Levantamento aponta que racismo influencia abordagem policial e processo por tráfico
Relatório foi produzido pela Iniciativa Negra, Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas e apoio do Núcleo Especializado de Situação Carcerária (Nesc) da Defensoria Pública de SP
As pessoas acusadas por tráfico de drogas em São Paulo são jovens, negras, pobres e moradoras das periferias. Essa população constitui o alvo da guerra às drogas por parte da segurança pública e da justiça criminal, segundo o relatório Liberdade Negra Sob Suspeita: o pacto da guerra às drogas em São Paulo, que avaliou 114 processos penais acompanhados pela Defensoria Pública, desde o inquérito até a execução da pena.
O documento, divulgado nesta quinta-feira (23), foi produzido pela Iniciativa Negra, Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas e apoio do Núcleo Especializado de Situação Carcerária (Nesc) da Defensoria Pública do Estado.
“Esse desequilíbrio em uma atuação a partir de um estereótipo, do racismo institucional ou estrutural, é uma questão que vai perpassando vários momentos do processo e da acusação dessa pessoa. A partir dessa abordagem policial, que diversos movimentos e pesquisadores têm questionado há muito tempo, [haverá] um perfilamento que vai ser racializado e definir o público alvo prioritário de abordagem policial. E vai ter como resultado também o desequilíbrio de representação racial no judiciário brasileiro”, disse Juliana Borges, coordenadora de articulação e incidência política da Iniciativa Negra.
Pessoas negras correm mais risco de serem presas durante patrulhamento (56%) ou por investigação de denúncia anônima (52%) por crimes relacionados à Lei de Drogas, enquanto a maioria dos brancos é presa durante operações policiais (63%), o que demonstra tratamento diferente por parte de policiais a pessoas negras e pessoas brancas durante abordagens no estado de São Paulo.
Tal diferença é relevante já que, para iniciar uma operação policial, deve haver investigação prévia, levantamento de informações sobre o acusado, possível acionamento da Polícia Civil, testemunhas, indícios e provas. O patrulhamento, no entanto, pode considerar definições não objetivas sobre o que seria uma atitude suspeita e ocorre em locais marcados como pontos de comércio de drogas.
“O que percebemos é que a maioria das pessoas que estão sendo presas estavam com uma quantidade ínfima de substância [ilegal]. E essas pessoas não são grandes traficantes. Se a ideia do Estado é combater tráfico, essas ações policiais precisam estar mais baseadas em investigação, inteligência, produção de dados, evidências”, disse Borges.
No entanto, ela afirma que o que se tem visto hoje é que as ações policiais estão ligadas ao uso de patrulhamento ostensivo, que é baseado na leitura dos policiais do que é ou não uma atitude suspeita. Segundo a pesquisa, resultam muitas prisões arbitrárias de pessoas negras.
Polícia Militar
A Polícia Militar do estado é apontada em 80% dos processos por agressões no momento da prisão; 66% dos relatos são de pessoas negras, ou seja, o dobro dos 33% informados por brancos. “As ações policiais são em sua maioria, arbitrárias, violadoras de direitos e violentas, levando a altos índices de letalidade entre as populações negras e os agentes de segurança pública, também em sua maioria, pessoas negras”, diz o documento.
Segundo a pesquisa, há uma estrutura judicial e um sistema penal historicamente construído a partir de estatutos coloniais e escravocratas desde a abolição inconclusa no Brasil.
O sistema de justiça criminal, por sua vez, legitima e perpetua uma lógica de encarceramento em massa que fortalece o crime organizado, impondo pessoas em conflito com a justiça criminal a um processo de desumanização através do cárcere, gerando consequências deletérias às famílias e comunidades negras e aos territórios periféricos”, acrescenta o relatório.
Além disso, a pesquisa apontou que justificativas consideradas frágeis dadas pelas autoridades policiais durante a abertura do inquérito policial foram reforçadas e corroboradas por juízes no momento da análise dos casos e execução da pena. Em apenas 15 ocorrências foi confirmada a presença de testemunhas civis, enquanto em 99 ocorrências, ou seja, em 87% dos casos, a única testemunha do processo criminal é a própria autoridade responsável pela prisão.
No estudo, foi observado um padrão de severidade adotado pelo judiciário nas penas relacionadas à Lei de Drogas no estado, explicitado pela maioria de condenações por tráfico privilegiado, que não é considerado crime hediondo pelo Código Penal Brasileiro, mas que aparece em 33% dos processos equiparadas à crimes de maior gravidade para justificar as penas em regime fechado e uma multa cumulada de um a 200 dias multas, o que pode chegar a R$ 7.272,00.
O relatório ressalta que, embora a Lei de Drogas não prevê a pena de prisão para o usuário de substâncias consideradas ilícitas, a falta de critérios objetivos para a distinção entre usuário e traficante, levou ao longo dos anos a um aumento exponencial no encarceramento em massa no país.
Perfil
Os dados apontam ainda que 54% das pessoas presas nos processos analisados eram negras. A maior parte dos presos é jovem, sendo 58% com idade entre 18 e 21 anos, e não tem antecedentes criminais – 51% são réus primários.
Além disso, 54% dos presos estavam desempregados no momento da prisão; 40% alegou ter uma ocupação profissional e, destes, 65% realizavam serviços gerais ou atuavam como técnicos de manutenção.
Sobre a renda das pessoas encarceradas que declararam ter alguma ocupação remunerada, 28% tinham rendimentos acima de R$ 1.500, contra um total de 66% de pessoas que não conseguiam chegar a este rendimento por mês. Cerca de 7% dos processos não continham informações sobre a renda.
Quando se compara o grau de escolaridade dos acusados, a vantagem é dos brancos, já que 62% deles cursaram todo o ensino médio, enquanto só 39% dos negros completaram essa etapa do ensino. A maioria das pessoas negras acusadas pela Lei de Drogas no estado não chegou a completar o ensino fundamental — o equivalente a 71% dos casos.
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