Publicado em 17/01/2022 às 08h14.

Como a paixão por algoritmos fez Fabíola Greve se dedicar a blockchain

Entrevista com a cientista, que é doutora em Ciência da Computação pela Universidade Rennes I (FRA)

Redação
Foto: acervo pessoal
Foto: acervo pessoal

Concecida ao site Block News

 

Unir a academia, o governo e o setor produtivo é uma das fórmulas de maior sucesso para um país gerar inovação. E quando o assunto é blockchain, é a isso que se dedica Fabíola Greve, doutora em Ciência da Computação pela Universidade Rennes I, na França e professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e apaixonada por algoritmos desde o início de sua carreira. “Nessa linha, desloquei um pouco meu perfil de uma pesquisa mais teórica para a mais aplicada e em diálogo com diversas outras áreas”, disse na conversa que Marcela Gonçalves, CEO da Multiledgers, teve com a cientista para a série de entrevistas Corrente de Mulheres em blockchain, do Blocknews.

Convidei a Fabíola pela importância do trabalho que está realizando nas pesquisas científicas e aplicação da blockchain na vida real. Como diz a professora e pesquisadora, o que antes pareciam possibilidades de uso blockchain, agora se confirmam como casos reais.

E é por meio dessa interação da academia com outros setores que o Brasil poderá evoluir, por exemplo, na criação de plataformas nativas, que ainda são poucas, como a Hathor. À parte ao fato de que poderá também animar a entrada de mais mulheres no estudo da computação e também de blockchain.

Fabíola é a quinta entrevistada do Corrente de Mulheres em blockchain
Marcela Gonçalves: Qual sua formação e experiência profissional e como blockchain entrou na sua vida?

Fabíola Greve: Sou professora da UFBA desde 1992. Tenho mestrado pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) com uma pesquisa em algoritmos de compressão de dados (redução de dados num dispositivo), análise combinatória (relacionada a contagens complexas de objetos) e teoria dos grafos (relações entre objetos de um determinado conjunto). Sempre gostei de algoritmos e na UFBA tenho lecionado disciplinas dessa base. Então, comecei a me interessar por algoritmos distribuídos. Naturalmente, alimentei a ideia de fazer doutorado nessa área e fui aceita na Universidade Rennes I, na França.

Fiquei bem feliz porque além da universidade ser muito reconhecida em computação, meu orientador foi o professor Michel Raynal, um dos pesquisadores mais respeitados do mundo em algoritmos distribuídos. Minha tese, “Respostas eficazes à necessidade de acordo em um grupo”, é sobre soluções de consenso. Trata de um conjunto de algoritmos, modelos e arcabouços de software para acordo em grupos de processos computacionais e ambientes assíncronos, quando não há garantia de tempo para realização das ações, como é o caso da internet. Quando retornei ao Brasil, continuei a pesquisar algoritmos e consensos distribuídos, mantendo contato com grupos no país e no exterior.

Por volta de 2012, após meu pós-doc na Universidade Sorbonne em Paris, tive contato com blockchain. Mas, confesso, não tinha noção do seu potencial. No retorno à UFBA, direcionei as pesquisas do meu grupo para blockchain. Porém, tive que dividir atenção com a chefia do Departamento de Ciência da Computação, que assumi e pelo qual trabalhamos para transformar em Instituto, o que aconteceu em 2021, quando fui nomeada sua Diretora. Foi somente a partir de 2016, após a coordenação geral do Simpósio Brasileiro de Redes de Computadores e Sistemas Distribuídos (SBRC), que pude priorizar as pesquisas em blockchain.
MG: Por que essa solução chamou sua atenção?

FG: A blockchain é um objeto de pesquisa muito importante dentro do que eu já vinha estudando. Isso porque utiliza o consenso, que é um algoritmo clássico da computação distribuída tolerante a falhas, e que venho trabalhando há anos. Além disso, é aplicado de forma engenhosa e inovadora na proposta original do white paper de Satoshi Nakamoto (de 2008 sobre o bitcoin). Todo o arcabouço apresentado é genial e revolucionário, já que utiliza elementos teóricos de diversas áreas da ciência e os compõem na criação de uma nova máquina de confiança.

Sob o ponto de vista tecnológico, a blockchain é disruptiva para a sociedade. Suas propriedades mudam os eixos das relações de confiança, provocando a desintermediação em diversos níveis, inclusive, dentro da ciência. Assim, percebi a necessidade de fomentar o encontro da academia com governo e indústria. Nessa linha, desloquei um pouco meu perfil de uma pesquisa mais teórica para a mais aplicada e em diálogo com diversas outras áreas. Acredito que o que fez com que a blockchain chegasse ao grande público é o seu interesse econômico, que desponta com o uso de criptomoedas para a manutenção da máquina e de todo o processo. A proposta do bitcoin é igualmente engenhosa, uma vez que liga bem os elementos computacionais da criptografia e da teoria dos jogos, sendo auto sustentável economicamente. Isso torna todo o projeto poderoso.

