Publicado em 11/05/2025 às 16h53.

Do tabuleiro ao e-commerce: maternidade que impulsiona o empreendedorismo baiano

A força das mães em rede transforma a realidade

Redação

Por Gabriela de Paula

Última reportagem da série especial que mostra os desafios e as conquistas das mães empreendedoras baianas. Durante a Semana das Mães, o Bahia.BA mostra que a empresa e os filhos podem crescer e se desenvolver juntos.



É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança. Mas com quantas mães se faz uma aldeia? 

A ideia de redes femininas promovendo suporte mútuo não é nova. Aliás, é talvez das estruturas mais antigas da humanidade.  Estudos etnográficos entre os Hadza, na Tanzânia, mostraram que avós ativas colhem tubérculos e partilham alimento diretamente com netos recém-desmamados. Esse aporte calórico permite que as filhas engravidem de novo mais cedo e aumenta a sobrevivência infantil.

Há também diversos trabalhos de arqueologia e bioantropologia sugerindo que as responsáveis pela transição de coleta para cultivo foram provavelmente mulheres. No Sudoeste dos Estados Unidos, análise de sítios arcaicos indica que decisões de experimentar plantar sementes nos leitos de rios ocorreram em contextos de trabalho feminino, ligado à coleta.

Estudos de desgaste ósseo em esqueletos neolíticos europeus mostram braços femininos tão fortes quanto os de remadores olímpicos modernos, apontando para intensa labuta agrícola — evidência de que elas dominaram a produção primária nas primeiras aldeias. Revisões históricas em África mostram que, quando se passa de caça-coleta a horticultura, são as coletoras — já especialistas em botânica prática — que primeiro domesticam plantas comestíveis e medicinais. 

Solidão da maternidade urbana 

Na selva de concreto, os formatos mudaram, mas a necessidade de apoio não desapareceu. Nascida no Rio Grande do Norte e vivendo na Bahia há duas décadas, a jornalista Brenda Medeiros viu sua rotina profissional tornar-se impossível com o nascimento de Arthur. “Quando eu me vi mãe, sem uma rede de apoio, sem uma aldeia para que uma criança pudesse ser bem nutrida, de amor, de atenção, de afeto, de educação, de tudo, resolvi abrir mão de ser aquela jornalista do dia a dia e me inspirar no que havia aprendido para que eu pudesse ser empreendedora sem deixar de ser comunicadora”, conta.

A mudança aconteceu pouco antes do segundo aniversário do pequeno, quando ela começou um negócio de festas sustentáveis. Assim, contribuía para a felicidade de outras famílias passando a semana inteira com o seu pequeno. A experiência em assessoria de imprensa associada à organização de eventos trouxe um estalo: feiras são bons canais de comunicação. Para completar, um grupo de dança feminista que Brenda atendia deu o toque que faltava. Os ideais de defesa das mulheres através da arte era algo poderoso.

Quarenta edições, 1.800 expositores e dezenas de milhares de visitantes depois, o BaZá RoZê consolidou-se como referência de arte, cultura e empreendedorismo. Isso tudo com viés de dar voz e potência para as mulheres. “Fui fisgada pela compreensão de que a possibilidade de serem independentes evita situações gravíssimas, como a violência de gênero. A feira começou feminista, mesmo sem isso ser colocado de maneira explícita, e hoje, mesmo tendo homens ao nosso lado, mantém o protagonismo das mulheres”, explica.

Em todas as edições da feira, há uma pauta de atividades para as crianças. E os filhos das expositoras sempre foram bem vindos. Brenda acredita num poder exponencial da rede materna. “Uma mãe precisa valorizar a outra mãe. Quando elas se valorizam e sabem que podem se cuidar e olhar, sabem que vão entender a outra a partir de sua própria compreensão. Se colocar como prioridade também de auto-acolhimento e refletir isso nas outras”.

Cuidar de quem cuida

Mãe é sinônimo de cuidado. Mas como fica o cuidado com as mães? Para além da consciência que virou clichê a partir das instruções nos aviões – de que em caso de emergência, coloque primeiro a sua máscara de oxigênio e só depois socorra alguém próximo de você – são necessários espaços reais que deem fôlego para a maratona materna.

