Incansável na defesa do São Francisco, Dom Cappio solta o brado
Bispo da Diocese de Barra externa seu lamento e defende 'projeto sério' de revitalização do rio
Já se passaram dez anos desde que uma voz solitária ecoou, lá no distante município de Barra, no médio São Francisco, sertão baiano, gritando desesperadamente em defesa do Rio São Francisco. Era a voz do frei franciscano, descendente de italianos, nascido em 4 de outubro de 1946, na cidade de Guaratinguetá, em São Paulo, dom Luís Flavio Cappio. Um religioso que adotou a luta pela revitalização do Velho Chico como uma questão de vida ou morte.
Com a disposição de morrer em defesa do rio, dom Cappio iniciou, em setembro de 2005, uma greve de fome que durou 12 dias e quase custou sua vida. O religioso tem o entendimento de que a vida da população ribeirinha e do meio ambiente da região depende da salvação do rio.
Colocar em risco a própria vida foi a forma que o franciscano encontrou para chamar a atenção do mundo. Seu grito silencioso soou como uma tentativa de unir um amplo leque de forças que encampasse a sua disposição de barrar o projeto de transposição das águas do rio São Francisco, idealizado pelo governo federal. O frei considera as obras de transposição das águas do rio como um golpe fatal para o Velho Chico. A greve alcançou seu objetivo e foi suspensa, após a intervenção do governo federal que o chamou para conversar. Promessas não cumpridas levaram o religioso, dois anos depois, a repetir o gesto de colocar sua vida em risco com uma nova greve de fome.
Caráter eleitoreiro – Para dom Cappio, o projeto de transposição é uma obra de caráter eleitoreiro, que não prioriza a dessedentação humana e animal, conforme prevê a Constituição de 1988. “Se ela cumprisse esse papel, nós seríamos a favor”, diz dom Cappio, em entrevista ao bahia.ba. Enfático, o bispo entende que “o projeto de transposição de águas do rio São Francisco é uma obra política, uma festa para as grandes empreiteiras, e uma fonte quase inesgotável para a corrupção e desvio de recursos públicos”. Para ele, o projeto atingiu seu objetivo de reeleger os presidentes Luís Inácio Lula da Sila e Dilma Rousseff, “Mãe do PAC”.
Duro na crítica, dom Cappio alfineta: “As empreiteiras e os fornecedores de insumos tecnológicos lucraram demais. Se a obra chega ou não ao final, isso não é tão importante assim. Ela já atingiu seu objetivo. Mas este projeto visa à segurança hídrica para os grande projetos agroindustriais, conforme afirmou o então ministro da Integração Nacional, Geddel Vieira Lima, na Audiência Pública do Senado Federal realizada a fim de discutir a transposição. Neste sentido, o projeto é anticonstitucional e não traz benefícios para o povo. Foi o conhecimento do rio e de seu povo que me levou a erguer esta bandeira de luta”.
De acordo com frei Luís Cappio, o Rio São Francisco foi uma descoberta que aconteceu ao longo de sua vida. Aos poucos, foi entendendo que a sua existência é fundamental para proporcionar a condição de vida de toda uma população ribeirinha. “Sempre digo que o Rio São Francisco imita o santo de seu nome – nasce rico e entrega toda sua riqueza aos pobres. No Nordeste, é a mãe e o pai de todo o povo, de onde tira o peixe para comer, a água para beber e molhar suas plantações”.
Profundo conhecedor da realidade do São Francisco, dom Cappio percorreu o longo do rio em uma caminhada iniciada em 4 de outubro de 1992 e encerrada na foz, exatamente um ano depois. A caminhada lhe deu a exata situação do rio, acompanhada até hoje. “O São Francisco e seus afluentes estão num processo violento e muito rápido de degradação e morte. Muitos pequenos rios e riachos, fontes e nascentes já morreram, causando a morte lenta de toda a bacia”.
