Marcos Sampaio é advogado, procurador do Estado da Bahia, professor da Faculdade Bahiana de Direito e da Faculdade de Direito da Unifacs.
O espírito olímpico, o Haiti e a Índia: um Brasil sem medalhas (?)
Enquanto a tocha olímpica corre o país, incendiando a todos com o “espírito olímpico”, 33 homens abandonam suas humanidades e reiteram a cultura do estupro, apagando a chama da alegria
Quando no show Noites do Norte Caetano Veloso cantou os versos da música Haiti (1993), ele apontava o dedo indicador para o chão brasileiro e entoava “o Haiti é aqui”. Imediatamente após, numa rápida passagem para um gesto típico das danças momescas, erguia as mãos apontando para cima e completava “o Haiti não é aqui”.
A música trabalha as alternativas entre um Brasil violento, precário, racista e miserável e, noutra quadra, um outro país da alegria, da hospitalidade, e de um povo que dia a dia luta para superar seus problemas. O dilema recorrente no Brasil, atual e histórico, da coexistência entre a felicidade e a injustiça. Os versos eternizados pelo músico, no início da década de 1990, ao mesmo tempo nos distancia e nos aproxima de realidades paralelas.
Talvez a Idade Média pudesse ser tema de uma nova versão musical de um país que se prepara para realizar o maior evento esportivo do planeta, mas que ainda insiste em repetir práticas medievais de violência contra a cidadania, especialmente contra as mulheres.
Enquanto a tocha olímpica corre as ruas das cidades brasileiras incendiando a todos com o “espírito olímpico”, revelamos nossa face indiana de perversidade quando trinta e três homens abandonaram suas humanidades e, em reiteração da cultura do estupro, apagaram a chama da alegria. O Brasil repetiu a barbaridade medieval que Nova Déli, em dezembro de 2012, apresentou a um mundo perplexo, quando Jyoti Singh sofreu violência praticada por seis desumanos.
Somente venceremos se a indignação
se transformar em luta pelo respeito às mulheres
Assim como o triste episódio indiano tornou-se um ponto de inflexão no debate sobre a violência sexual na Índia, culminando com a aprovação imediata de leis mais rigorosa de punição desses crimes, espera-se que o Brasil avance não apenas na aprovação de novas leis, mas no ataque definitivo à cultura do estupro.
Essa indesejada cultura que culpa as vítimas pela agressão não pode permanecer tendo espaço nem no Brasil, nem na Índia, nem em qualquer outro local civilizado. O rape culture (cultura do estupro) desenvolvida pela reflexão feminista americana, do início da década de 1970, mostra um conjunto complexo de crenças que encorajam agressões sexuais masculinas e apoiam a violência contra a mulher. O desvalor às pessoas procura justificar o assédio verbal com conotações sexuais, os assédios físicos e, por fim, a detestável prática do estupro.
Um país que repete o Haiti ou a Índia e, ao mesmo tempo, teima em ser vitrine mundial de coexistência pacífica de todos os povos somente poderá ter êxito se demonstrar efetivo combate ao machismo, em toda a sua extensão.
Perderemos o jogo se, junto com as medalhas, levarmos ao pódio a ideia de um país onde mulheres podem ser vistas como objeto de satisfação das mentes doentias de homens que desconhecem a sua humanidade.
Como lembrava José Lins do Rego, só alcança o espírito olímpico quem chega à vitória para engrandecê-la. Somente venceremos, com ou sem medalhas, se a indignação atual se transformar numa luta definitiva pelo respeito às mulheres.
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