MG: O que tem visto de evolução na área?

FG: Os governos e a indústria entenderam o valor da tecnologia, havendo um investimento fenomenal. Livros pioneiros como “A Revolução Blockchain” de Don e Alex Tapscott, narram diversas possibilidades que hoje são reais. A evolução está sendo exponencial em diversos setores, como finanças descentralizadas (DeFi), jogos, governança, cadeias de suprimentos, tokens não fungíveis (NFTs) e saúde. Há especialistas que afirmam que em 10 anos teremos uma maturidade grande da tecnologia de base, podendo utilizá-la de forma mais segura, escalável e sustentável. Por isso, as atualizações nas plataformas são constantes.

Existem avanços nas inovações em consenso e especialistas das mais diferentes áreas estão propondo outros algoritmos. Ocorre que o grande gasto energético é uma questão a se ponderar. Mas, em comparação aos datacenters tradicionais, até pode ser considerado vantajoso, considerando o novo modelo econômico envolvido, que permite ganhos substanciais em agilidade, transparência, gestão de riscos, combate a fraudes e desvios. Cientificamente, no entanto, os consensos provas de trabalho precisam evoluir bastante nesse sentido. É importante observar que um volume considerável das pesquisas não tem rigor científico e por isso os resultados não funcionam na prática.

MG: Qual tem sido os problemas que você tenta resolver com blockchain?

FG: Nessa linha do consenso, a adoção de um modelo híbrido envolvendo os protocolos de prova de trabalho (da rede bitcoin), que são probabilísticos, com os bizantinos, que são na maioria determinísticos e alcançam decisões rápidas, será positiva e torna-se uma tendência. Assim, estão sendo propostos protocolos híbridos que usam prova de trabalho para participação aberta de membros na rede. Mas, a validação final do consenso é permitida a um grupo de nós. Isso diminui o tempo para decisões, aumenta a vazão de transações, melhora os índices energéticos das operações e incrementa a segurança do processo.

Um outro tópico sobre o qual estou encantada é o de identidade digital descentralizada (IDD) e auto-soberana. Isso permite que o controle dos dados seja do próprio indivíduo. Nessa linha, desenvolvemos a plataforma ChainID, que permite aos desenvolvedores que não entendem de IDD construir mais facilmente serviços com essa solução. Isso inclui, por exemplo, passaportes digitais, certificados de vacinação e diplomas digitais. Enfim, uma gama enorme de aplicações descentralizadas.

Uma aplicação interessante com Internet das Coisas (IoT) que também desenvolvemos é o IoTCocoa, O sistema usa blockchain para rastreabilidade e melhoria do processo de produção do cacau gourmet. No seu desenvolvimento, percebemos a necessidade de gerar contratos inteligentes em tempo de execução, sem necessidade de intervenção humana, do programador, então construímos um arcabouço para essa geração, o Gifflar, e alcançamos um ótimo resultado tecnológico e científico.

MG: Podemos dizer que blockchain e educação formam “um par perfeito”?

FG: Precisamos popularizar a blockchain, mostrar a importância da tecnologia, preparar gerações, inclusive as mulheres, para a descentralização e a vinda dos sistemas descentralizados e distribuídos. Isso é uma quebra de paradigmas nos mais variados escopos. É necessário fornecer formação mais específica nas áreas de segurança computacional, consenso distribuído, programação de contratos inteligentes e plataformas, que são diversas e cada vez mais ricas em artefatos.

Existe um mercado mundial altamente demandante em tecnologias e em que há bastante força da ciência de dados, da inteligência artificial, da robótica, que já são consideradas áreas estratégicas para os países. Porém, em blockchain, ainda falta tal esforço de convencimento e consolidação. Inclusive, deveria ser uma preocupação do estado, pois é uma tecnologia estratégica para a soberania de um país.

MG: Além dos benefícios, quais os desafios nessa área?

FG: A blockchain exige acordos prévios entre as partes que vão usufruir do consenso automático oferecido pela plataforma, levando entidades que não dialogavam a ter contato em nível de governança para estabelecer regras e padrões em vários níveis. Esse é, sem dúvida, um grande desafio! Há ainda toda a regulação necessária, que envolve o direito digital e a economia tokenizada, e que precisa ser promovida com a participação do governo para haver uma maior segurança no uso da tecnologia.