 

A fisioterapeuta Carine Trindade começou a carreira da forma tradicional, bem colocada no atendimento a pacientes de UTI de um hospital respeitado. Mas a chegada de Gabriela trouxe novos horizontes. “A maternidade mostrou que eu não precisava me limitar a um emprego tradicional, com horário fixo, que restringiria, por exemplo, meu tempo de amamentação. Percebi que poderia ir além disso, porque a maternidade também revelou minha capacidade de enfrentar desafios maiores. Era uma questão de propósito: não seria feliz como fisioterapeuta tradicional”, rememora.



Esse era apenas o primeiro passo de uma grande jornada. Porque foi uma outra dor do pós-parto que trouxe a virada de chave para que a profissional liberal se tornasse empresária referência na sua área. Mesmo perdendo peso, a barriga não voltava ao que era antes. 

 

Carine tinha virado estatística: uma em cada três mulheres não conseguem que a musculatura abdominal retorne sozinha à posição de antes da gravidez. Estudando, Carine descobriu que tinha diástase abdominal. “Comecei a procurar tudo que havia publicado sobre o tema e descobri que não havia tratamentos específicos para um problema que atinge duramente a autoestima das mães. E foi assim que desenvolvi meu método”.

 

Hoje, Carine está à frente de uma clínica em endereço nobre de Salvador com uma equipe de oito mulheres e depois de atender 6.000 mães em reabilitação abdominal, tem dado cursos para profissionais de todo o país ensinando sua forma de atendimento. “Quando me tornei mãe, por muito tempo esqueci quem eu era como mulher. Meu propósito hoje é trazer para as mães leveza e ajudar a lembrar que elas também precisam cuidar delas mesmas. Quero que elas possam se olhar no espelho com amor, gostando do que veem, apesar das transformações da maternidade. É isso que me conecta com elas profundamente”, conta emocionada.

“Recentemente percebi claramente a admiração que minha filha tem por mim, o que é incrível. Como mãe, sempre tive muitas culpas: pelo excesso de trabalho, pelo pouco tempo com ela. Mas ouvir dela, agora com 11 anos, que me admira como mãe e profissional é muito transformador. Saber que você é um exemplo para a pessoa mais importante da sua vida é fantástico,” revela a empresária. “A maternidade fez eu mudar toda minha vida profissional. Precisei me reorganizar, mas foi também o olhar no espelho como mãe que me fez ter como propósito cuidar de quem cuida”.

Liberdade com responsabilidade é lema para mães empreendedoras

É difícil achar uma história de mãe que empreenda em que estes dois papéis não tenham uma relação íntima. Talvez seja a hora de começarmos a pensar o empreendedorismo materno como um fenômeno que tem suas características, desafios e oportunidades que o diferencia de outros negócios. Com grandes marcas levantando a bandeira do propósito, existe um movimento iniciado nas madrugadas de vigília com seus filhos que pede para ser olhado com cuidado por toda a sociedade.

A pesquisa qualitativa “Empreendedorismo Feminino”, realizada pelo Sebrae, revelou que a maternidade tem um papel central na trajetória empreendedora de muitas mulheres. Para elas, empreender não é apenas uma escolha profissional, mas uma estratégia para garantir autonomia financeira, manter o nível de renda e conquistar maior flexibilidade de tempo, equilibrando os desafios da maternidade com a gestão de seus negócios.

“Mulheres são frequentemente forçadas a empreender por sobrevivência após serem demitidas pós-licença maternidade, fenômeno ainda comum. Muitas mulheres recorrem ao empreendedorismo para conseguir equilibrar suas novas responsabilidades com a necessidade de renda. A situação é ainda mais desafiadora para mães solos”, explica a gestora do Sebrae Delas, Rosângela Gonçalves.

A mãe que escolhe este caminho profissional não pode perder de vista que trocar o patrão pelo cliente não quer dizer liberdade absoluta. “A rotina é enlouquecedora também, é desgastante, é cansativa, mas permite à mãe ter presença real. Mas você tem pedidos, entregas, o tempo não é só nosso, livre. A gente tem uma linha de responsabilidade”, avalia Brenda.

