Publicado em 30/07/2021 às 16h10.

Mulheres negras: construtoras do passado, presente e futuro

Texto de Ângela Guimarães

Redação
Foto: Unegro
Foto: Unegro

 

As lutas pela vida, contra o racismo, o sexismo e pelo bem viver sempre pautaram a experiência das mulheres negras, num contexto de diáspora, na América Latina e no Caribe. A resistência ao colonialismo e ao penoso regime escravista que custou milhões de vidas teve nas mulheres africanas e afro-brasileiras o principal alicerce. Por quase 400 anos, as mulheres negras foram organizando, liderando, insurgindo, contestando, tramando, envenenando os senhores, comunicando, recriando os nossos valores e cosmovisão africana, tecendo irmandades, ressignificando, alforriando, se rebelando, se aquilombando e, assim, enfraquecendo o regime escravocrata e forçando a formalização da abolição da escravidão. Engana-se quem pensa que a experiência de resistência negra e feminina no Brasil ficou no passado.

Com a abolição formal, a luta de classes passou a outra etapa. Uma abolição sem a incorporação da massa negra ao nascente regime de trabalho formal foi também o momento histórico de acirramento de uma legislação penal racista, que interditava a presença negra na cena pública, impedia sua incorporação ao mundo do trabalho livre, o acesso à educação e criminalizava manifestações culturais e religiosas. O século XIX representou um projeto estatal de exclusão das pessoas negras recém-impactadas pela alteração formal do regime de trabalho forçado, num sistema de produção de riquezas assentado na desumanização e subalternização, para um regime pretensamente livre, mas que não significou nem liberdade real, nem alteração das condições de vida da população negra.

Havia um peso maior e significativo na vivência das experiências de recém-liberdade para as mulheres negras. Enquanto a possibilidade de ser ganhadeira, quituteira ou trabalhadora doméstica representou maiores probabilidades de compra das próprias alforrias e também da dos maridos e filhos, a experiência do pós-abolição ensejou interdições, discriminações e violência próprias do entrelaçamento do racismo, com o sexismo na sociedade de classes. Via de regra, além dos limites impostos por uma legislação penal racista, excludente e de orientação higienista, havia ainda os horários de proibição de circulação de mulheres negras pelos centros das cidades, a violência sexual e demais tipos de agressões, o encarceramento e a superexploração do trabalho doméstico que figuraram como marcas deste período.

Após 13 de maio de 1888, seguiu-se um 14 de maio conforme cantado por uma das mais belas vozes da música brasileira, Lazzo Matumbi:

“No dia 14 de maio, eu saí por aí

Não tinha trabalho, nem casa, nem pra onde ir

Levando a senzala na alma, eu subi a favela

Pensando em um dia descer, mas eu nunca desci

Zanzei zonzo em todas as zonas da grande agonia

Um dia com fome, no outro sem o que comer

Sem nome, sem identidade, sem fotografia

O mundo me olhava, mas ninguém queria me ver”

Adentramos no século XX prenhe de lutas contra a desumanização, de denúncias de um projeto estatal higienista e racista, de enfrentamento ao racismo, sexismo, genocídio negro e indígena, de exclusão do mundo do trabalho e do sistema educacional, da criminalização da nossa religiosidade e marginalização da nossa cultura.

Mulheres negras dedicaram suas existências a assegurar melhores condições de vida a seus pares, entre elas Mãe Aninha, Mãe Menininha do Gantois, Mãe Senhora, Mãe Maria Jesuína, Mãe Stella de Oxóssi, Mãe Beata de Yemonjá, Mãe Railda de Oxum e Makota Valdina, nossas mais velhas no candomblé.Também trabalharam nesse sentido a Frente Negra Brasileira, a imprensa negra, o Teatro Experimental do Negro, as professoras negras, as trabalhadoras domésticas, as mulheres negras das escolas de samba, blocos afro e afoxés, as intelectuais negras, as mulheres negras nos movimentos sociais e espaços de representação institucional. Foi graças a essa atuação disciplinada e dedicada das mulheres negras que o Brasil passou a se reconhecer como uma nação racista e sexista, que demolimos os pressupostos do racismo científico, descontruímos o mito da democracia racial, denunciamos o genocídio da população negra e indígena, desnudamos os altos índices de feminicídio, estupro, violência doméstica, abuso e exploração sexual de meninas e mulheres, especialmente negras, criminalizamos o racismo e erguemos um conjunto de políticas públicas visando a superação dessas graves desigualdades.

