Publicado em 10/08/2025 às 00h05.

A paternidade em meio à crueldade da guerra

Júlia Cezana
Foto: Reprodução

 

Na Ucrânia, a guerra impôs um peso brutal sobre a relação entre pais e filhos. Adultos, crianças e adolescentes têm vivido sob o impacto constante da violência, do medo, da morte e da separação. Em meio a destruição de tudo o que lhes era conhecido, as relações pai-filhos mudaram e se moldaram à uma realidade que muda constantemente. A grande maioria dos homens estão lutando no campo de batalha — há, inclusive, casos de pais e filhos que lutam lado-a-lado no conflito.

Contudo, aqueles que não estão no campo de batalha lutam diariamente para manter seus filhos por perto e seguros, enquanto enfrentam a realidade desse conflito que perdura há anos. Contudo, também há casos em os pais foram forçados, por conta da destruição e insegurança causados pela guerra, a fugir de casa e se despedir, temporária ou permanentemente, de seus filhos. Muitas vezes, a guerra obriga famílias a se separarem e deixarem os filhos aos cuidados de parentes, amigos ou até sozinhos. 

Além dos riscos já conhecidos da guerra, um estudo realizado pelo pelo Instituto de Pesquisa em Desenvolvimento e Educação Infantil da Universidade de Amsterdã revelou que pais e filhos exibem sintomas como estresse pós-traumático, depressão, ansiedade, angústia da separação e problemas sociais. A pesquisa em questão reuniu mais de 4 mil publicações a respeito de como a guerra afeta a paternidade e a relação pai-filhos. Primeiramente, é importante considerar que, por se tratar de pessoas (que reagem de forma diferentes e lidam e processam acontecimentos e eventos de jeitos distintos), a parentalidade também é afetada das mais diferentes formas. 

Ao falar de paternidade em conflitos armados, é importante considerar que a natureza do trauma relacionado à guerra afeta a parentalidade de maneiras distintas. Os pais tendem a demonstrar mais rigidez, hostilidade, inconsistência e menos afeto em contextos de perigo extremo. por outro lado, tendem a serem mais afetuosos e superprotetores em situações em que vivem sob ameaça de conflito, quando o conflito direto não é uma experiência cotidiana. Ou seja, é tanto a intensidade quanto a natureza das experiências vividas pelas famílias que moldam a parentalidade em tempos de guerra. Nesse sentido, quanto mais expostas as pessoas estão à guerra e ao conflito armado, mais hostil tende a ser o comportamento parental, com menor demonstração de afeto e maior rigidez em relação aos filhos. Isso ocorre porque o estresse gerado pelo envolvimento diário com a guerra pode se refletir diretamente nas relações entre pais e filhos, levando os adultos a uma preocupação excessiva com a segurança das crianças e, em alguns casos, colocando as necessidades emocionais dos filhos em segundo plano. 

Contudo, como seres humanos reagem de formas diferentes mesmo quando expostos à mesma situação, há casos em que, na tentativa de proteger os filhos, os pais podem acabar adotando posturas superprotetoras e, algumas vezes, excessivamente controladoras. Em uma entrevista para o portal britânico BBC, o escritor ucraniano Anton conta que alguns pais costuraram em roupas dos filhos etiquetas com o tipo sanguíneo e estão ensinando às crianças o endereço de casa e os nomes dos pais, caso acabem se separando. O escritor também revela que enquanto se escondem em abrigos ou tentam embarcar em trens rumo à segurança, muitos pais também conversam entre si sobre como a guerra está afetando seus filhos e como protegê-los do trauma da melhor forma possível.