Para ela, essa diferença da rotina é a parte que mais brilha os olhos de quem deseja ser empreendedora. “Ela é muito diferente do que ter uma rotina de sair todos os dias, deixar o filho muitas vezes pequeno para trás”. Mesmo com Arthur na adolescência, ela percebe vantagens. “A gente está ali, vendo o que está fazendo. Se a gente for dormir cansada, a gente foi dormir cansada, mas estava ao lado dos filhos”, celebra.

Sem licença para ser mãe

A dor de ficar longe dos filhos para trabalhar tira o sono de muitas mães. Porém, há o lado de quem sonha com a maternidade, mas a pressão da vida profissional adia o projeto. E muitas vezes, gestar deixa de ser uma alternativa. Dados preliminares do estudo nacional “Nascer no Brasil 2” apontam que cerca de 1 em cada 10 brasileiras que têm o primeiro filho já ultrapassou os 35 anos, proporção que era de 7% em 2011 num período de 10 anos.

Nas bases do SINASC/DataSUS analisadas pela Fiocruz, a participação das mães com mais 35 anos em todos os nascimentos quase dobrou: 9,1 % em 2000 para 16,5 % em 2020. O IBGE projeta que a idade média ao primeiro filho – hoje 27,7 anos – subirá para 31,3 anos até 2070.

Essa mudança de perfil reflete também na busca de alternativas na tentativa de deixar a gravidez para mais tarde. Na clínica de reprodução assistida IVI, muitas mulheres buscam apoio para deixar que a gestação aconteça apenas no futuro. “A maioria das pacientes que eu costumo atender no consultório está mais interessada em adiar a maternidade, quer seja por motivos pessoais ou não”, explica a ginecologista especializada em reprodução assistida, Dra. Andreia Garcia.



A ciência dá um alento. “Hoje em dia, os processos de vitrificação de óvulos ou congelamento de óvulos tem evoluído muito, tornando-se mais simples, mais rápido, mais seguro e com custos mais acessíveis”, ressalta a médica.

A gravidez ainda é vista como um obstáculo à carreira. Dados do Global Gender Gap in Career Breaks, mostram que mulheres interrompem a carreira mais cedo e por mais tempo do que homens, e muitas vezes retornam a setores diferentes dos que atuavam antes. Essas transições impactam diretamente suas oportunidades de crescimento. Políticas de flexibilidade, programas de reintegração e desenvolvimento personalizado são fundamentais para valorizar a profissional nesse retorno.

E em algumas profissões, até a conquista da licença maternidade é algo recente. Somente em 2024, após uma mudança no protocolo da FIFA, as jogadoras de futebol passaram a ter garantia de ficar em casa com seus bebês após o parto. “É um absurdo a gente imaginar que uma atleta tem que escolher entre a carreira e a maternidade. Muito injusto. Imaginem quantas deixaram de realizar o sonho, que queriam ser mães, mas não puderam porque precisaram optar pela carreira”, alerta Suleima.

E os positivos começam a aparecer em campo. Ketlen, maior artilheira da história dos Santos com mais de 200 gols, chegou à Vila Belmiro com 15 anos. Mês passado, aos 30, anunciou a gravidez para as colegas Sereias da Vila. “Tem muitas menininhas e menininhos correndo aí pelo campo atrás das suas mamães e vai ser muito lindo poder presenciar isso. Eu já estou na expectativa, espero que agora em 2027, na Copa do Mundo Feminina, a gente já consiga ver um monte de criança lá, deixando o futebol ainda mais legal, mais bacana e mais inclusivo”, celebra Suleima.

Redes femininas geram impacto e retorno imediato

Iniciativas de conectar negócios conduzidos por mulheres, sobretudo por mães, podem dar retorno sobre investimento muito acima da média encontrada no mercado. Ainda assim, as iniciativas que vão além dos grupos espontâneos e projetos de mulheres sonhadoras são tímidas e isoladas.

A We-FI – Women Entrepreneurs Finance Initiative, instituição ligada ao Banco Mundial com foco em promover financiamento de iniciativas de mulheres empreendedoras, aponta que programas de networking que conectam mulheres empreendedoras às suas pares ajudam no seu desenvolvimento como líderes e na aumento dos lucros de suas empresas. 

As pesquisas apresentadas nos webinars da Knowledge Series trouxeram resultados de intervenções de networking em Gana e na Tunísia. Ambas produziram impacto. A rede em Gana era de baixo custo e com metodologia simples: um grupo no WhatsApp, um moderador e encontros periódicos em cafés. A intervenção gerou US$ 28 de lucro para cada dólar investido em empreendedoras.

