Publicado em 20/12/2015 às 08h00.

O cinema dos Orixás da baiana Eliciana Nascimento

Cineasta negra lança em Salvador filme 'O Tempo dos Orixás', produção lançada no Festival de Cannes, em 2014, e que ganhou três prêmios internacionais de melhor filme

Juliana Dias

Há pessoas que funcionam, muitas vezes, como espelhos. Elas têm o poder de refletir em outras pessoas a esperança e a perseverança na realização de sonhos, especialmente se quem recebe esses estímulos são negros, jovens e de origem periférica. Em uma conversa agradável com a cineasta baiana Eliciana Nascimento, ela nos mostra que sua superfície e a profundidade de seu trabalho no audiovisual têm faces côncavas e convexas, com raiz no centro do culto transfronteiriço aos Orixás.

Afinal, já passou da hora, mas ainda há tempo, de seus conterrâneos conhecerem essa jovem cineasta que saiu há sete anos de Periperi, subúrbio ferroviário de Salvador, para afrontar nos Estados Unidos uma indústria mundial que teima em subordinar e estereotipar a presença da população negra no universo da cinematografia. Felizmente, contamos com Eliciana para continuar rompendo as barreiras na construção e realização de cinema negro e cinema dos Orixás – estilo pela qual vem sendo nomeada com seu filme O Tempo dos Orixás (The Summer of Gods),  que é lançado pela primeira vez em diversos espaços de Salvador e do interior da Bahia. Confira as datas e locais de exibição aqui e veja o  trailer no final do texto.

A estreia do filme – fruto de sua tese de mestrado pela San Francisco State University na Califórnia (EUA) – aconteceu em 2014, no Festival de Cannes (França), na seleção de curtas-metragens, e desde então rodou as telas dos cinemas de diversos países, o que lhe rendeu, até o momento, cinco premiações em festivais nos Estados Unidos e em Cabo Verde, dentre elas, três de melhor filme.

No berço da produção cinematográfica mundial, Eliciana ganhou a projeção que tanto buscou desde o momento em que começou a operar uma câmera de vídeo, iniciado na militância diária do audiovisual da temática negra e por conta da escassez de olhares femininos por trás das lentes.

Cena do filme O Tempo dos Orixás. Foto: Divulgação
Cena do filme O Tempo dos Orixás. Foto: Divulgação

 

‘Salvador é mais África do que ela própria’

O protagonismo feminino e negro é uma característica do filme, de gênero fantasia, O Tempo dos Orixás, desde sua concepção, atuação e distribuição cinematográfica. O enredo gira em torno da história de Lili, uma menina de sete anos, que, ao visitar a sua avó no interior da Bahia, descobre que tem uma missão com os Orixás, relacionada à tradição de seus ancestrais. O compromisso é autobiográfico já que revela momentos da vida da cineasta: “É a história da minha infância, das minhas memórias com minha bisavô e minha mãe”.

Filha de Eleggua e Oxanlá na tradição cubana, Eliciana escreveu a história de Lili nos Estados Unidos quando estava passando pelo processo de iniciação de iaô na Santeria – religião de tradição iorubá levada para Cuba pelos africanos durante a escravidão, assim como ocorreu com o candomblé no Brasil. A relação da cineasta com a ancestralidade africana começou ainda em Salvador, foi aprofundada nos Estados Unidos e em Cuba e continuará ecoando no seu fazer cinematográfico. “Este filme não trata de uma religião específica, ele é um culto aos ancestrais, aos Orixás, para que as pessoas, especialmente os mais jovens, se identifiquem com os seus elementos e possam dar continuidade ao que os nossos antepassados lutaram tanto para manter vivo”.

A preservação das tradições religiosas e ancestrais de origem africana é o caminho de Eliciana e o argumento de suas produções tem como base a sua própria vivência nas outras diásporas negras. Ela conta que muitos cineastas africanos com os quais ela mantém contato, graças à participação de seu filme em festivais internacionais, não fazem ideia do que é um Orixá. A causa do desconhecimento é a forma cruel e devastadora pela qual o evangelismo foi imposto no continente africano: “Eu acho que a gente em Salvador é mais África do que ela própria”, reconhece.  A alcunha de “cineasta dos orixás” não foi dada à toa: a próxima produção de Eliciana será um filme no formato longa-metragem sobre a intolerância religiosa, com gênero político.

Eliciana de pochete laranja junto ao elenco de seu filme. Foto: Divulgação
Eliciana de pochete laranja junto ao elenco de seu filme. Foto: Divulgação

 

Mil e uma funções para fazer cinema negro

Se fazer cinema no Brasil já é uma tarefa árdua, imagine o que é fazer cinema negro. O esforço de imaginação é um exercício instantâneo para o leitor que não é da área, mas para quem há anos labuta nessa atividade é através da imaginação, criatividade e, sobretudo, persistência que milhares de mulheres e homens negros driblam as desigualdades que ainda existem na produção cinematográfica brasileira e mundial. Os percalços seguem um ciclo, tanto do ponto de vista do profissional quanto dos produtos finais, que começam na formação, passa pelo financiamento e produção, e culmina na distribuição.

“Se vira nos trinta”. Foi esse o conceito sentencioso de Eliciana para rodar O Tempo dos Orixás. Primeiro, fez uma campanha online para arrecadar 30 mil dólares. Conseguiu 18 mil, que contou com a ajuda meramente ilustrativa do ator estadunidense Danny Glover em um vídeo falando da importância da realização do filme, o restante reuniu com o auxílio do ex-marido, também cineasta. Segundo, os altos custos de pré e pós produção e, terceiro, a distribuição e apresentação em festivais. É a diretora quem faz o banner, o cartaz, o release de divulgação, os contatos para exibições, ministra palestras, envia o filme para festivais, gerencia aspectos jurídicos e comerciais da venda de seu filme pela internet e lá vai acúmulo de funções.

“Sou eu pra tudo e sei que essa realidade é a mesma para muitas cineastas negras. E, se você não tem a formação ou o entendimento de como fazer cada atividade, as barreiras aumentam. O cinema desde sua criação é uma arte de elite, que foi criada para elite, por isso é tão difícil o nosso acesso e permanência.” diz Eliciana.

No cinema: ‘Eu sou porque nós somos’

Falar sobre esse problemas e pensar alternativas de suporte para a produção cinematográfica negra a nível mundial são outros verbos que Eliciana conjuga, dessa vez na terceira pessoa, com um movimento “muito interessante” que ela e diversos cineastas africanos e descendentes de africanos pretendem pôr em marcha. “Nós temos que começar a falar sobre suporte para as produções sobre a nossa realidade. O branco e a elite têm estrutura para produção, financiamento e distribuição porque a sociedade racista quer ver somente o branco nas telas e atrás delas”, aponta.

A luta coletiva começa a ganhar contornos cada vez mais latentes, a exemplo de Ava Duvernay, diretora do filme “Selma” e primeira mulher negra a ser indicada ao Globo de Ouro de melhor direção, ainda que as mudanças estejam engatinhando.  “A indústria cinematográfica no geral precisa entender que a gente precisa de um sistema de cotas para negros no cinema, isso significa recursos específicos para produção de filmes negros e espaços nos festivais de grande porte para exibição e distribuição desses filmes.”

Confira o trailer do filme O Tempo dos Orixás:

 

 

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