“Alguns pais dizem às crianças que tudo é um jogo”, conta Anton. “Nós estamos tentando contar a verdade ao nosso filho, mas de uma forma mais suave, adaptada à mente de uma criança de três anos. Contamos a ele que soldados maus nos atacaram, mas que os soldados bons, os que têm a bandeira da Ucrânia, são os que nos protegem, e que ele não precisa se preocupar aqui, nesse santuário. Ontem, minha esposa desceu as escadas e, quando voltou, ele perguntou: ‘Mamãe, atiraram em você?’ e ela respondeu: ‘Não, querido’, e ele disse: ‘Vão atirar em mim? Eu não quero que façam bang-bang”. 

A pesquisa holandesa revela que, embora a exposição à guerra traga inúmeros impactos negativos para adultos e crianças, também pode despertar aspectos de força e resiliência dentro das famílias. Segundo o estudo, famílias que perderam entes queridos durante conflitos armados tendem a desenvolver um senso ampliado de compaixão e conexão com as pessoas que estão ao seu redor, sejam elas da família de sangue ou não – sentimento que, muitas vezes, se traduz em mais afeto e acolhimento na relação com os próprios filhos

O estudo aponta ainda que experiências extremas como essas levam muitos pais a repensarem a própria identidade e o papel de pai que ocupam. Apesar de passarem a enxergar o mundo como um lugar mais incerto e reconhecerem suas fragilidades, muitos também relatam um novo olhar sobre suas capacidades, pela capacidade de enfrentar circunstâncias tão adversas, reforçando seu papel de pai. 

Por fim, ao falar de paternidade na Ucrânia, é importante considerar que, desde a anexação da Crimeia pela Rússia em 2014, e o subsequente conflito que perdura ate os dias de hoje, infelizmente, diversas mulheres ucranianas foram vitimas de violência sexual e, em decorrência, engravidaram e deram a luz. Em relatório de 2017, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos apontou que a taxa de natalidade no país dobrou entre 2015 e 2017, atribuindo esse aumento justamente ao crescimento dos casos de violência sexual relacionada ao conflito em questao. Um segundo relatório, publicado em outubro de 2022, reúne evidências verificadas pela ONU que reafirma a existencia de um padrão de estupros e outros tipos de violência sexual cometidos por forças russas. Nesse cenário, crianças que têm um dos pais biológicos de cada lado do conflito armado costumam ser vistas como “filhos do inimigo” — uma percepção que pode gerar consequências profundas e duradouras para essas crianças, estigma social, problemas judiciais e familiares, preconceito e negligência. 

Na Ucrânia, o dia dos pais tem um significado diferente. Alguns pais estão lutando para defender seu país e salvaguardar o futuro dos seus filhos. Outros se encontram na posição de únicos cuidadores das crianças. Alguns já não se fazem presentes em corpo físico e jamais voltarão para casa. São milhares de lares dilacerados e vínculos interrompidos e as cicatrizes emocionais deixadas por essa separação e pelo trauma da guerra podem levar uma vida inteira para cicatrizar. Neste cenário brutal e prolongado, ser pai na Ucrânia significa muito mais do que prover ou proteger, mas também significa resistir, reinventar-se e, muitas vezes, tentar manter viva a esperança em meio ao caos. Em tempos de guerra, a paternidade assume contornos diversos, complexos, desafiadores, por vezes presente, horas ausente.  

Mais do que uma data comercial, enquanto parte do mundo celebra o dia dos pais com presença, afeto e presente, há uma outra realidade sendo vivida: milhares de crianças que nunca conheceram os pais ou que não os veem há meses ou anos. Algumas crianças, que os têm por perto, têm uma relação manchada pela guerra e conflito que, infelizmente, não mostra sinais de desescalada. 

Júlia Cezana

Graduada e mestre em Relações Internacionais, com foco em Geopolítica; tem experiência em análises conjunturais para diversos institutos de pesquisa da PUC MINAS, Universidade Federal de Minas Gerais e Universidade de Groningen, na Holanda; já trabalhou na pesquisa e redação de clippings e notícias para a base de dados CoPeSe, parceria com o programa de Voluntariado das Nações Unidas.

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