Por que a indignação tem prazo de validade?
Na Bahia, há oito anos, uma garota de 13 anos foi dopada, estuprada por três adolescentes e teve as imagens divulgadas; o caso foi esquecido e os autores jamais punidos


Muito já se falou sobre caso da adolescente carioca vítima de estupro coletivo na zona oeste do Rio de Janeiro, mas, quando o assunto é violência sexual, nunca é demais gritar, bradar, denunciar e pedir justiça. Até porque, por mais inominável que seja a situação, o estupro coletivo (antes, dizia-se curra) não é um fenômeno novo. A divulgação do crime em rede social também não configura uma novidade. É, por assim dizer, uma prática tão antiga quanto o advento da internet.
Então, é isso: seres bestiais desprovidos de quaisquer sentimentos de empatia para com o outro não se contentam em violentar, massacrar, imolar, conspurcar o corpo da vítima. A satisfação só será completa com a degradação moral, a desmoralização em rede, a absoluta coisificação daquele ser, reduzido a um objeto descartável.
Volto no tempo. Oito anos atrás, em abril de 2008, ainda repórter do extinto Correio da Bahia, acompanhei um caso semelhante a esse da garota carioca. O cenário, uma cidadezinha do extremo sul baiano. A vítima, uma menina de treze anos. Os algozes, três adolescentes bem-nascidos, desses pelos quais pais, tios e padrinhos põem, a mão no fogo, e encaram aberrações dessa natureza como “travessura de menino macho”.
O caso da menina do interior baiano ganhou repercussão internacional. E só foi descoberto porque o pai da garota, um carpinteiro, então residente numa cidadezinha dos Estados Unidos, recebeu de um amigo brasileiro um e-mail com 54 fotografias da filha mantendo relações sexuais com três rapazes. Nas imagens, a garota parecia estar desacordada.
Como a garota carioca, a menina baiana foi dopada pelos infratores (adolescentes não cometem crime). Um dos quais, um amigo em quem confiava cegamente. À polícia, ela disse ter sido induzida a ingerir “uma bebida da cor de conhaque e a cheirar uma substância que estava em uma garrafa plástica”. Desmaiou e só acordou no dia seguinte, em casa, com dores de cabeça e na área genital. Por medo de represálias, não comentou o fato com a mãe. Também como no caso da garota carioca, os autores documentaram o estupro coletivo e divulgaram as imagens na internet.
É preciso exercitar a capacidade de manter
a indignação enquanto não houver justiça
A matéria publicada no Correio alcançou grande repercussão. O caso chegou ao conhecimento da Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado que apurava a pedofilia em todo o país. À frente da CPI, o senador Magno Malta (PR-ES) chegou a se deslocar até a cidadezinha do interior baiano, onde conheceu a vítima e exigiu das autoridades locais empenho na apuração do crime e punição dos envolvidos.
Acompanhei o caso durante algum tempo. Até o processo começar a fazer água. Os “meninos” foram considerados inimputáveis. Levaram uma ou outra admoestação da Justiça, mas saíram impunes. Três maiores de idade que divulgaram as imagens respondem a um processo que se arrasta infinitamente. “Não teve punição nenhuma. Disseram que eram todos menores e ficou por isso mesmo”, me diz uma tia da vítima, com quem falei há pouco.
O estupro coletivo e a exposição da vítima na internet acabaram sendo esquecidos pela sociedade local. A menina e sua família saíram temporariamente da cidade, se mudaram para um município vizinho e tentam até hoje refazer a vida.
Por que trago esse fato tão doloroso aqui? Por um único motivo: a indignação suscitada por fatos hediondos como uma curra (sim, ouso dizer essa palavra tão feia, mas não tão feia como o ato em si) tem prazo de validade. E é aí que mora o perigo. A sociedade, eu, você, precisamos exercitar a capacidade de nos mantermos indignados não hoje e amanhã, mas enquanto a justiça se fizer esperar.
Do contrário, a história da menina carioca estuprada por trinta (treze, três, um?) homens no Rio de Janeiro corre o risco de ter final parecido com o da garota de treze anos estuprada pelos três jovens bem-nascidos de uma cidadezinha do extremo sul baiano. Ou seja, a mais absoluta impunidade.
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