Antonio Jorge Ferreira Melo é coronel da reserva da PMBA, professor e coordenador do Curso de Direito do Centro Universitário Estácio da Bahia e docente da Academia de Polícia Militar.
Polícia e poesia (a releitura de uma polêmica)
Peça publicitária veiculada em Ilhéus-BA gera desconforto entre policiais por ser considerada como manifestação de preconceito contra a tropa
Para o poeta curitibano Paulo Leminski, em sua “teoria do inutensílio”, no quadro das artes e da cultura, a função da poesia é a de ser a manifestação inútil, sendo isso justamente o que confere aos poetas a liberdade e a arbitrariedade para expressar o que lhe vai na alma e no coração. Nessa lógica, não é sempre que um poema diz coisas bonitas. Às vezes, um poeta usa sua inspiração para denunciar o que, na sua visão de mundo, está errado na sociedade.
Foi o que ocorreu na semana passada, aqui na Bahia, na cidade de Ilhéus, quando a divulgação em ônibus e outdoors, da peça publicitária, da Secretaria de Cultura, Poesia de Rua, ostentando a imagem de uma mulher com os seguintes dizeres: “Maria não amava João, apenas idolatrava seus pés escuros. Quando João morreu, assassinado pela PM, Maria guardou todos seus sapatos”, causou muita polêmica e indignação nos meios policiais.
Enquanto entidades representativas dos integrantes da PM viam no trecho do poema de Lívia Natália, veiculado pela Fundação Cultural da Bahia, incitamento ao preconceito e à intolerância contra os policiais militares baianos, exigindo a retirada da peça publicitária, não faltou quem visse nos protestos dos milicianos uma tentativa de volta à censura e, como tal, uma séria ameaça à liberdade de expressão e a reflexão da arte, da ficção e da poesia que não se cala diante do que consideram um genocídio do povo negro na Bahia e no Brasil.
Se o próprio título do poema “Quadrilha”, uma inocente paródia de um clássico do grande poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade, deixava no ar uma pergunta que não queria calar, não demorou muito para que um poeta anônimo, provavelmente um policial militar, com a mesma mira certeira e nitidez de imagens com que a poetisa soteropolitana denunciava a violência policial, viesse lhe repostar nas redes sociais poetizando uma outra “Quadrilha”: “Maria não amava João, apenas idolatrava seus pés escuros. Quando João morreu, assassinado pela PM, Maria guardou todos seus sapatos… Não sabia Maria que a partida de João trouxe mais bem do que dor. Pois João era bicho solto. Querendo Maria ou não… Todos no bairro desejavam secretamente a sua morte. Quando João tirou a vida de um policial, a esposa do PM, que também se chamava Maria, foi esquecida pelo Estado e não ganhou outdoor… E só lhe restou guardar seus coturnos.”.
Polêmicas à parte, independentemente do que se possa depreender das perdas e danos, dos sapatos e coturnos guardados, não restam dúvidas de que na dimensão trágica das duas manifestações poéticas existe uma constatação de algo que o terrível sentimento de normalidade que domina a nossa sociedade frente à violência cotidiana teima em não querer ver: a polícia está matando muito e morrendo muito também.
Infelizmente, não sou ingênuo, meus sessenta e um anos de idade e os trinta e seis anos de serviço policial militar não me permitem esse privilégio, muito pelo contrário; sei que, infelizmente, atirar para matar, às vezes, é absolutamente necessário, quando se trata de defender a própria ou uma outra vida, principalmente por parte dos policiais.
Por outro lado, entendo a dor que a poetisa expressa em seus versos, pois não consigo comemorar o desfecho de operações policiais com mortes ou contá-las com o clássico final: “E todos foram felizes para sempre”. Mas, sem hipocrisia, é forçoso reconhecer que, diante da falta de credibilidade do nosso sistema de justiça criminal, incluído o sistema prisional, se torna cada vez mais comum ver pessoas vibrando quando criminosos contumazes se dão mal, pois é tudo que a sociedade, secretamente ou não, mais deseja.
Resumindo a história, os dois poemas relatam que a dor e a revolta são parte da vida, e por fazerem parte da vida humana colocam policiais e poetas como frutos do meio em que estão. Portanto, se tivesse que decidir com qual dos lados dessa polêmica poética está a razão, com certeza, na relação entre as dores e as revoltas das Marias dos dois poemas encontraria a solução. Afinal, suas dores e suas revoltas são duas faces da mesma moeda, duas faces de uma sociedade que compactua com a violência policial e, inclusive, percebe tal violência como solução adequada para nossos problemas de violência e criminalidade.
Dentro desta lógica, considerando que, em poesia, traduzir não é reproduzir e sim recriar, louvo àqueles que com versos têm o poder de nos tirar do sério e de arrancar os mais sinceros e absurdos sentimentos quando os lemos. Assim, já que os pés que calçam sapatos, não raro, são os mesmos pés que calçam coturno e que as mortes anunciadas não põem um fim às quadrilhas, lembrei-me de Augusto dos Anjos, em seus “Versos Íntimos”, quando nos alerta: O Homem, que, nesta terra miserável, Mora, entre feras, sente inevitável Necessidade de também ser fera.
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