Os dados sobre a eficiência destas conexões ainda são preliminares, mas há muito campo para novas comunidades femininas. O estudo “Maternidade e Negócios: a força das mães empreendedoras baianas” mostra que 98% das empreendedoras com filhos acreditam que uma rede poderia beneficiar o seu negócio. Mas, na outra mão, apenas 37% declaram participar destes grupos. 

Isso pode ajudar nos dois maiores desafios apontados no estudo sobre as mães empreendedoras da Bahia: insegurança e medo do fracasso (22%) e acesso a crédito (20%). “Quando a gente lida com a rede de mulheres, o que eu me peguei para poder ser uma força motriz foi trabalhar com o afeto, o cuidado, o carinho, a sororidade, o acolhimento. No BaZá RoZê o principal diferencial é a produção de um network afetivo”, explica Brenda. “Precisamos ser respeitadas. Mas a gente precisa trabalhar isso com cuidado, com amor, com atenção”.

Rosângela é otimista. “Respire e não pire. Você não está sozinha. Há movimentos e instituições prontas para apoiar mulheres empreendedoras, sobretudo mães. Busque rede, capacitação e referências. Empreender é desafiador, mas, com apoio e planejamento, é possível transformar sonho – ou necessidade – em negócio sustentável.”

Maternidade com valor de pós-graduação

Empatia, gestão de tempo, negociação, foco e criatividade estão entre as habilidades mais desejadas pelas grandes empresas. A contradição vem do fato que a escola que mais ensina essas disciplinas leva à falta de oportunidades formais.

O movimento “Não é só pausa”, puxado pelo LinkedIn, a maior rede social de carreiras do mundo, convida mulheres a incluírem no currículo da maior rede social de carreiras do mundo habilidades adquiridas após a maternidade. Isso porque um estudo realizado pela Filhos no Currículo com apoio da MM360 com 800 mães, 98% afirmaram que desenvolveram justamente as habilidades desta lista. E muitas outras. O convite é dizer que os filhos dão às mulheres um MãeBA, um trocadilho com MBA.

“A maternidade me ensinou a liderar com empatia, tomar decisões sob pressão, criar com propósito e persistir mesmo nos dias mais difíceis”, conta a CEO do Donas FC e mãe de Chiara, Suleima Sena. “Empreender, por sua vez, me deu a liberdade de transformar esses aprendizados em ação, de construir meu próprio caminho e, sobretudo, de não abrir mão dos meus sonhos – nem dos dela”. 

Se o mercado tradicional ainda não percebeu o valor da maternidade, as empreendedoras sabem bem o tamanho do impacto. “Eu acho que a maior lição que a Brenda mãe ensinou para a Brenda empresária foi a coragem. De sair de algo que é certo, do emprego, do trabalho, e ir para algo novo. Porque empreender é de uma natureza muito maior do que a gente imagina”, reflete a idealizadora do BaZá RoZê.

Para que amor não vire exaustão e sonho não vire insônia, as mães empreendedoras do século XXI estão reeditando a fórmula de sucesso das primeiras comunidades agrícolas, das mulheres libertas com seus tabuleiros na calçada, das costureiras, donas de pensão, ceramistas, confeiteiras, revendedoras de cosméticos e de tantas outras que buscaram formas de ganhar dinheiro e cuidar dos filhos ao longo da história. Estar ao lado de outras mães, ajudando e sendo ajudada.

… 

Esta série é dedicada a Francisco, meu co-worker há oito anos. Ele me ensina alternância de atenção, paciência, criatividade, resiliência e como escrever aos poucos tendo no colo uma pessoinha que vive dizendo “tô com fome” e “me dá um abraço”.


Gabriela de Paula é jornalista com duas décadas de atividade entre redação e comunicação estratégica. Hoje editora-chefe da Ayoo e criadora do “Bom Dia, Futuro” é especialista em tecnologia, inovação e empreendedorismo. Esteve à frente dos microfones na Band News FM, Band TV e Metrópole FM, além de palestrar em TEDx e grandes conferências internacionais. Nerd e bailarina de coração, a mãe de Francisco equilibra pauta e afeto todos os dias

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