Antonio Jorge Ferreira Melo é coronel da reserva da PMBA, professor e coordenador do Curso de Direito do Centro Universitário Estácio da Bahia e docente da Academia de Polícia Militar.
Rei morto, rainha posta
Projeto de lei que dispõe sobre a mudança de nome do circuito Barra-Ondina gera polêmica e expõe falta de compromisso de vereadores com a memória da cidade
O Carnaval de Salvador que, até o início da década de 50, tinha como modelo original a exclusão, dividia-se em dois: um, oficial, aristocrático e elitizado, e outro, “oficioso”, popular, sempre se constituindo no foco de preocupação da polícia, principalmente a Guarda Civil.
Enquanto o carnaval oficial consistia, basicamente, em suntuosos desfiles dos préstitos, do corso e das pranchas pelas avenidas centrais da cidade, e nos bailes privados realizados em clubes fechados, o outro, com seus afoxés, batucadas, cordões e blocos, era praticamente impedido de ocupar as avenidas nobres do centro da cidade, transitando tão somente pelos bairros populares e ruas próximas ao Centro.
Esse cenário excludente só começaria a se modificar, abrindo espaços para a popularização e a socialização, quando Adolfo Antônio Nascimento (Dodô) e Osmar Álvares de Macedo, inspirados na famosa entidade carnavalesca pernambucana “Vassourinhas” resolvem restaurar um velho Ford 1929 e, no carnaval de 1950, sair às ruas, arrastando um pequeno grupo de foliões, tocando seus “paus elétricos” sobre o carro e com o som amplificado por alto-falantes.
O sucesso foi tão grande que, no ano seguinte, a dupla elétrica, já transformada em um trio com a inclusão de mais um membro, Temístocles Aragão, foi às ruas em um caminhão decorado, colocado à disposição dos músicos pela fábrica de refrigerantes Fratelli Vita, inaugurando o nome com que seria imortalizada a marca registrada do carnaval de Salvador: o trio elétrico.
A decisão quanto à alteração dos nomes dos
circuitos é errada pelos motivos certos
Nesse breve histórico, fica claro que não é sem sentido que as denominações dos circuitos da folia em Salvador são homenagens justas a Batatinha, um dos grandes nomes do samba baiano, e a Dodô e Osmar que, além de transformarem radicalmente o espaço da excludente festa com a criação do Trio Elétrico, geraram novas formas de participação, pois, da postura de espectadores ou desfilantes as pessoas passaram a “pular carnaval” e a acompanhar o deslocamento do “palco móvel”, praticamente eliminando a dualidade palco-plateia, até então hegemônica na festa.
Embora a homenagem e o reconhecimento dos soteropolitanos aos criadores do trio elétrico parecessem mansa e pacífica, na última quarta-feira, a Câmara de Vereadores de Salvador, sempre pródiga em meias verdades, falsas promessas e falácias, mais uma vez nos surpreende ao aprovar um projeto de lei, de autoria da líder do PT e presidente da Comissão de Reparação da Casa, Vânia Galvão, que, pura e simplesmente, substitui o nome de Adolfo Antônio Nascimento – Dodô – no circuito carnavalesco Barra-Ondina pelo de Daniela Mercury.
A consciência da injustiça histórica que se materializará com a mudança é tão grande que a Câmara de Vereadores, a titulo de consolação, tenta se redimir, reunindo simbolicamente, outra vez, a dupla elétrica no lugar que a imortalizou, pois, o atual circuito Campo grande, passará a se chamar: Circuito Dodô & Osmar.
Polêmicas à parte, para mim, a decisão dos nobres edis quanto à alteração dos nomes dos circuitos é errada pelos motivos certos. Quer dizer, todos estão errados, mas no fundo, no fundo, todos estão certos. Parece confuso, mas não é, pois o que está em questão é a busca de votos em ano eleitoral, com base no costumeiro desprezo de nossa época por atos de outra.
Que o prefeito encontre outra forma
de homenagear a ‘Rainha do Axé’
Embora haja quem argumente que, na realidade, a autora e seus nobres colegas estão preocupados apenas com os votos do segmento LGBTT, não posso deixar de reconhecer os méritos artísticos da homenageada e o seu relevante papel como alavancadora de um circuito carnavalesco que, inegavelmente, cresceu com a sua iniciativa de desfilar, comandando o Crocodilo, e montar um camarote que, na sequência, atraiu outros empreendedores para a Barra. Assim, os motivos alegados para a mudança da denominação, estariam corretos.
Nessa mesma lógica, embora os motivos alegados estejam certos, a alteração pretendida está errada, pela simples percepção de que, para se promover o empoderamento feminino, homenageando uma das nossas maiores artistas, não há necessidade de se macular a memória do inventor da guitarra baiana, tampouco a memória do Carnaval.
Sinceramente, tenho esperanças que o prefeito vete essa inoportuna proposta e encontre, ainda que por razões eleitorais, outra forma de homenagear a “Rainha do Axé”, pois, Infelizmente, ao que tudo indica, a vereadora Vânia Galvão e a Câmara de Vereadores de Salvador não estão muito preocupadas com o respeito à memória, pois, esta é a triste realidade de um país que não sabe valorizar as pessoas que dedicaram parte de suas vidas para ajudar a melhorar suas cidades, bairros, estados ou seus bens culturais de referência imaterial. Afinal, como costuma dizer hoje a garotada, a “fila anda” e, como lembrariam os mais velhos, “rei morto, rei posto” ou, neste caso, melhor dizendo, rainha posta!
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