Publicado em 08/05/2016 às 14h00.

Mães de bebês com microcefalia contam dramas, desafios e sonhos

Protagonistas de um drama nacional, mães de uma geração, que carregarão a marca de uma epidemia, vivem quase que exclusivamente para os filhos

Agência Brasil
Mães de bebês com microcefalia fazem tratamento terapêutico (Foto: Agência Brasil)
Mães de bebês com microcefalia fazem tratamento terapêutico (Foto: Agência Brasil)

 

Protagonistas de um drama nacional, mães de uma geração, que carregarão a marca de uma epidemia ainda a ser plenamente descoberta, as mulheres que deram à luz bebês com microcefalia passam a viver, desde o diagnóstico, quase que exclusivamente para os filhos. Abandonam o trabalho, estudos, enfrentam deslocamentos diários de muitos quilômetros para garantir atendimento aos filhos. E quem cuida dessas mães?

Em abril, ao visitar Recife, uma das cidades com o maior número de casos de microcefalia, a consultora regional da ONU Mulheres Linda Goulart alertou para a importância da saúde física, mental e emocional dessas mães.

“Todas as ações e propostas de políticas públicas precisam ter a mulher como seu sujeito, e não objeto. Por mais que seja relevante tratar da criança e exterminar o vetor, não se pode esquecer que a mulher tem que estar no centro disso no sentido de garantir seus direitos sexuais reprodutivos, autonomia econômica e social”, defendeu Linda Goulart.

Uma rede de atendimento e cuidado para os bebês foi organizada às pressas, mas, para mães, há um longo caminho pela frente. No Recife, os primeiros passados são os grupos de terapia psicológica, montados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e também por organizações não governamentais. A Agência Brasil foi ouvir as histórias dessas mães e acompanhou uma sessão do grupo.

Desafio – Na maior parte das vezes, jornalistas não podem acompanhar as sessões de terapia. E esses profissionais são muitos em Pernambuco. Primeiro estado a alertar para o crescimento de casos de microcefalia e atualmente o que lidera as notificações e confirmações da malformação congênita, Pernambuco atraiu repórteres do mundo todo, ávidos por fotos e histórias das famílias que enfrentam o vírus Zika.

Mas não ali. A sala de terapia é à prova da mídia. É um espaço onde as mães podem falar umas com as outras mães e para profissionais de saúde. Envolvidas em uma rotina de cuidados, viagens em busca de consultas, sessões de estímulo precoce dos bebês e dramas pessoais, a terapia é o momento específico para que reflitam e se exponham.

Várias instituições que oferecem o tratamento às crianças com microcefalia dispõem do serviço para as mães, e todas impedem a entrada dos jornalistas. Uma delas é a Fundação Altino Ventura (FAV), entidade sem fins lucrativos que recebe parte dos pacientes do SUS.

Em uma manhã movimentada na instituição, no entanto, foi aberta uma exceção e a Agência Brasil acompanhou uma sessão.

O dia estava reservado para uma dinâmica, jogos e atividades lúdicas com mensagens para reflexão. Quem conduzia o grupo de 12 famílias – representada pelas mães, em sua maioria – era a psicóloga Alzeni Gomes, coordenadora de terapia ocupacional da FAV. “A gente objetiva muito trabalhar demandas trazidas por elas. Também tem nosso trabalho com dinâmicas, dificuldades que elas têm relatado, filmes motivacionais”, explicou a profissional, antes de começar a atividade sobre coragem de encarar os desafios desconhecidos da vida.

Tema que o grupo não sabia. Tudo começou com uma caixinha fechada. A tarefa era simples: passar de mão em mão a caixa até que a coordenadora, que olhos fechados, mandasse parar. Quem ficasse com o objeto deveria escolher entre abrir a caixa e encarar a tarefa prevista, ou se recusar e recomeçar a brincadeira.

“Eu quero abrir”, disse uma das participantes. “Por quê?”, provocou a psicóloga. “Sou curiosa”. E aí veio o gancho. “Mas aí tem um desafio. Como é, para você, enfrentar um desafio?”, questionou Alzeni Gomes. Aos poucos, as mães começaram a levar o desafia para a realidade. “Acho que sei o que ela quis dizer. Quando você sabe o que vai passar muita gente não quer. Aí, não quero saber porque se eu souber não vou em frente”, disse uma delas.

“Se a gente soubesse que ia ter esse problema, como mãe a gente ia ter o filho, ia pagar pra ver, mas acho que muita gente desistiria. Por exemplo: eu vou engravidar, aí se tivesse uma certeza, se você engravidar hoje seu filho vai nascer com microcefalia. Acho que muitas mães desistiriam. E se fosse pai com certeza, 50% desistiriam, nem enfrentavam o desafio”, começa uma mãe. “100% deles”, ri outra. “90%”, estima uma terceira.

A liberdade de falar sobre assuntos que poderiam ser reprovados por quem não vive o desafio da microcefalia ajuda, mas a oportunidade de trocar informações com outras mães é o maior benefício, segundo as participantes. O que as feministas chamam de sororidade, a cooperação e o apoio entre mulheres, é expresso na troca de dicas e dúvidas sobre o tratamento e o desenvolvimento dos filhos.

