Moradores da Ilha de Itaparica se preparam para chegada da ponte para Salvador
Projeto de construção de ligação terrestre entre a Ilha e a capital baiana é tema recorrente nas ruas de Vera Cruz
“Tem mais de trinta anos que eu ouço essa história de que essa ponte vai sair. Só acredito vendo. Só boto fé quando estiver pronta.” A promessa é antiga e muita gente, como Dona Lita do Cafezinho, ainda encara com ceticismo a construção da ponte entre Salvador e a Ilha de Itaparica. Mas, diferentemente de projetos anteriores, que não saíram do papel, dessa vez é para valer: o empreendimento integra uma proposta mais ampla, de construção do Sistema Viário Oeste, que criará uma rota entre a capital baiana e a BR-116, passando pela ilha que abriga os municípios de Vera Cruz e Itaparica.
Dona Lita (“Dona Lita do Cafezinho, mesmo. Todo mundo me chama assim. Esse é meu nome”) conversou com a reportagem do bahia.ba durante a travessia de São Joaquim, no continente, para Bom Despacho, na ilha, enquanto vendia café e chocolate quente aos passageiros do ferry boat, onde trabalha há 33 anos.
Informada pela reportagem de que a ponte, enfim, deve sair do papel e que a previsão é de que a embarcação que cruza a Baía de Todos-os-Santos levando carros e passageiros deve ser desativada, a ambulante se preocupa: “Aí, o bicho vai pegar para o meu lado”.
As declarações de ceticismo e apreensão de Dona Lita – que, com simpatia, distribui sorrisos junto ao cafezinho que lhe dá nome – foram algumas das várias opiniões sobre a futura ponte colhidas pela reportagem do bahia.ba durante um dia ensolarado de primavera.
A sensação dos ilhéus – de nascimento ou adoção -, em geral, é de que a construção de uma via entre a ilha é o continente trará o chamado “progresso”, com suas duas faces opostas mais visíveis: desenvolvimento econômico e violência. Outra preocupação demonstrada pelos entrevistados é a falta de infraestrutura da ilha para absorver uma demanda maior de turistas e novos moradores que chegarão com a construção da ponte.
“De moto, eu faria essa viagem rapidinho”
“Vai melhorar a economia, ter mais empregos. As empresas vão querer vir montar seus negócios aqui. Vai ter shopping, loja de material de construção, escola. E isso vai gerar emprego e renda para a cidade. Mas temos que correr os riscos. A criminalidade na ilha, com certeza, vai crescer”, disse o ilhéu Geovani Santos, nascido e criado no município de Itaparica, em conversa com a reportagem no ferry boat, em sua volta para casa.
Se o desativamento do ferry boat é motivo de preocupação para Dona Lita, estas embarcações não deixarão saudade para Santos. “O serviço é de péssima qualidade e, como não tem concorrência, eles acham que a gente tem que aceitar qualquer coisa”, disse ele, apontando para a sujeira no chão. “Você já viu um banheiro que a água da torneira é salgada? Onde já se viu isso? É complicado, muito complicado.”
A “troca” do ferry pela ponte, para Santos, vai impulsionar o turismo da ilha. “Muita gente desiste [de ir para Itaparica] por causa do ferry. E com a ponte… Se tivesse ponte, eu já estaria em casa. De moto, eu faria essa viagem rapidinho”, completa.
O projeto divulgado pelo governo do Estado, que está em processo de licitação, prevê a construção de uma ponte de 12,4 quilômetros, dentro de uma totalidade de 44 quilômetros do Sistema Viário Oeste. Segundo a apresentação da proposta, o SVO reduzirá o tempo de conexão da capital com mais de 250 municípios, beneficiando 4 milhões de pessoas na Região Metropolitana de Salvador e outras 5,8 milhões no restante do estado.
A advogada Jessica Amaral será uma das beneficiadas. A caminho de Morro de São Paulo, viagem que faz costumeiramente e que agora será mais breve, também terá as jornadas ao interior – onde vai sempre visitar a família – encurtadas. “Vai facilitar bastante a minha vida”, diz.
