Publicado em 20/12/2016 às 11h31.

Respeito é bom e todo mundo gosta

O ideal é que não houvesse a necessidade de se recorrer à criminalização de condutas, para que servidores públicos e cidadãos se respeitassem mutuamente

Jorge Melo
Imagem ilustrativa / Justiça (Foto: Pixabay)
Imagem ilustrativa / Justiça (Foto: Pixabay)

 

A ideia de superioridade do Estado face o cidadão, embora, historicamente, integre o próprio conceito do ente político, com o passar dos séculos, tem dado lugar a uma relação menos assimétrica do particular com a autoridade e, como não poderia deixar de ser, essa tendência de se amenizar essa diferença, horizontalizando-se o embate entre o Estado e o indivíduo, tem se refletido no Direito, inclusive no Direito Penal pátrio.

Nesse sentido, na noite da última quinta-feira (15), a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por unanimidade, decidiu que não é crime o ato de desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela, por considerar que a criminalização de tal conduta é incompatível com o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica),  perante o qual as “leis de desacato” existentes em países como o Brasil atentam contra a liberdade de expressão e o direito à informação, pois têm como objetivo silenciar ideias e opiniões.

Embora a decisão do STJ represente um marco histórico e seja simbolicamente importante por ir ao encontro de uma antiga reivindicação dos movimentos sociais, ainda não se pode afirmar que o desacato foi efetivamente descriminalizado entre nós, pois, não podemos perder de vista que, por ter sido proferida em um Recurso Especial, não tem efeito vinculante, isto é, não precisa ser seguida obrigatoriamente por instâncias inferiores do Poder Judiciário.

Inobstante a inexistência de efeitos vinculantes, é inegável a possibilidade de que seus reflexos persuasivos, dado o seu caráter de precedente jurídico, sejam usados para orientar outras decisões judiciais, posto que, para muitos juristas e magistrados, a criminalização do desacato está na contramão do humanismo, porque ressalta a preponderância do Estado, personificado em seus agentes, sobre o indivíduo.

Embora essa mudança histórica de rumos fortaleça a movimentação em favor da descriminalização do desacato, não se pode olvidar a existência, entre nós, de posicionamentos contrários que, além de pugnar pela sua manutenção enquanto crime, buscam, sobretudo, penas mais severas em algumas situações.

Sem entrar no mérito da polêmica que se instalou entre aqueles que são contra e a favor da manutenção da norma estatuída no art. 331 do Código Penal que prevê uma pena de seis meses a dois anos de detenção, ou multa, para quem desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela, faz-se necessário esclarecer que o legislador pátrio ao criminalizar o desacato, com certeza, não objetivou instituir um privilégio para que funcionários públicos pudessem praticar intimidação e abuso de autoridade contra os cidadãos comuns impunemente. Afinal respeito é via de mão dupla. Se queremos respeito, temos que antes respeitar a todos também.

 

 A sociedade haverá de se organizar

e construir uma comunidade fraterna

 

Nesse sentido, em última análise, ao tipificar o delito, busca-se garantir o mínimo de reserva moral de respeito exigível dos cidadãos perante a própria administração pública. Não é à toa que no crime de desacato o servidor não é ofendido pessoalmente, pois, estando ele a serviço, as ofensas e agressões perpetradas contra si atingem a própria administração, pois, é ela que está, a todo o momento, presentada e representada pelos seus agentes.

Respeito é bom e todos gostam e, nessa lógica, o ideal é que não houvesse a necessidade de se recorrer à criminalização de condutas, para que servidores públicos e cidadãos se respeitassem mutuamente, pois, são sempre estimulantes os desafios que nos são impostos pelos nossos direitos e deveres.

Refletir sobre as conexões existentes entre direitos e deveres constitui um desses enfrentamentos que nos colocam, num primeiro momento, estáticos, porque enorme é o desafio. Depois vêm a angústia e a ansiedade, que nada mais são do que reflexos de uma verdadeira busca intelectual de como fazer a interlocução, com o respeito sendo tão desrespeitado nos dias atuais, entre dois aspectos da vida humana que, apesar de complementares e indissociáveis, não raro, se apresentam tão conflitantes e até mesmo excludentes.

O Direito almeja a fraternidade e, nesse sentido, ele coloca a sociedade fraterna como um interesse jurídico a ser tutelado através de um Estado Democrático de Direito. Nessa construção, a norma jurídica imprime comportamentos fraternos, ao estabelecer deveres de uns para com outros, no âmbito constitucional, e por meio da tipificação de comportamentos comissivos e omissivos para com o outro.

Deste modo, por mais que a Colenda Turma do STJ tenha decidido não aplicar a legislação em um caso concreto e que possíveis atos de abuso contra os agentes encarregados da execução das leis possam ser enquadrados como calúnia, injúria ou difamação, por exemplo, delitos que se aplicam a qualquer cidadão, funcionário público ou não, o crime de desacato continua vigente e plenamente aplicável e os agentes públicos, principalmente os profissionais da área da Justiça e da Segurança Pública, por enquanto, não ficarão privados de um importante instrumento de controle que, pelos seus efeitos deterrentes, diminui a necessidade do recurso ao uso legal da força, preservando todas as demais possibilidades de negociação, persuasão e mediação para solução dos conflitos sociais.

O respeito tem que partir de todos, portanto, não apenas os agentes do Estado devem ser convocados para adotar posturas que podem nos conduzir ao bem-estar, à igualdade e à justiça, mas a própria sociedade haverá de se organizar segundo esses valores, a fim de que se firme uma comunidade fraterna, pluralista e sem preconceitos, conforme idealizada no preâmbulo da nossa Constituição Federal.

Jorge Melo

Antonio Jorge Ferreira Melo é coronel da reserva da PMBA, professor e coordenador do Curso de Direito do Centro Universitário Estácio da Bahia e docente da Academia de Polícia Militar.

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