Antonio Jorge Ferreira Melo é coronel da reserva da PMBA, professor e coordenador do Curso de Direito do Centro Universitário Estácio da Bahia e docente da Academia de Polícia Militar.
Todos são iguais perante a lei, mas não diante dos encarregados de cumpri-la
Decisão que beneficia a ex-primeira-dama do Rio de janeiro gera polêmica e conduz à reflexão sobre direito e cidadania

Creio que, pelo menos uma vez em nossas vidas, seja em meio a uma discussão sobre direitos e deveres, numa conversa com amigos ou no noticiário da mídia já ouvimos uma referência ao artigo 5º da Constituição Federal de 1988, que trata das garantias e direitos fundamentais que cada cidadão dispõe no nosso país.
Sem sombra de dúvida, um dos mais importantes dispositivos contidos na Constituição chamada de cidadã por ser uma das mais democráticas e por ter ampliado os direitos dos indivíduos, garantindo-lhes proteção em várias situações, o famoso artigo 5º contém diversos princípios relacionados à dignidade humana, sendo um dos mais destacados e polêmicos o princípio da igualdade, herança maior dos ideais da Revolução Francesa, secundado pelos outros dois que são a liberdade e a fraternidade.
O conceito de igualdade está diretamente ligado ao sentimento de justiça e, ao contrário do que imagina o nosso senso comum, não há outro modo de concretizar o valor constitucional da igualdade senão pelo decidido combate aos fatores reais de desigualdade.
Nas palavras do ex-ministro Carlos Augusto Ayres de Freitas Britto, é assim que “se homenageia a insuperável máxima aristotélica de que a verdadeira igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, máxima que Ruy Barbosa interpretou como o ideal de tratar igualmente os iguais, porém na medida em que se igualem; e tratar desigualmente os desiguais, também na medida em que se desigualem”.
É obvio que o tratamento desigual não tem como finalidade discriminar negativamente, mas sim reduzir essas desproporcionalidades na sociedade. Mas será que todos são realmente iguais perante a lei? Quantas pessoas de classe média, média alta, ou alta estão presas no sistema penitenciário? Será que essas pessoas não cometem crimes? Ou a verdade é que a seletividade atinge aqueles estratos da população mais frágeis, socialmente alijados e marginalizados?
Nesse sentido, embora, pela primeira vez na história da recente democracia brasileira, figuras até então “acima de qualquer suspeita” e “inatingíveis”, como políticos e grandes empresários, estejam sendo, de fato, punidas com prisões e condenações, mais do que nunca, fica a certeza de que quando o autor da infração pertence às camadas sociais mais elevadas, o tratamento que lhe é dispensado, não raro, é completamente diferente, fazendo romper com todo o ideal de justiça.
Como exemplo dessa discriminação negativa, temos o caso da Sr.ª Adriana Ancelmo, ex-primeira-dama do Rio de Janeiro, mulher do ex-governador Sérgio Cabral, que, beneficiada por um dos vários recursos interpostos pela sua defesa, após controvertida decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), recentemente, ganhou o direito à prisão domiciliar.
Divergências no julgar resultam de premissas ideológicas diferentes e de distintas visões de mundo
Apesar de, tecnicamente, o fundamento decisório que deu provimento ao recurso ter levado em conta o fato de a ré possuir dois filhos, de 11 e 14 anos, e de o pai das crianças também estar preso, no calor midiático, como era de se esperar, foi grande a repercussão da decisão do STJ e vários foram os protestos e as críticas dirigidas àquela corte e, principalmente, à magistrada que a proferiu.
Independentemente do nosso ponto de vista a respeito da posição da magistrada, tida por muitos como mais um julgado reprodutor da histórica e notória seletividade da Justiça brasileira, a semelhança de tantas outras ligadas a Operação Lava Jato, o certo é que acabamos por descortinar algo que setores tradicionalistas do direito teimam em guardar dentro do armário: o conteúdo político e ideológico da decisão judicial.
Nessa lógica, se, por um lado, a decisão do STJ casa como uma luva em uma sociedade fundada na desigualdade e habituada ao “você sabe com quem está falando”, típico das autoridades flagradas no ilícito, pelo outro, nos permite compreender a exata dimensão do poder que cada um dos juízes detém ao exercer a magistratura, além das consequências que provocam com suas opções.
Longe de questionar a decisão do STJ, ainda que tivesse sido fundamentada no Marco Legal da Primeira Infância, que permite a substituição da prisão preventiva por domiciliar para gestantes e mães de menores de 12 anos, preocupa-me apenas o fato de que a grande exploração midiática possa gerar expectativas vãs em outras mulheres presas que, mesmo se enquadrando nas mesmas condições da ex-primeira-dama, não possuem os recursos financeiros necessários para assegurar o acesso à Justiça em toda a sua plenitude.
Bendita seja a Operação Lava Jato que, mesmo imersa em polêmicas acusações de parcialidade e de flagrantes desrespeitos à “Carta Capital”, no caso, a carta constitucional brasileira, inequivocamente, tem contribuído para jogar novas luzes sobre a notória descoincidência entre o dever ser – ditado pela ordem constitucional – e o ser – encontrado na vida real.
Sendo assim, ao tomar conhecimento de que, diante da repercussão da decisão do STJ, a ministra dos Direitos Humanos, Luislinda Valois, encaminhou à presidência do STF um pedido para que esse tipo de decisão seja estendido a todas as detentas na mesma situação, fico, em meu íntimo, sonhando e alimentando a esperança de que, como nada acontece por acaso, que esse tenha sido mais um passo contra os repetidos casos de decisões judiciais que discriminam negativamente, objetivando a cristalizar desigualdades e perpetuar as posições de privilégio dos donos do poder.
Fico feliz que, finalmente, a sociedade brasileira esteja se conscientizando de que supor que todos os juízes decidam de forma equânime sobre temas é desconhecer o caráter humano da magistratura. Ignorando que divergências no julgar, não raro, são frutos de premissas ideológicas diferentes e de distintas visões de mundo que se chocam cotidianamente nas lides judiciais, em um contexto que, para o bem e para o mal, muitos e importantes princípios ainda estão em construção, com base em um texto constitucional que o próprio Supremo Tribunal Federal tem começado a reler com outros olhos, depois de duas décadas de vigência.
Nessa lógica, há que se assumir o caráter político, embora não partidário, do poder de dizer o direito sem a voz divina da neutralidade que não possuímos, mas com a premissa da imparcialidade que exigimos. Afinal, como nos ensina o poeta e aforista polonês Stanisław Jerzy Lec: “Todos são iguais perante a lei, mas, não perante os encarregados de fazê-la cumprir”.
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