A intenção de realizar uma conexão entre Salvador, Ilha de Itaparica e Recôncavo Baiano é antiga, sendo a primeira proposta nesse sentido formulada em 1967 pelo arquiteto Sérgio Bernardes, no Plano Diretor do Centro Industrial de Aratu – seu projeto era de construir um anel viário ligando as três regiões.
Em Mar Grande, um “discurso ensaiado”
Atualmente, além da opção do embarque à ilha pelo ferry boat, há a alternativa da travessia ser feita por lanchas, saindo do Terminal Turístico Náutico da Bahia, no Comércio, com destino à Mar Grande, em Vera Cruz. Foi para esta região turística da ilha que a reportagem rumou, por terra, ao desembarcar do ferry boat em Bom Despacho.
Conversando com moradores locais, o discurso sobre a ponte parecia ensaiado: o turismo e a economia vão melhorar, mas a violência vai aumentar. O taxista Cleidson Neves afirma que a população mais jovem vê com bons olhos o projeto e espera a chegada de faculdades e grandes empresas, mas teme o incremento no número de assaltos na região. “Aqui é um lugar pacato ainda e essa calmaria vai acabar”, disse.
A feirante Luciene Santos endossa a opinião de Neves: “Vai aumentar o turismo, o movimento aqui vai melhorar e acho que até minhas venda vão aumentar. Mas, em relação à violência, vai piorar. O progresso traz coisas ruins também, né?” Para ela, o ideal é que as coisas permanecessem como estão, sem a ponte. “A pouca tranquilidade que existe aqui tinha que manter”, afirmou.
Com a inauguração da ponte, prevista para janeiro de 2025, uma linha de ônibus metropolitano, integrado à rede metroviária de Salvador, chegará à ilha. Haverá também a cobrança de pedágio na chegada à Itaparica, no valor de R$ 45 – para aqueles que fazem o chamado “bate e volta” haverá uma tarifa promocional custando R$ 50. O preço é próximo à tarifa da travessia de automóveis pequenos pelo ferry boat, de R$ 45,70 (aos finais de semana, o custo é mais alto, de R$ 64,70).
“Eu prefiro continuar circulando na ilha mesmo. A não ser que o cliente cubra um bom valor acima do pedágio. E mesmo assim, só se for uma emergência”, afirmou ao bahia.ba o mototaxista Leandro Souza. São estes profissionais, ao lado de taxistas e motoristas de lotação quem fazem, atualmente, o trabalho de mobilidade urbana na ilha – a reportagem tentou acionar motoristas por aplicativos para se deslocar na região, sem sucesso.
“Vai aumentar a nossa demanda, com certeza, mas a gente que se cuide, porque a violência vai aumentar”, disse Souza. “Hoje você bota um amigo numa garupa da sua moto e ele é seu inimigo e você nem sabe.”
“Chega o verão e falta tudo aqui. Como é que nós vamos fazer?”
Além da questão da violência, outra preocupação de ilhéus ouvidos pelo bahia.ba é como o incremento do turismo e a chegada de novos moradores irá impactar Vera Cruz e Itaparica. Segundo eles, a infraestrutura dos municípios da ilha deveria ser melhorada antes da construção da ponte, mas tal discussão não tem sido realizada.
A apresentação do projeto, de fato, não cita a construção de novas escolas, hospitais e hotéis, falando apenas, de forma genérica, no número de empregos que o empreendimento poderá gerar.
Estima-se que cerca de 7 mil postos de trabalho serão criados durante a construção da obra, bem como outros 100 mil (diretos e indiretos) ao longo dos 30 anos de concessão à empresa que irá gerir o empreendimento – companhias da China, da França, da Espanha e da Itália já demonstraram interesse na gestão da ponte.
“Como a ilha vai se comportar para receber essa ponte? Nós não temos água nem luz. Chega o verão e falta tudo aqui. Como é que nós vamos fazer? O que vai ser da ilha com isso aí? O progresso é necessário, mas tem que dar alguma coisa à ilha no projeto antes de fazer a ponte”, desabafou à reportagem o contador Raimundo Luiz, presidente do clube recreativo Unidos de Cacha Pregos.
