Anistiar crimes contra democracia é inconstitucional, dizem juristas
Proposta está em tramitação na CCJ da Câmara dos Deputados
Os crimes contra o Estado Democrático de Direito, previstos na Lei 14.197/2021 não devem ser anistiados por uma questão de coerência interna da Constituição, que afirma que crimes contra a ordem constitucional e a democracia são inafiançáveis e imprescritíveis. A avaliação é da doutora em direito pela Universidade de São Paulo (USP) Eloísa Machado de Almeida.
Em entrevista à Agência Brasil, a professora da FGV Direito de São Paulo acredita que o Supremo Tribunal Federal (STF) deve considerar inconstitucional o PL da Anistia, caso ele seja aprovado pelo Congresso Nacional.
O projeto de lei em tramitação na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados perdoa os condenados pelos atos do dia 8 de janeiro de 2023, incluindo os financiadores, incentivadores e organizadores. Se aprovada, a lei pode beneficiar o ex-presidente Jair Bolsonaro, que também é investigado nos inquéritos que apuram o 8 de janeiro.
“Apesar de não haver expressa menção sobre vedação desse tipo de anistia na Constituição, há um argumento de que, por coerência interna da Constituição, tais crimes seriam impassíveis de anistia. Assim entendeu o ministro Dias Toffoli [do Supremo Tribunal Federal] ao julgar a inconstitucionalidade da concessão de graça ao ex-deputado Daniel Silveira”, explica a jurista.
O ex-deputado Daniel Silveira foi condenado a mais de 8 anos de prisão por atentar contra o regime democrático. Ao anular a anistia concedida a Daniel Silveira pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, em 2022, o ministro Dias Toffoli afirmou na sentença não vislumbrar “coerência interna em ordenamento jurídico-constitucional que, a par de impedir a prescrição de crimes contra a ordem constitucional e o estado democrático de direito, possibilita o perdão constitucional aos que forem condenados por tais crimes. Pergunto: que interesse público haveria em perdoar aquele que foi devidamente condenado por atentar contra a própria existência do estado democrático, de suas instituições e institutos mais caros?”.
A Constituição, no artigo 5ª, diz que não podem ser objeto de anistia os condenados por tortura, tráfico de drogas, terrorismo e crimes hediondos. O argumento de Dias Toffoli diz que “por coerência interna” da Constituição essa vedação também deve ser atribuída aos crimes contra a ordem democrática.
O PL da Anistia também seria inconstitucional por violar a separação e a independência entre os Poderes uma vez que o Congresso Nacional estaria invadindo uma competência que é do Judiciário, segundo avaliação da jurista Tânia Maria de Oliveira, da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).
“Essas pessoas estão sendo processadas e julgadas no STF. Se o Congresso resolver dar anistia a essas pessoas, ele está claramente fazendo uma invasão de uma competência que é do Supremo”, explicou.
Tânia Oliveira considera que esses parlamentares usam os instrumentos da democracia para uma briga que não é jurídica, mas sim política. “Querem anistia àqueles que atacaram o próprio Parlamento. Virou um debate que é estritamente político, não é um debate jurídico. Eles querem anistiar estritamente por uma posição política”, acrescentou.
Pacificação
Brasília (DF) 10/09/2024 Comissão de Constituição e Justiça da Câmara durante reunião para discutir o projeto de lei que concede anistia a todos os que tenham participado de manifestações em qualquer lugar do território nacional a partir do dia do dia 30 de outubro de 2022Foto Lula Marques/ Agência Brasil
Comissão de Constituição e Justiça da Câmara durante reunião para discutir o Projeto de Lei da Anistia – Foto: Lula Marques/ Agência Brasil
No parecer favorável à anistia, o relator da matéria na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, deputado Rodrigo Valadares (União/SE), diz que a medida visa a “pacificação” do país e que “a polarização política pode levar um país a uma guerra civil quando as tentativas de apaziguamento são deixadas de lado”.
O cientista político João Feres Júnior, professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj), considera que o projeto deve ter o efeito contrário ao anunciado pelo relator.
“A libertação dos radicais presos não vai causar qualquer pacificação. Muito pelo contrário, vai sinalizar que é possível atacar as instituições de maneira violenta e sair incólume”, diz.
Para o especialista, a tentativa de anistiar os responsáveis pelo 8 de janeiro revela certo desespero dos atores políticos por trás do movimento que questionou, sem provas, o resultado da eleição presidencial de 2022.
“Os parlamentares bolsonaristas estão meio desesperados. Eles estão se aferrando ao que podem. Essa agenda da anistia é bem limitada. Apenas querem livrar a cara de quem se envolveu na tentativa de golpe. Se você não consegue fazer um apelo para um eleitorado maior, então você tem um problema”, analisa.
Crime
Outro argumento usado pelo relator do PL da Anistia, é de que não houve crime contra a democracia, apenas a depredação do patrimônio público e que aquelas pessoas “não souberam naquele momento expressar seu anseio”.
A jurista Eloísa Machado de Almeida acredita que essa é uma tentativa de se reescrever a História e que as investigações em curso no STF são robustas em relação ao que aconteceu antes e durante o dia 8 de janeiro.
“Os argumentos querem fazer crer que não houve crime, mas sim uma mera manifestação de expressão. Isso está em total desacordo com os fatos revelados nas investigações e nas ações penais, onde se viu uma estrutura voltada à prática de crimes contra as instituições democráticas, inclusive com a participação da alta cúpula da Presidência da República, deputados e populares”, afirma.
No Brasil, é crime tentar depor, por meio da violência ou de grave ameaça, o governo legitimamente constituído ou impedir e restringir o exercício dos poderes constitucionais, conforme define a Lei 14.197/2021. Essa legislação também considera crime incitar, publicamente, a animosidade entre as Forças Armadas e os demais poderes constitucionais. As penas variam e podem chegar a 12 anos de cadeia.
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