Publicado em 10/01/2017 às 09h25.

Faraó 30 anos: Conheça Luciano Gomes, autor do hino do samba-reggae

A música que revolucionou o Carnaval de Salvador e conquistou o Brasil e o mundo foi composta quando ele tinha apenas 20 anos

James Martins
Foto: Mateus Soares / bahia.ba
Foto: Mateus Soares / bahia.ba

 

“Eu falei faraó-ó-ó!”, em 1987, há portanto 30 anos, o Carnaval de Salvador foi impactado por uma música nova, épica, estranha, que não deixaria pedra sobre pedra na base ou no topo da pirâmide sócio-cultural. Seu porta voz era o bloco-afro Olodum, que, após uma pausa em que ficou sem desfilar, desde 1984 vinha se impondo como um grande nome da folia (embora ainda desconhecido de muita gente), graças sobretudo ao novo presidente, João Jorge, e seu mestre de bateria, Neguinho do Samba, ambos com passagens pelo Ilê Aiyê, o pioneiro. E o povo na praça, na rua, na chuva, na avenida respondeu: “Êêê-Faraó!”. Composta em setembro de 1986, a canção já fazia sucesso no Pelourinho, nos ensaios do bloco, mas foi no carnaval que a cidade inteira conheceu o seu esplendor.

Um dos que a descobriram em plena Praça Castro Alves foi Caetano Veloso. O santo-amarense inclui aquele momento entre as suas maiores emoções carnavalescas. “Ouvimos primeiro ao longe, depois por algumas pessoas próximas à estátua, que era onde ficávamos, sem que houvesse som de trio e sem saber que música era aquela…”, recorda. E completa: “Aprender ali, a canção e tudo sobre o Olodum, foi muito emocionante. Mudou o mundo!”. Daniela Mercury, então backing vocal do bloco Eva, foi outra que ficou espantada e encantada. Entre tantos e tantos, populares e artistas. E artistas populares. Era o primeiro samba-reggae conhecido, início de um novo som, de uma nova estética. Graças ao “Faraó”, ou melhor, graças a “Faraó – Divindade do Egito” (o nome oficial da canção), o Olodum vendeu mais de 50 mil cópias do disco “Egito/Madagascar” (1987), já naquela época. Em seguida, Djalma Oliveira gravou a música, na voz de Margareth Menezes. Depois, a Banda Mel, que fez ainda mais sucesso com sua versão pop. A própria Daniela Mercury também já gravou, mais de uma vez. Ivete Sangalo cantou. Todo mundo. Aliás, a música é um hit eterno, ou seja, um verdadeiro clássico. Mas tudo isso não se deu sem a resistência e estranheza que obras de arte assim inovadoras costumam suscitar.

O produtor argentino Nestor Madrid, responsável pela gravação de Djalma/Margareth, lembra que, ao receber a letra, ficou espantado com o seu comprimento. Em depoimento ao filme “Axé – Canto do Povo de Um Lugar”, de Chico Kertész, ele diz: “Eu recebo a letra… [fazendo cara de espanto] A letra é isso? Tudo isso? Quem vai decorar? Isso é impossível acontecer…”. Como era de se esperar, as rádios se recusaram a tocar aquela música fora dos padrões. E vale destacar um nome no doloroso processo de derrubada das barreiras: Marcos Xarope. Este radialista esportivo gravou por conta própria as batidas do Olodum, em pleno Pelourinho, e as usava como plano de fundo das transmissões de futebol. Aí, na hora do gol, mandava ver no “Eu falei faraó-ó-ó!”, dando início ao degelo radiofônico. Porém, dentre tantos nomes relacionados à construção do sucesso, o nome principal muitas vezes é omitido, ou melhor, quase nunca é citado: Luciano Gomes, o pai da criança.

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Fotos: Mateus Soares / bahia.ba

 