“O que me ajuda na minha rotina é a conversa, saber de outras mães. O grupo de apoio me ajuda bastante, minha perseverança. Pensei em desistir, que não ia aguentar, e hoje estou aqui. Eu sigo em frente e cada dia é novo. Ver os outros bebês, ver o meu, principalmente, e ele precisa muito de mim. Tudo tem um significado para nós”, relata Ana Júlia Xavier de Araújo, de 18 anos, mãe de Anderson Gabriel, de 6 meses, e grávida de quatro meses.

Moradora de Glória do Goitá, no interior do estado, Ana Júlia aguarda exame para saber se o próximo filho tem a malformação. Ela teve os mesmos sintomas de suspeita de Zika que observou na gestação anterior.

Abandono – Enquanto na sessão, parte das mães aposta que muitos homens não encarariam o desafio de cuidar de um filho com microcefalia, algumas delas vivenciam a ideia de criar um bebê sem a ajuda do marido ou companheiro.

A segunda gravidez de Ana Júlia não impediu o marido de ir embora. A jovem não dá muitos detalhes da separação. Com tom de voz rígido e, até mesmo ríspido, Ana Júlia busca superar a perda. “Já pensei muito nisso e agora não quero saber. Não importa. Se Deus me deu meu filho, é porque tenho capacidade de cuidar dele. E se eu crio um eu crio dois”, decreta.

Fernanda Maria da Silva, de 19 anos, foi colocada para fora de casa pelo ex-marido quando estava grávida de sete meses de Isabela, que hoje tem meio ano de vida. Ela dependia financeiramente do ex-marido e parou de estudar quando se casou. A jovem voltou para a casa dos pais, e vive no local junto com sete dos 10 irmãos, além da filha.

Com maquiagem caprichada e um dos irmãos ao lado, Fernanda conta, de forma tímida, como enfrenta o cotidiano. “Ele [ex-marido] dá R$100 por mês, não dá para nada. Não consegui benefício do INSS para Isabela, porque já tenho um irmão deficiente morando comigo. O bom é que chegou doação”.

O companheiro de Maria Luíza saiu de casa depois que o casal recebeu o diagnóstico. De acordo com a dona de casa, ele hoje mora com uma garota de 17 anos, com quem mantém um relacionamento.Essa situação não é exclusiva de mães com bebês com microcefalia. Maria Luíza Ferreira de Macedo, 30 anos, também participa do grupo da terapia, mas a filha tem um outro tipo de malformação. Thayla Nayara, de 8 meses, tem lisencefalia (quando o cérebro é liso, ou seja, não apresenta as reentrâncias). Maria Luíza tem uma filha mais velha.

Maria Luíza cuida sozinha das duas meninas. Não tem como contar com a ajuda dos parentes, que moram em São Paulo, sua terra natal. O pouco apoio vem de um irmão que envia uma quantia mensalmente. A contribuição do pai de Thayla, segundo ela, não é suficiente. “Ele não pega a menina no colo. Quando chega dá mais carinho para a outra [filha, a mais velha], aí só faz olhar ela e pronto. Não pega ela, olha e pronto, vai embora. Traz uma lata de leite, uma fralda para ela, deixa e vai embora. Final de semana pega a outra, leva para brincar e depois traz de volta”, narra Thayla, que também recebe um benefício social em nome da filha.

Mesmo assim, a dona de casa não cogita cobrar do ex-marido uma atitude diferente. “Não vou obrigar a pegar ela, passear com ela. É a vontade dele. Machuca um pouco, não por mim, mas pela minha filha. Mas ela é pequena e não tem entendimento ainda. Mas quando ela crescer vou contar tudo pra ela, aí ela decide se perdoa ele ou não”.

Com Daniele Santos, 29 anos, mãe de Juan Pedro, de 4 meses, a separação ocorreu após o nascimento. “Foi meio estranho porque ele [o filho] era muito irritado, chorava muito. Meu marido também na época estava sem trabalhar, aí juntou uma coisa com a outra. De repente, ele [o pai] foi embora de casa e disse que era porque eu não estava dando atenção a ele”, lembra.

“Ele não chegou a comentar nada, mas se isolava. Desejava muito um filho homem, então de repente aquele sonho […] A mídia falava que podia ser que o menino não falasse, não andasse, então o choque foi maior para ele [o pai] do que para mim. Eu aceitei melhor do que ele”.

Segundo Daniele, a história começa a ser revertida. “Depois que saiu as notícias, que ele viu que não era só o filho da gente, que viu os tratamentos, ele foi se apegando de novo ao bebê. Hoje, quando ele pode me acompanha em algumas terapias. A gente está separado, mas ele já aceita bem melhor o filho dele”.

Daniele conta com a ajuda dos vizinhos desde que Juan nasceu. “Como eu moro em uma comunidade pequena, todo mundo ficou mobilizado. Sempre tem alguém perguntando se queremos alguma coisa. Nos acolheram”.

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