Com Laudelina de Campos Melo, passamos a enxergar a extensão do legado escravista sob a atualidade das condições de vida e trabalho das trabalhadoras domésticas. Com Antonieta de Barros, desafiamos as elites políticas ao eleger, ainda em 1934, a primeira mulher negra deputada estadual em Santa Catarina. Com Carolina de Jesus, subvertermos toda a estrutura social que nos negou educação e emergimos da invisibilidade, como fez a catadora, para nos afirmar leitoras e grandes escritoras. Com Lélia Gonzalez, aprendemos sobre o entrelaçamento de raça, gênero e classe no contexto americano e seus impactos na cultura, nas nossas vidas e no acesso e exclusão a lugares sociais e políticos. Com Sueli Carneiro, descobrimos a importância de enegrecer o feminismo, uma vez que a exclusão das mulheres negras ocorre tanto nos tradicionais espaços feministas brancos quanto nos espaços excessivamente masculinos das entidades mistas antirracistas. Com Luiza Bairros, pusemos luz na permanência e imbricamento do racismo e do sexismo que nos aprisionam nos lugares mais baixos da pirâmide social, nas piores ocupações, menores salários e, mesmo mais permanentemente, sob a condição de desempregadas. Com Fátima Oliveira, racializamos os determinantes sociais em saúde, desnudando as intencionais e eugenistas políticas de esterilização em massa de mulheres negras e pobres. Com Benedita da Silva, Olívia Santana, Creuza Oliveira, Vilma Reis, Leci Brandão, Marielle Franco, Enfermeira Rejane, Bruna Rodrigues, Daiana Santos, Janete Pietá e muitíssimas outras, aprendemos que lugar de mulher também é na política.

A força da mobilização negra feminina abriu caminhos para as primeiras conquistas que possibilitaram que o feminismo negro fosse reconhecido como corrente teórica e movimento político com visibilidade, que tem pautado a agenda política nacional na contemporaneidade.

Das contribuições do passado e do presente, estamos construindo o porvir negro, liderado pelas mulheres negras, um novo tempo, a partir dos nossos sonhos e utopias, de preservação da vida e da possibilidade de ter e realizar projetos, sem qualquer ataque à vida, negação à nossa voz, supressão do alimento do corpo e da alma. A nossa utopia negra não admite fascista no poder, não admite genocida, nem os complacentes e cúmplices destes. Nela não cabem também os históricos usurpadores da nossa história, que distorcem conquistas e invenções e louvam os violentos, feminicidas e escravocratas. Derrubemos as estátuas físicas e simbólicas da nossa opressão.

No nosso sonho de bem viver, cores, amores, credos, culturas, opiniões plurais e diversas são bem-vindas. Nunca faltam amor; educação com nossa história valorizada nas escolas; acolhimento, suporte e apoio à infância e juventude negra; moradia; terra pra plantar; água; comida de qualidade, saudável e sem agrotóxico no prato; acesso à saúde universal, com respeito às especificidades negras, femininas e indígenas; assistência social com renda básica digna; trabalho decente; aposentadoria e acolhimento às nossas idosas;  cultura; respeito à natureza e ao sagrado; e representatividade em todas as instâncias de poder e decisão do país. As pessoas de qualquer gênero, idade, raça, religião, orientação sexual e local de moradia são consideradas na sua plenitude.

Parece distante da realidade, mas não podemos deixar de sonhar e alimentar este sonho com pequenos goles de esperança no meio de tanta crueza de uma realidade que nos pressiona a desistir. É verdadeiro que enquanto existir vida, existirá esperança. Assim, tomo emprestado de Conceição Evaristo a frase com que encerro este texto: “Eles combinaram de nos matar e nós combinamos de não morrer!”

Ângela Guimarães é presidente nacional da Unegro (União de Negros pela Igualdade)

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