Nascido no Bonfim em 1966, Luciano chegou ao Pelourinho com apenas 10 anos, quando também foi ao carnaval pela primeira vez, levado por sua mãe, e se flagrou fulminado pelo brilho do Ilê Aiyê. “Na época quem cantava no Ilê eram César Maravilha, Heron, Lazzo Matumbi, Aroldo Medeiros e Osvaldo Bailado. Aí eu me apaixonei pela ala de canto do Ilê e achei que era isso que eu queria também para mim”, recorda. Em seguida, atendendo à instigação de amigos, para que tentasse compor uma música para algum bloco, escolheu o mais próximo: o Olodum era sediado no mesmo prédio onde ele morava, na Rua Santa Isabel (Centro Histórico). Mas a primeira composição não foi “Faraó” e sim, “Raça Negroide (UJama)”, de 1984, outro sucesso. “Foi a música mais tocada, mais divulgada das festas de largo. O pessoal vinha nos ônibus todo mundo cantando, sem nunca tocar em rádio, TV, nada. E daí em diante eu passei a compor direto para os blocos afro”, diz. Neste Femadum (Festival de Música e Artes do Olodum), aliás, ele tirou o primeiro e segundo lugares. Cheio de prosa, Luciano fez parte da ala de canto do próprio Olodum e dali passou ao Muzenza (um bloco mais famoso à época), compôs outros sucessos, como “Swing da Cor”, faixa-título do primeiro disco de Daniela Mercury, mas recorda bem a inspiração para “Faraó – Divindade do Egito”.

“Estávamos todos ansiosos para saber qual seria o próximo tema do Olodum. E João Jorge, que é uma cabeça futurista, decidiu que o bloco deveria sair prestando uma homenagem ao ‘Egito dos Faraós’. Fizeram uma apostila, e essa apostila foi entregue aos compositores. E aí a gente começou a fazer a pesquisa em cima. Bom, eu achei que os outros compositores estavam focando muito na riqueza do faraós, os tesouros de Tutankamon e tal. Mas eu acredito que a rapaziada não falava muito da parte espiritual dos egípcios, da parte mística… E aí eu parti para esse lado. Achei que seria mais interessante narrar alguma coisa que falasse sobre romantismo, do enlaçamento entre Osíris e Ísis, os ciúmes, tudo isso, e graças a Deus eu fui feliz nessa composição”, analisa Luciano. Ao comentar o sucesso atingido pela canção, considerada o hino do samba-reggae, ele não demonstra grande assombro, nem uma ponta sequer de deslumbramento, embora saiba o valor da obra. “Conheço papagaio que canta ‘Faraó’. Várias pessoas que se casaram por causa dessa música… Tô feliz!”, resume.

Cena do carnaval do "Faraó", 1987 (Reprodução do filme de Ariel de Bigaut).
Cena do carnaval do “Faraó”, 1987 (Reprodução do filme de Ariel de Bigaut)

 

Se fosse em outro país, talvez Luciano Gomes tivesse feito fortuna com os direitos autorais de “Faraó – Divindade do Egito”. Mas, e no Brasil real, será que Osíris sabe como aconteceu? “Muita gente me pergunta isso. O finado Augusto Omolu [dançarino assassinado em 2013], que era muito meu amigo, sempre me dizia: ‘Luciano, se você hoje fosse um compositor da Dinamarca, dos Estados Unidos, da França, estaria milionário”, diz, sorrindo. E completa: “Eu ganhei dinheiro com ‘Faraó’. Se disser que não, tô mentindo. Mas eu sei que poderia ter ganho muito mais”. Como muitos compositores brasileiros, ele sobrevive mesmo de outra profissão. Luciano Santos Gomes, hoje com 50 anos, é funcionário público. E também já não mora no Pelourinho e sim em Cajazeiras. Mas, andando pelas ruas do Pelô, onde fizemos esta entrevista, o compositor é abordado a todo momento por amigos, conhecidos e admiradores remanescentes da área. Um turista assiste à sessão de fotos com cara de estranheza, buscando identificar a celebridade anônima. Ao ser questionado se conhece aquela música que diz “ê-ê-faraó”, e posteriormente informado de que ali está o compositor, esbugalha os olhos e diz: “Ah, ótimo! Adoro essa música”.

“Eu ganhei dinheiro com ‘Faraó’. Se disser que não, tô mentindo. Mas eu sei que poderia ter ganho muito mais”

Luciano, no entanto, queixa-se de outro tipo de reconhecimento: o respeito ao compositor por parte de quem ganha com suas músicas: empresários, intérpretes e mesmo entidades carnavalescas. Respeito: um tesouro que considera muito mais importante que todo o dinheiro que não ganhou. “É uma questão moral, não financeira. É você ser bem recebido pelas entidades, as pessoas relatarem que você que é o compositor de tal obra. A gente quer apenas reconhecimento e respeito para quem fez a história dos blocos. Acham que o compositor só serve para escrever e o intérprete estourar com a música e ganhar dinheiro. Mas, sem o compositor, a coisa não anda”, diz. E continua, elevando o tom: “Você chega no bloco e tem os diretores que se acham donos do mundo. Para entrar numa quadra eu tenho que falar com cinco, seis, é aquela burocracia… tem que aparecer alguém pra dizer ‘não, esse aí é Luciano’. Isso não existe! Aí a gente reclama e acham que é uma questão financeira, mas não é, é uma questão moral”.

