge Melo

 

Operação Carne Fraca (Foto: Reprodução /  Massa News)
Operação Carne Fraca (Foto: Reprodução / Massa News)

 

É da tragédia ‘Hamlet’ a origem da expressão “Há algo de  podre no reino da Dinamarca”, mas a frase, cunhada por William Shakespeare, que, originalmente, se referia a traições e assassinatos que ocorriam na trama da peça teatral Hamlet, bem que poderia se referir ao nosso reino tupiniquim, onde, há muito tempo, corrupção quase que se tornou sinônimo de política.

Como se não bastasse sermos um país em que, tal como na peça shakespeariana, há algo de muito podre na forma como se estabelecem as relações de poder político, quase não se passa um dia, sem que, infelizmente, não fiquemos com aquela sensação de que, em termos de desonestidades e falcatruas, “há mais coisas entre o céu e a terra do que pode imaginar nossa vã filosofia”.

Nesse sentido, mesmo já tendo nos acostumado a tomar conhecimento, através da mídia, dos contumazes casos de empresários que andam burlando leis, fraudando documentos, subornando funcionários públicos e agentes políticos, além de sonegar impostos, na última sexta feira (17), fomos tomados por um misto de surpresa e indignação, ao sabermos que da criativa caixa de pandora empresarial brotou mais uma maligna formula para potencializar dividendos, envolvendo os principais fabricantes de derivados de carnes do Brasil.

Como a carne é fraca e a propina é forte em todos os aspectos da vida nacional, depois do leite com água oxigenada, ureia, formol e soda cáustica, não deveríamos ter estranhado o fato de que, em função da ganância e do mau-caratismo de empresários e agentes públicos encarregados da fiscalização sanitária, estarmos correndo o risco de ingerirmos papelão misturado nos embutidos, alimentos processados a partir de carnes proibidas, deterioradas ou com data de validade alterada, além de cortes bovinos batizados com produtos cancerígenos para disfarçar a aparência envelhecida.

 

Até quando, a massa aceitará em silêncio

tanta desonestidade e falta de punição?

 

A operação “Carne Fraca”, deflagrada pela Polícia Federal objetivando desarticular uma quadrilha composta por fiscais agropecuários federais e empresários ligados a grandes frigoríficos, bem que poderia se chamar de “carne podre”, pois, o que ela revelou, além de assustador, no mínimo, deve ter feito os adeptos de um bom churrasco ficarem enjoados. O problema, ao meu modo de pensar, mais uma vez, é a generalização e a espetacularização.

Com isto não estou cerrando fileiras com os defensores do indefensável que se apressaram em apontar a responsabilidade de interesses concorrenciais estrangeiros no episódio, pois, em lugar de novas teorias conspiratórias, vejo apenas a nossa velha conhecida corrupção, financiada com recursos públicos. Nessa lógica, mesmo reconhecendo que se trata de uma situação pontual, envolvendo apenas alguns frigoríficos, não posso aceitar que tais fatos ocorram em um país que vinha se firmando como um dos maiores exportadores de carnes do mundo.

Se os malefícios para a nossa saúde, causados pelo consumo da carne ou dos seus derivados em condições impróprias, podem ser grandes, uma vez que o volume da mercadoria potencialmente afetada ainda é incerto, os efeitos econômicos graves e profundos do esquema de corrupção construído com a carne fraca de corruptos insaciáveis já se fazem sentir, pois, queiramos ou não, em um mercado especialmente sensível como o da exportação de alimentos que trata de saúde pública, portas podem se fechar com a confirmação das evidências das fraudes.

Por falar em saúde, especialistas em otorrinolaringologia suspeitam de que a exposição prolongada a cheiros ruins tende a prejudicar o nosso olfato. Assim, de tanto conviver com escândalos políticos e empresariais, lamentavelmente, parece que já nos acostumamos aos odores fétidos que emanam das relações promíscuas entre corruptos e corruptores, tornando mais fácil as tentativas dos donos do poder para disfarçar o cheiro do produto estragado, anistiando o caixa 2.

Nessa toada, se ainda há ou não alguma coisa de podre no reino da Dinamarca, eu realmente não sei, mas, com certeza, a famosa frase de Shakespeare pode ser utilizada por empréstimo no Brasil, dos dias de hoje, com o fantasma de Hamlet, circulando no meio de nós, mais do que nunca dividido entre o ser e o não ser, mas perguntando pelo fim desta nossa silenciosa e submissa omissão: Até quando? Até quando, a massa aceitará em silêncio tanta desonestidade e falta de punição? Afinal, o esperar um dia desespera, pois o mesmo tempo da submissão é o da revolta.

Jorge Melo

Antonio Jorge Ferreira Melo é coronel da reserva da PMBA, professor e coordenador do Curso de Direito do Centro Universitário Estácio da Bahia e docente da Academia de Polícia Militar.

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