Há os desafios científicos em vários níveis, como o da segurança computacional. Ao observar artigos publicados, há um aumento de pesquisadores ligados às grandes indústrias de TI que vêm trazendo bons resultados. Em especial no exterior, a indústria vem também dialogando fortemente com a academia. As teses de doutorado têm se transformado em negócios e vemos a academia com foco em criação de produtos e artefatos de software, ou seja, a universidade está trazendo à tona negócios inovadores para o ecossistema.

A grande indústria de blockchain está fazendo parcerias e contratando diretamente na academia pesquisadores, programadores e pensadores de soluções. Em outros países, a universidade e o setor privado estão caminhando lado a lado. Aqui no Brasil, a indústria vem se desenvolvendo a reboque das bigtechs, porém faltam soluções nativas e isso só se consegue com essa aproximação com a academia. Mas, há plataformas de blockchain sendo desenvolvidas, como o projeto Hathor, porém são poucas. Em 2018, propus com colegas o WBlockchain, primeiro evento científico da área no Brasil. Desde então, a comunidade vem se fortalecendo, mostrando nossa pujança na área.

MG: Você concorda com o que muitos dizem, que blockchain tem tudo para ser tão transformadora que poderá ser a nova internet?

FG: Concordo! A Internet oferece um protocolo de comunicação que consegue fazer envio de dados de forma instantânea. Além disso, possibilitou a criação de um ecossistema fenomenal de negócios virtuais. Isso com o simples envio de dados. Agora, agregue a esse envio a transferência de dados com valor agregado. Temos um grande salto! E é o que a blockchain faz.

Na blockchain, os dados deixam de ser apenas dados e passam a ser ativos com valor agregado, sejam eles, por exemplo, financeiros, comerciais, artísticos, bens móveis e imóveis. Tais ativos passam a ser transacionados com o rigor dos algoritmos criptográficos e através de plataformas robustas que estão sendo aperfeiçoadas com muita rapidez. Toda essa estrutura viabiliza o transacionamento valorado, ou seja, a transferência de valor, não apenas dados, e será o futuro da internet!

MG: Ao mesmo tempo, o que você acha que são os desafios para uma adoção em massa maior?

FG: Precisamos popularizar a blockchain e engajar os principais atores, ou seja, academia, governo e indústria, na construção desse ecossistema, formando alianças para estabelecer consensos, padronizações, regulação e governança. Com foco nessa popularização, comecei a fazer palestras sobre blockchain em vários ambientes para além da academia, por exemplo, no “Pint of Science”, que é uma iniciativa bem legal onde se busca trazer a ciência para a mesa de bar. Também fiz interações e ações conjuntas com diversos órgãos públicos e privados.

Numa dessas interações, a Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP), vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) e responsável pela internet acadêmica no Brasil, me contatou para uma formação em blockchain. No bojo desse processo, reconhecendo o potencial disruptivo da tecnologia, a diretoria me convidou para liderar um comitê técnico na área, o CT-Blockchain. Fiquei muito feliz por poder fomentar o ecossistema de blockchain no Brasil, reunindo num espaço de diálogo a academia, a indústria e o governo. Criamos um canal aberto que interage com os vários mundos e estamos avançando em resultados.

MG: Como podemos aumentar a diversidade em TI e em especial nessa área de blockchain?

FG: Para engrandecer qualquer ambiente e promover inovação deve-se, necessariamente, ser inclusivo e diverso. Nesse sentido, a participação das mulheres é fundamental! Quanto mais diverso o ambiente, mais rico será e mais usufruto teremos para a sociedade. Blockchain é uma das tecnologias mais centradas no humano, é altamente inclusiva, diversa, colaborativa e democrática. E está perfeitamente alinhada aos objetivos de desenvolvimento sustentável, social e com governança. Assim, tende a atrair naturalmente as mulheres, além das mais diversas pessoas sub-representadas. E claro, em contrapartida, irá se beneficiar muito com essa inclusão.

A questão de gênero na computação é muito debatida. Quando fiz a graduação, 50% dos alunos eram mulheres e 50% homens, mas essa proporção foi diminuindo. É interessante ver que muitas mulheres ascendem e acabam sendo líderes no alto escalão das instituições de TICs. Temos muitos exemplos, inclusive de negócios em blockchain. Porém, o ambiente é hostil e as afasta. Mas, com sensibilidade e resiliência, as mulheres conseguem contornar diversas situações. Nós, mulheres, não podemos perder o exercício do feminino que, num bom equilíbrio com nosso masculino, consegue se impor sem entrar no jogo do embate.

 

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