Publicado em 26/08/2025 às 06h00.

20 anos de Cidade Baixa: a epopeia das vidas marginalizadas em Salvador

Filme de Sérgio Machado celebra duas décadas com sessão especial nesta terça-feira (26) e um bate-papo especial com o bahia.ba

João Lucas Dantas
Foto: Reprodução/ VídeoFilmes

 

Um dos testamentos do cinema baiano, o filme Cidade Baixa comemora 20 anos de lançamento, com sessão especial no Cine Glauber Rocha, nesta terça-feira (26), às 19h30, com a presença do diretor Sérgio Machado, para um bate-papo após a exibição. Dada a ocasião, o bahia.ba conversou com o autor, que contou detalhes especiais sobre a produção.

O filme, 100% baiano, foi lançado em 2005 e tem roteiro do próprio Sérgio, em parceria com Karim Aïnouz e Adriana Rattes. A narrativa acompanha dois amigos inseparáveis, Deco, interpretado por Lázaro Ramos, e Naldinho, vivido por Wagner Moura, que trabalham transportando cargas de barco na região portuária de Salvador. Essa amizade profunda é colocada à prova quando os dois conhecem Karinna, papel de Alice Braga, uma jovem dançarina e prostituta.

A convivência entre os três leva a uma relação intensa e conflituosa, marcada por desejo, paixão, ciúmes e violência, compondo um triângulo amoroso que ameaça destruir o elo entre os amigos. O filme retrata com naturalismo o cotidiano da capital baiana, explorando o submundo de bares, portos e bordéis, sem idealizações, com uma estética visceral e próxima da vida real.

A obra foi exibida na Mostra Un Certain Regard do Festival de Cannes e conquistou prêmios no Brasil e no exterior, consolidando a força do cinema nacional no cenário internacional. Ficou especialmente conhecido pela autenticidade com que apresenta a vida nas margens da cidade e pelas atuações potentes do trio principal, que carregam a história com intensidade emocional.

Foto: Reprodução/ Instagram

 

Nascimento da ideia

Este foi o primeiro longa-metragem de ficção do diretor, que já havia comandado o documentário Onde a Terra Acaba (2002) anteriormente, que retratava o cineasta Mário Peixoto, diretor de Limite (1931), uma das obras mais importantes do cinema brasileiro.

Antes de se aventurar como diretor, Sérgio já trabalhava na produção cinematográfica. Foi assistente do diretor Walter Salles, em Central do Brasil (1998), e também já havia ajudado o cineasta Karim Aïnouz a escrever Madame Satã (2002). Dessas parcerias veio a motivação para tocar o seu primeiro longa de ficção. E a tarefa não seria fácil.

“Eu já estava trabalhando com o Walter, e tinha um desejo dele de produzir meu primeiro filme. Por conta do sucesso também do meu primeiro documentário e do apoio lá da VideoFilmes (produtora dos irmãos Walter e João Moreira Salles), conseguimos levantar o projeto. Eu tinha uma ideia vaga, num primeiro momento, de que queria fazer uma coisa ligada a um triângulo amoroso. Queria fazer em uma Bahia de época, inspirada nos livros de Jorge Amado, nas fotografias de Pierre Verger, na música de Dorival Caymmi e nas pinturas de Carybé”, contextualiza Sérgio, em entrevista ao bahia.ba.

Segundo o diretor, o filme foi escrito na Ilha de Itaparica e contou com a consultoria no roteiro do grande cineasta Eduardo Coutinho (Cabra Marcado Para Morrer; Edifício Master), que agia como um mentor na produtora dos irmãos Salles. “A gente escrevia, voltava pro Rio, mostrava e ele respondia: ‘Não, tá muito ruim.’ Aí a gente voltava pra ilha e pensávamos, ‘Pô, tá ficando pior.’ Foi um processo difícil de encontrar a história”, relata.

O momento decisivo partiu de um estímulo do parceiro Karim, que provocou à época: “A gente tá dando murro em ponta de faca. Vamos tentar entender o que você quer dizer no cinema. O que você precisa dizer pro mundo?”, questionava.