Luiz cita a dificuldade de moradores que vivem em regiões mais isoladas em ter acesso a hospitais para exemplificar a precariedade dos serviços públicos essenciais da ilha. “Nós não temos hospitais de base aqui. Quem fica doente, tem que ir para Itaparica ou Mar Grande, que é mais distante. Aí o cara já chega morto”, disse.
Ele reafirma a necessidade de construção da ponte, “pelo desenvolvimento da ilha”, mas diz que é fundamental que a região esteja preparada para receber o empreendimento. “Não tem nenhum projeto de melhoria para a ilha. Só pensam em botar a ponte, fazer a integração com o sul”, afirma.
“O turista que vem para cá procura uma ilha e não uma autopista”
Proprietário de uma pousada em Mar Grande, o francês Louis Derasse vive há 19 anos na ilha e não acredita que será a construção da ponte que trará uma melhora ao turismo local.
“O que empata o turismo na ilha não é o transporte. É a própria estrutura da ilha. No dia que tivermos dez pousadas bacanas, dez hotéis bacanas, opção de restaurante, vida noturna, as pessoas que passam por aqui e seguem caminho para Itacaré e Morro de São Paulo vão ficar aqui”, disse ao bahia.ba. “Se aqui tivesse uma infraestrutura melhor, as pessoas não iam rodar 150 quilômetros para ir para Morro de São Paulo”, completou.
Derasse sabe que a construção da ponte é inevitável e se diz preocupado com as consequências que ela trará à Mar Grande. “Para mim, a ponte vai só abrir a porta para caminhão. Vai mais precarizar e favelizar do que elitizar. O turista que vem para cá procura uma ilha e não uma autopista. Se conseguíssemos captar 50% do fluxo das pessoas que vem de ferry boat, não estaríamos falando de ponte”, argumentou.
Uma ilha conectada com a terceira maior cidade do Brasil
Conversando com a população da ilha pelas ruas de Mar Grande, o bahia.ba considerou ser importante obter uma declaração de algum representante do poder público local. E como a sede da Prefeitura de Vera Cruz se situava nas proximidades, a reportagem fez contato com funcionários da municipalidade e acabou agendando uma conversa com Luiz Henrique Amaral, secretário de Turismo, Cultura e Esportes.
Amaral fazia naquela tarde um “bate e volta” de Salvador para Mar Grande pela lancha que atravessa a Baía de Todos-os-Santos de meia em meia hora e conversou com a reportagem na Praça da Matriz, próximo ao Terminal Marítimo de Vera Cruz.
Amaral afirmou que a construção da ponte, “do ponto de vista técnico, turístico, é algo extraordinário” já que coloca o município em conexão com a terceira maior cidade do Brasil, com quase 3 milhões de habitantes.
“Se você for fazer uma avaliação nua e crua do processo, pela análise técnica da questão, estamos com uma solução extraordinária, que nos conecta com um mercado enorme. Resolve um enorme problema”, disse.
A melhoria da infraestrutura urbana de Vera Cruz, para Amaral, é necessária “com ou sem a ponte”, já que a alta temporada gera um fluxo de turistas que, muitas vezes, sextuplica a população da cidade, estimada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) em cerca de 43 mil habitantes.
“É preciso uma infraestrutura muito melhor do que nós temos hoje. Então, esse é um fato que a gente precisa colocar em pauta independente de termos ponte ou não termos ponte. O que é preocupante, pois o impacto que essa ponte vai trazer é extraordinário e demanda uma estrutura pública muito forte”, afirmou.
“A gente já tem um exemplo natural aqui nos momentos de alta estação, de verão, quando a população quintuplica, às vezes sextuplica, e isso impacta diretamente nos serviços públicos e nos serviços essenciais de saúde e de limpeza, principalmente”.
O secretário ressalta que a conexão com outras regiões da Bahia que o Sistema Viário Oeste, no qual a ponte está inserida, irá trazer “é um vetor de crescimento extraordinário do ponto de vista de logística”. A questão que ele coloca é: como gerenciar esse impacto localmente e fazer com que esse progresso beneficie o local e todas as estruturas?
“Essa conexão me traz o que? Benefícios? Malefícios? Todos eles fazem parte do pacote, então é difícil você fazer uma distinção do que é melhor e do que é pior. Mas eu prefiro gerenciar o progresso do que o fracasso”.
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