Publicado em 29/03/2021 às 10h28.

Sobreviver diante da colonização é a grande conquista de Salvador, diz historiador sobre 472 anos

Para Ricardo Carvalho, o sentimento de pertencimento e de orgulho da identidade é algo crescente na população soteropolitana com o passar dos anos

Bianca Andrade
Foto: SECOM
Foto: SECOM

 

Terra de todos os santos, encantos e axés. Sagrada e profana. De gente que sobe a ladeira do Curuzu, e se ajoelha na escadaria do Senhor do Bonfim toda sexta-feira. É terra de quem irradia magia, mas também de quem não foge da luta quando precisa fazer protesto, manifestação… E lá vou eu.

De quem se bate e se quebra, mas calma que é tudo por amor (e é não de forma literal). De quem é do Pelô, mas também é de Itapuã, da Lapinha, do Nordeste de Amaralina, de São Cristóvão e São Caetano, do Imbuí, da Pituba, da Liberdade, Ondina, IAPI, Federação, Uruguai, Gamboa, Taboão e porquê não das duas “cidades” que ficam dentro da própria cidade, Cajazeiras e Brotas.

Terra de quem não vê a hora de tudo isso passar para ir a pé ou de caminhão, da Sé ao Campo Grande, na Avenida Sete ou na Barra vendo o farol brilhar, com calor no coração dançando ao negro toque do agogô curtindo o melhor da oitava maravilha do mundo.

Nesta segunda-feira (29), Salvador completa 472 anos de história, mas afinal, o que há para celebrar em mais um outono da primeira capital do Brasil?

 

Foto: Sidney Rocharte/ SecultBA
Foto: Sidney Rocharte/ SecultBA

 

Nem os mais pessimistas imaginavam celebrar a data em regime de isolamento social. O ano atípico devido à pandemia do coronavírus, trouxe melancolia para os corações dos soteropolitanos. Em meio a notícias ruins, o bahia.ba foi em busca de um motivo para celebrar os 472 anos da cidade: a liberdade.

Em entrevista ao site, o historiador Ricardo Carvalho afirma que apesar dos pesares, conquistar a independência, mesmo em meio a grandes dificuldades, é um dos maiores presentes que a capital baiana poderia ter em seus anos de existência.

“Eu sempre costumo dizer aos meus alunos de que nós tínhamos tudo para dar errado. Nascemos como a capital de um império colonial vivemos 300 anos submetidos ao modelo colonial e, ao mesmo tempo, nesses 300 anos, mais até, submetidos ao regime de escravidão. Tinha tudo para dar errado, Salvador era para ser uma cidade em conflito permanente e em grave conflito armado de grupos sociais e grupos étnicos. E ainda assim, com todo preconceito, com todo racismo estrutural, toda dificuldade e toda pobreza, nós nos transformamos em uma cidade que é uma verdadeira usina de produção cultural e com razoável convivência, não diria 100% harmonizada. Acredito que sobreviver diante da colonização, da escravidão, de um patriarcalismo forte, um elitismo forte, é a grande conquista de Salvador”.

 

Foto: Fernando Vivas/GOVBA
Foto: Fernando Vivas/GOVBA

 

E a liberdade da qual o historiador se refere só foi conquistada devido à luta (Revolta dos Malês, Conjuração Baiana, Revolta de Itapoã) e resistência daqueles que por aqui passaram e deixaram sua marca na cidade, e também foram marcados pela potência que é Salvador. Segundo o Carvalho, é necessário reforçar e exaltar a importância e a singularidade de cada soteropolitano quando se celebra a cidade.

“Desde os grandes nomes como Jorge Amado, Dorival Caymmi, Gilberto Gil, Gregório de Matos, Joana Angélica, que mesmo alguns deles não tendo nascido em Salvador, levaram a cidade como principal polo de desenvolvimento. A cada homem negro, cada mulher negra que mesmo submetidos a escravidão resistiram e preservaram sua cultura nativa de matriz africana. Cada mãe de santo, cada padre, cada soteropolitano que acredita que é preciso preservar seus valores e sua dignidade. Eu penso que o grande personagem que não pode ser esquecido é o soteropolitano raiz, como diz os jovens atualmente. Aquele que realmente adotou a cidade como sua pátria”, afirma.

Autor do livro ‘Salvador, minha cidade’, em parceria com o também professor e historiador Aurélio Shommer, que será lançado pela Editora Martins & Martins, Ricardo Carvalho tem como proposta com o novo projeto, dar aos mais jovens o sentimento de pertencimento à capital baiana, já aflorado no ‘soteropolitano raiz’, ao aproximar o público infanto-juvenil da cidade e de suas histórias e tradições.

“É uma forma de erguer um pouco mais a autoestima das crianças e dos jovens que há mais de um ano não consegue conviver com a cidade com a mesma riqueza que as outras gerações viveram. A pandemia afastou nossos meninos dessa experiência, então nós vamos lembrar a eles quem eles são através desse livro e em breve eles vão viver isso na prática”.

Para Aurélio Shommer, “Salvador reflete, como poucas cidades, sua identidade, que se expressa fortemente com o ‘ser soteropolitano’. Mas é preciso saber como, onde e quando essa identidade nasceu, e o que ela representa”.

 

Ricardo Carvalho e Aurélio Shommer, autores do livro 'Salvador, minha cidade' (Foto: Arquivo Pessoal/ Editora Martins & Martins)
Ricardo Carvalho e Aurélio Shommer, autores do livro ‘Salvador, minha cidade’ (Foto: Editora Martins & Martins)

 

O projeto, que seria lançado nesta segunda (29), mas teve a estreia adiada devido à pandemia do coronavírus, tem como proposta apresentar a primeira capital do Brasil para seus moradores e visitantes com um carinho especial, como uma forma de despertar a autoestima de um povo que superou inúmeras contrariedades para desenvolver características que são muito particulares, uma mescla ímpar da cultura de povos que desembarcaram ou foram encontrados aqui.

“Não tem um povo que se olhe com tanto carinho como a gente se olha. Que se ache tão engraçado como a gente se acha, pitorescos, interessantes, nós temos isso, um amor próprio. Frases como “baiano não nasce, baiano estreia”, coisas que ouvimos cotidianamente. Esse é o principal traço do soteropolitano, o amor por quem ele é”, diz o historiador.

Para Carvalho, o sentimento de pertencimento e de orgulho da identidade é algo crescente na população soteropolitana. Segundo o historiador, a perpetuação de seus costumes e a forma como Salvador conseguiu se reerguer diante das dificuldades e espalhar sua cultura ao redor do país e do mundo, diz muito sobre a forma como a população enxerga a cidade e se enxerga.

“Existe um princípio chamado a lei da complexidade e consciência de que as civilizações cada vez mais tomam consciência do que são, do que significam, do que tem de valor, e isso aumenta sua percepção do ponto de vista de complexidade e de pluralidade, nós somos uma grande metrópole hoje, que não deve nada as grandes metrópoles do mundo, mas estamos cada dia mais atentos a quem somos, de onde viemos, para onde querermos ir, e acho que tudo isso é uma marca”.

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