‘Valeu e muito’ – Mesmo não tendo conseguido barrar as obras de transposição do rio São Francisco, dom Cappio não considera que as duas greves de fome que patrocinou em sua defesa tenham sido em vão. Para ele, o movimento valeu a pena, já que foi capaz de abrir uma grande discussão sobre a questão. “Valeu e muito. Foi aquele gesto limite que deu visibilidade às contradições existentes no projeto. Foi a partir daqueles dois gestos ‘insanos’ que o mundo ficou conhecendo o projeto e seus absurdos: uma obra tecnicamente mal pensada, economicamente inviável, socialmente injusta, ecologicamente insustentável, juridicamente inconstitucional. Todas as lutas que vieram depois, tiveram seu despertar naquele “grito desesperado”, diz ele.
Apesar das obras paradas devido à crise econômica do país, agravada pelos escândalos de desvios de recursos públicos, e pela crise hídrica que o Brasil enfrenta, decorrente da estiagem prolongada, dom Cappio ainda aposta na revitalização do Velho Chico. Para ele, “a natureza é pródiga. Tudo o que se faz em seu benefício, ela imediatamente responde. Apenas tem uma velocidade própria que não é a nossa”, pontua.
– Se abraçarmos, de verdade, o que até agora não aconteceu, com um projeto sério de revitalização, ainda é possível salvar nosso Velho Chico. Mas é necessário que a revitalização seja acompanhada e apoiada por todas as instituições governamentais de implemento e fiscalização, como também de recursos necessários. Se o que foi gasto inutilmente até agora no projeto de transposição tivesse sido aplicado na revitalização, conforme acordo assinado por mim e o então presidente Lula, que mentiu para a sociedade brasileira a respeito, hoje o rio São Francisco não estaria na penúria em que se encontra”, aposta dom Cappio,
Duro com o governo federal, dom Cappio entende ainda que o quadro de abandono das obras de transposição é consequência de governo que não é sério. ”Todos nós temos nossa parcela de culpa, pois fomos nós que escolhemos as lideranças do Executivo e Legislativo que lá estão neste total desgoverno. Existem “males que geram algum bem”. E um dos bens de toda esta crises foi a de frear a insanidade de projetos absurdos, megalomaníacos, que apenas serviram para satisfazer a vaidade de alguns e desviar quantias imensas de dinheiro público, via corrupção, que poderiam estar sendo aplicados em prioridades como educação, saúde e segurança para o povo”, sentencia.
Na opinião do frei, a transposição das águas do rio não tem futuro, já nasceu morta. “Ela traz consigo um constitutivo que a inviabiliza. Ela não tem futuro. E em sua construção foi matando a vida e as esperanças de milhares de cidadãos brasileiros que foram sendo despojados de suas terras alimentados por uma esperança mentirosa de terem terra e água. Mas, na medida em que estava sendo construída, o povo foi tomando consciência de sua verdadeira identidade. Nosso povo é sempre usado como reboque, como ‘bucha de canhão’, para satisfazer os interesses das elites. Infelizmente é assim que acontece, mesmo em governos que se diziam populares”.
Atlas do Nordeste – Para ele, se o governo federal tivesse apostado no Atlas do Nordeste, lançado pela Agência Nacional de Águas (ANA) o resultado seria muito mais positivo para o povo. O programa é um conjunto de obras hídricas para atender às necessidades de água da população nordestina no semiárido brasileiro. Segundo ele, em conversa com o ex-presidente Lula, teria dito que essa era a solução para o abastecimento hídrico das comunidades que seriam beneficiadas, aproveitando os grandes rios do nordeste e o grande número de açudes existentes.
Ele lembra, inclusive, que esse era um projeto do governo de Lula. “Mas infelizmente, graças ao lobby fortíssimo da transposição e os interesses escusos presentes, o ex-presidente optou por essa obra faraônica. Com o dinheiro que foi gasto em vão, hoje as comunidades nordestinas estariam abastecidas com o precioso líquido. Exemplos são a Adutora de Irecê, Adutora de Guanambi, Adutora do Sertão que abastece o sertão de Pernambuco. Repito: a transposição não tem a finalidade de levar água ao povo, mas atender às demandas do uso econômico da água”, finaliza dom Cappio, consciente de que a luta pela defesa do Velho Chico ainda está longe de terminar.
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