E, seguindo o mesmo raciocínio, aplicado agora ao momento atual da música baiana, que não vê com entusiasmo, Luciano avalia que o desrespeito ao compositor é responsável direto pela baixa no número de grandes músicas: “Eu mesmo já tentei mostrar uma música a Daniela [Mercury] e tive que ir várias vezes, falar com um e outro, voltar outro dia, até que desisti, que eu não sou de ficar adulando ninguém. E isso mesmo eu dizendo que era o autor de ‘Swing da Cor’, imagine um iniciante!”. Ele reclama também da dinâmica dos ensaios de bloco afro, que mudou muito desde aqueles anos 80. “Na minha época, as entidades tinham o tempo do compositor. Abria o ensaio, depois a ala de canto começava a chamar os compositores para mostrarem suas músicas. Hoje a coisa é mais restrita aos bastidores. Você não vê um garoto desses novos terem oportunidade numa ala de canto de bloco, ser chamado para cantar. Até mesmo porque, como os ensaios são pagos, as entidades ficam com medo de o menino fazer feio e estragar a festa. Mas eu acho que então deveriam fazer ensaios específicos para os compositores novos mostrarem suas músicas, sem pressa, porque tem que renovar”, diz.

Foto: Mateus Soares / bahia.ba
Foto: Mateus Soares / bahia.ba

 

E como estamos falando desse predominante esquema mitológico da indústria cultural, a conversa volta aos intérpretes. Questionado sobre quem seria o melhor intérprete da sua música mais famosa, ele retoma o tom calmo de costume, mas fica um pouco mais pensativo. Na verdade, bastante pensativo. “Cada cantor tem a sua maneira de interpretar aquela obra. Lazinho [cantor do Olodum] tem uma interpretação maravilhosa, eu gosto muito! Margareth tem o vozeirão dela, a forma dela. Cada um que interpreta ‘Faraó’ e interpreta com o coração fica bonito. Mas, eu acho assim, em termos de sentimento, quem interpreta ‘Faraó’ com maior entusiasmo, vai buscar lá do fundo do coração, é Margareth Menezes”, diz. Nem tudo, contudo, são queixas. Desde novembro do ano passado, até novembro próximo, o Olodum iniciou a campanha “Eu Falei Faraó”, dedicada a homenagear a música mais importante da história do bloco que atraiu Paul Simon e Michael Jackson a Salvador. O tema do carnaval da entidade este ano, “O Sol – Akhenaton: Os Caminhos da Luz”, também se remete à canção. “Estou muito feliz com esse reconhecimento. Eu já esperava por isso há muito tempo”, comemora.

“Em termos de sentimento, quem interpreta ‘Faraó’ com maior entusiasmo, vai buscar lá do fundo do coração, é Margareth Menezes”

Há mais ou menos cinco meses, Luciano Gomes sofreu um acidente automobilístico no bairro onde mora. Um carro na contramão se chocou contra o dele. A batida o deixou preso nas ferragens. Por isso, o compositor, bem abaixo de seu peso normal, agora está usando muletas e faz sessões de fisioterapia regularmente. Falando assim, pode não parecer muito grave. Mas ele sofreu nada menos que três paradas cardíacas durante o acidente. Não uma nem duas: três. “Mas eu vou para o carnaval sim, que eu sou ruim. Ah, se vou! Não perco por nada”, afirma. Os egípcios atribuíam imortalidade aos faraós. E, pelo visto, essa imortalidade contagiou o compositor, talvez pelo contato intenso com o tema. Mesmo desconhecido de muitos, Luciano Gomes é com certeza um faraó da música baiana. Um faraó, se não do Egito, do agito. E, mesmo quando não estiver mais entre nós, seguirá, como os faraós, imortal. Não como os imortais da Academia Brasileira de Letras, muitos deles cujas obras faraônicas são ignoradas até mesmo pelos companheiros de chá. Luciano é imortalizado, ao contrário, pela eternidade de sua letra sem academia, sempre viva na memória das gentes. “Que mara-mara-mara-maravilha-ê!”.

Mesmo desconhecido de muitos, Luciano Gomes é com certeza um faraó da música baiana. Um faraó, se não do Egito, do agito.

* Na segunda parte de nosso especial, uma análise estética e histórica da letra (e música) de “Faraó – Divindade do Egito”.

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