O que dá pra rir, dá pra chorar
Com a reinvenção do Carnaval de Salvador, blocos de trios são cada vez em menor quantidade e cordeiros "dançam"
Os números são todos impactantes. As estimativas mais modestas do governo do estado falam em um fluxo de 600 mil turistas, enquanto a prefeitura chuta mais para cima: 750 mil visitantes nos já-nem-sei-mais-quantos dias de festa. E, numa época de vacas magérrimas, a perspectiva da geração de emprego – mais uma vez, os números são estratosféricos – é tentadora: a expectativa é que sejam oferecidos pelo menos 250 mil postos de trabalho para todos os níveis de escolaridade.
Aqui e ali, também são motivos de comemoração as novidades que os organizadores da maior festa de rua do planeta preparam para a edição 2017. Uma delas, a ampliação na oferta de blocos sem cordas. Ou seja, a chamada indústria do carnaval resolve se reinventar e volta às origens, aos tempos em que a Praça Castro Alves era do povo, como o céu é do avião, conforme apregoava, décadas atrás, o frevinho da hora. Mas, nunca é demais lembrar, que o que dá pra rir dá pra chorar, ainda para continuar na pegada de canções populares. Tá tudo muito bom, tá tudo muito bem, que venham os blocos sem cordas. Mas, e na Quarta-feira de Cinzas, o que é que os cordeiros vão dizer em casa?
Execrados, vistos de esguelha, invisíveis aos olhos da sociedade, discriminados, mas sempre prontos a dizer “presente!”, quando chamados à labuta, os cordeiros vão ficar sem chão. E, vale lembrar, a categoria configura uma mão de obra já consolidada. Tanto que possui entidade de classe – o Sindicato dos Trabalhadores Cordeiros do Estado (Sindcorda) – e, a cada carnaval, desde 2007, tem sua faina insana protegida por um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), celebrado sob a égide do Ministério Público Estadual. Ou seja, pelo menos uma vez ao ano, aqueles quase 50 mil seres egressos do gueto saem da invisibilidade cotidiana.
Aqui, um parêntesis. Estudiosos da folia de Momo registram que a atividade, inicialmente conhecida como “puxador de corda”, teve início lá pelos idos dos anos 1960. O auge se deu lá pela década de 1980, com a explosão da chamada indústria do carnaval, capitaneada pelos blocos de trio. Tidos como “mal necessário”, os cordeiros foram incorporados à festa como peças de uma engrenagem que movimentava essa máquina de fazer dinheiro, muito dinheiro, aliás. Para manter a segurança da “gente bonita”, aqui traduzida como jovens das classes média e alta (quase sempre brancos) e turistas de alto poder aquisitivo que pagavam caro para brincar o carnaval em paz…
A fórmula, entretanto, começou a se esgotar. Os blocos de trio – de vitrine do Carnaval de Salvador a símbolos de exclusão – começaram a definhar. Em parte, devido à proliferação dos camarotes, embora o discurso oficial (e oficioso) pregue uma tal democratização da festa. Corda, não! A corda segrega, exclui (e os camarotes, não?…). Quanto aos cordeiros? Bom, como o próprio carnaval, eles terão que se reinventar.
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