Publicado em 26/09/2016 às 14h10.

Quem nos protege dos protetores?

A maioria dos vícios policiais nasce do descaso e da conivência dos que desejam uma organização policial a seu serviço ou ao de sua agremiação

Jorge Melo
guarda-municipal
Imagem ilustrativa (Foto: Divulgação)

 

O caso do cidadão que denunciou ter sido agredido e ameaçado com arma de fogo por um guarda municipal, na tarde da última quinta-feira (22), após um acidente de trânsito envolvendo o veículo de sua propriedade e uma viatura da GMS, na Avenida ACM, Pituba, mais uma vez, traz à baila a questão da agressividade e da violência dos agentes da corporação, à luz de uma velha e conhecida questão: quem nos protege dos protetores?

Com a velocidade própria da idade mídia, como não poderia deixar de ser, o fato gerou imediata repercussão e discussões pela imprensa escrita, falada e televisiva, além das redes sociais, em busca de respostas à indagação.

Nesse contexto, houve quem atribuísse os comportamentos violentos dos membros da corporação às perturbações cognitivas ou anímicas, dignas ou não de relevância jurídico-penal, denotando falhas no processo seletivo. Afinal, como diz uma frase atribuída a Nietzsche: “A pessoa belicosa em momentos de paz briga com ela mesma”.

Também não faltaram aqueles que, mais críticos às atividades da GMS, automaticamente, atribuíssem os desvios de conduta à formação dos guardas municipais, enfocando a gênese do problema, simplesmente, no “ethos guerreiro” que, inspirado no modelo policial militar, legitima a construção da matriz bélica de proteção social.

Mesmo sem negar que os reiterados casos de arbitrariedades e truculências por parte dos integrantes das forças de segurança no Brasil, além de uma realidade, também sejam uma herança cultural, penso que não se pode colocar toda responsabilidade dessas mazelas da nossa segurança pública, simplesmente, nas organizações ou nos policiais e nos guardas municipais.

Nessa lógica, como sou daqueles que acreditam que nenhum mal acontece sem, pelo menos, o nosso secreto consentimento, creio que não é difícil concluir que a tolerância da sociedade a esse tipo de violência motive muitos guardas municipais e policiais a se envolverem em casos reiterados de desrespeito aos cidadãos e de uso abusivo da força.

 

Quem vê na repressão uma panaceia

universal não pode reclamar dos efeitos

 

Mas se a violência institucional entre nós é justificada e aceita pela sociedade, com parte significativa da população, não raro, vendo na ação arbitrária e truculenta dos seus guardiões a solução para o problema da violência urbana, não podemos esquecer que essa “legitimidade”, também, é referendada pelas autoridades governamentais.

Se o cidadão comum, por medo ou desconhecimento, confunde o uso legal da força, em seus diversos gradientes, com a violência propriamente dita, o mesmo não pode ser dito em relação aos governantes de plantão e ao alto escalão da segurança pública no Brasil, pois a imensa maioria dos vícios policiais nasce do descaso, do descompromisso, da omissão e da conivência dos que desejam uma organização policial a seu serviço ou ao de sua agremiação.

O Estado tem que reafirmar a legalidade e seus agentes tem que pautar suas ações pela legalidade. Nessa lógica, ao não condenar de forma enérgica os abusos, as autoridades governamentais podem passar uma mensagem implícita às forças de segurança de que toleram a violência o que, consequentemente, estimularia mais abusos.

O guarda municipal perpetrador da agressão foi afastado das ruas até a conclusão do processo aberto na corregedoria da corporação que, para não fugir à regra, provavelmente, seguirá o curso seguro da culpabilização, fugindo da perigosa lógica da responsabilização que nos permitiria compreender que o problema da violência institucional não pode ser resolvido tão somente pelas polícias ou mesmo pelo sistema de segurança pública, onde se inserem as guardas municipais.

A violência da GMS, à semelhança do que ocorre com as perpetradas por integrantes das polícias Civil e Militar, é uma espécie do gênero violência institucional, esse complexo fenômeno de uma sociedade que elegeu a força, a disputa, a dominação e a indiferença com o semelhante como seus padrões fundamentais.

Independentemente da culpabilização e punição do agressor, uma questão continuará sem resposta: quem nos protege dos protetores?  Afinal, respondê-la suscita a necessidade de compreensão do papel das polícias e das guardas municipais nesse nosso modelo social, pois, já que, segundo a sabedoria popular, o “uso do cachimbo deixa a boca torta”, quem considera a repressão uma panaceia universal, não pode se queixar de seu gosto amargo ou do seu efeito colateral.

Jorge Melo

Antonio Jorge Ferreira Melo é coronel da reserva da PMBA, professor e coordenador do Curso de Direito do Centro Universitário Estácio da Bahia e docente da Academia de Polícia Militar.

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