“Aí a gente parou de ficar escrevendo e ficou discutindo o que eu queria dizer pras pessoas. Eu ficava fazendo um advogado do diabo, tentando tirar de mim o que eu precisava, o que estava entalado na garganta”, acrescentou Sérgio. Uma das ideias era retratar vidas de pessoas simples, pobres, transformando em uma epopeia grandiosa. “Isso fala um pouco do meu interesse, da minha curiosidade pelo mundo, uma ideia que eu tenho desde criança e que queria trazer para os filmes”.

O objetivo do roteiro era chegar muito perto das pessoas e entender as profundezas da alma destes personagens, descobrir que as coisas principais que nos compõe pertencem a todo mundo. “Todos têm medo de morrer, de ficar sozinho, de não dar certo. As coisas mais importantes são comuns a todos. Então, me veio a ideia de falar um grupo de fudidos. Uma prostituta do cais do porto e dois trambiqueiros de quinta categoria. E mostrar essas pessoas de muito perto, para que entendam que elas amam como qualquer outra”, expressa o cineasta.

Para o processo de pesquisa, o diretor mergulhou de cabeça nessa Salvador marginalizada, frequentando muitos dos locais retratados ao longo do filme, durante cerca de três meses. “Eu vivi mesmo aquilo. Eu ia para os lugares, via a bandidagem toda, fiquei muito amigo das prostitutas do cais e saía com elas pra dançar. Foi uma experiência muito rica, muito legal. Eu escrevia uma base e pegava as coisas que eu ouvia nessas vivências e substituía as que eu havia escrito. Quase todos os diálogos do filme são retirados da rua”, relembra.

“É uma espécie de épico de vidas desimportantes. Então tem uma tragédia amorosa de pessoas que você provavelmente passa na rua e atravessa para o outro lado pra não encontrar com elas. E uma outra ideia é que existe uma pulsão sexual muito vibrante nas classes mais baixas na Bahia, as pessoas não ficam discutindo relação. Quando elas querem, elas transam, e quando estão insastifeitas, saem na porrada. A mensagem que eu queria passar mesmo é que a vida é difícil, mas vale a pena ser vivida e que o amor é o motor de tudo isso”, esclarece Sérgio.

Foto: Reprodução/ VídeoFilmes

 

Triângulo amoroso naturalista

Ao trabalhar o aspecto do envolvimento amoroso do trio, o filme buscou abordar, de forma muito natural, a trama e o cotidiano daqueles personagens, trazendo uma tensão sexual pulsante muito característica à obra, e de uma grande amizade posta em risco, ressaltando com clareza a influência em grandes artistas da nossa terra, como nos romances de Jorge Amado.

“Isso parte de um fascínio que eu tenho pelo feminino. É comum pra mim essa ideia de homens em torno de uma mesma figura. A mulher como sol, como luz, e os homens ao redor. Acho que a Bahia tem muito isso”, pontua o cineasta.

O diretor, que agora também está lançando um novo documentário nas próximas semanas, Os Três Obás de Xangô, que retrata a amizade incondicional entre Jorge Amado, Dorival Caymmi e Carybé, diz que sente uma relação direta entre as temáticas que foram abordadas há 20 anos e essas três peças fundamentais das artes baianas.

Muito desse tom veio de um conselho do Eduardo Coutinho de que o cineasta olhasse para a realidade da Bahia contemporânea daquele momento e deixasse de lado a Salvador representada nas obras desses ídolos. “É engraçado que só agora estou matando essa vontade e fazendo um filme sobre esses personagens, honrando o conselho dele, que me disse para ‘fazer isso depois, agora faça um filme seu’. E ele estava certo”.

“O Muniz Sodré (sociólogo; jornalista) fala que a Bahia, por causa do candomblé, é uma terra onde o feminino está muito bem resolvido. E o Caymmi falava ‘o bonito está no feminino das coisas’. Eu tenho esse interesse, que nem sempre é intencional, mas tem a ver com essa ideia de que as mulheres são o centro, e os homens gravitam em torno delas de maneira errática, violenta, mas inevitável. É algo que me chama atenção, essa disputa masculina por esse lugar”, acrescenta.

Ressurgimento do interesse na obra

Com o relançamento especial de 20 anos, no Cine Glauber Rocha, tendo entrado no catálogo da Netflix recentemente, na Globoplay e com cenas constantemente sendo republicadas nas redes sociais, Cidade Baixa nunca sai de moda e mostra a potência do cinema nacional, sobretudo baiano. Ao bahia.ba, Sérgio também revelou que uma exibição festiva está sendo planejada para o Rio de Janeiro, com a possibilidade da presença do trio principal — Wagner Moura, Lázaro Ramos e Alice Braga.

“O filme estreou, foi premiado no Festival de Cannes, lançou três grandes atores, que ficaram amigos, irmãos. Estava todo mundo muito no começo da carreira. A gente já se conhecia — eu, Lázaro, Wagner — foi um processo muito gostoso de fazer. E acho bonito que tenha ficado em Salvador como um filme genuinamente baiano, pelo qual tenho muito carinho. Foi lançado no mundo inteiro. É uma obra que ficou pra mim também, fiquei anos com ele na cabeça”, expressa.

Foto: Reprodução/ redes sociais

 

Memórias marcantes do período

Tendo sido fundamental para o pontapé inicial na carreira dos envolvidos e tendo tido uma rodagem por diversos festivais ao redor do mundo, como o de Cannes, mencionado acima, e tendo recebido o prêmio Un Certain Regard (2005), o diretor afirma ter muitas memórias especiais do nascimento da sua obra para o mundo.

“O prêmio de Cannes foi muito marcante. Ganhamos muitos prêmios, não saberia dizer exatamente quantos, talvez uns 25, Cuba, Suécia. E tinha festivais de filmes de amor — não sei se ainda existem — um em Verona, na Itália, e outro em Mons, na Bélgica. Cidade Baixa ganhou nos dois. Foi um filme que rodou muito, principalmente entre os jovens”, rememora Sérgio.

Um dos momentos especiais foi uma lembrança relacionada a Jorge Amado e sua família, a qual Sérgio era próximo. O escritor foi responsável por alavancar a carreira dele como cineasta, ao ter enviado seu primeiro curta para Walter Salles, fazendo com que começassem a trabalhar juntos.

“Me lembro bem quando recebemos o prêmio de Cannes; teve uma coisa que me emocionou muito. O Jorge foi esse cara que me trouxe pro cinema, mas quando o filme ganhou, ele já tinha morrido. E a primeira pessoa que me deu parabéns quando recebi o prêmio foi a dona Zélia Gattai (esposa de Jorge). Ela disse que tinham uma crença dentro da família, e contou que tinha despejado as cinzas do Jorge numa árvore, lá na casa do Rio Vermelho”, contextualiza.

“Ela dizia que acreditava que, toda vez que o Jorge estava feliz no além, a árvore ficava cheia de flores. Nesse dia, ela acordou cedo e viu que a árvore estava especialmente florida. Depois leu no jornal que a gente tinha ganho e falou: ‘Ah, agora eu entendi!’ Ela foi a primeira pessoa que me escreveu depois do prêmio. Eu me emocionei muito com isso”, toca o diretor. “As pessoas saudaram como um filme mais parecido com a literatura dele do que as próprias adaptações diretas, o que me deixou muito orgulhoso”.

Com amizades para a vida toda e o cinema brasileiro profundamente marcado por este filme sensível sobre pessoas marginalizadas, que retratou tão bem a cidade de Salvador para a eternidade, o diretor encerra a fala com muito carinho por sua obra.

“Foi uma trajetória muito gostosa, da qual me orgulho muito. O filme tem a idade do meu filho, que estava na barriga na época. É uma época cheia de boas lembranças. A gente continua amigo, estou começando um novo projeto com o Lázaro e o Wagner, e a Alice está sempre por perto, a gente sempre se fala. Foi um processo muito especial na minha vida, acho que na de todo mundo que participou”, conclui Sérgio Machado.

João Lucas Dantas

Jornalista com experiência na área cultural, com passagem pelo Caderno 2+ do jornal A Tarde. Atuou como assessor de imprensa na Viva Comunicação Interativa, produzindo conteúdo para Luiz Caldas e Ilê Aiyê, e também na Secretaria Municipal de Cultura e Turismo de Salvador. Foi repórter no portal Bahia Econômica e, atualmente, cobre Cultura e Cidade no portal bahia.ba. DRT: 7543/BA

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