Publicado em 11/04/2020 às 23h46.

Sem dúvidas, a oportunidade é agora

Artigo de Antônio Carlos Dultra

Redação
Foto: arquivo pessoal
Foto: arquivo pessoal

 

“A instituição de tributos tecnicamente possíveis e economicamente viáveis como meio de redução das desigualdades econômicas e promoção da justiça social – sem dúvidas, a oportunidade é agora.”

Como economista e, principalmente, como cidadão consciente de que o interesse coletivo da sociedade deve sempre sobrepor aos interesses individuais, não posso e não devo deixar de acreditar no dever de prevalência do princípio e do objetivo síntese da nação do Bem Comum.

Aqui vale expor a definição dada pela Escola Superior de Guerra (ESG) sobre esse princípio magno: os valores da preeminência da pessoa, da liberdade individual, da igualdade fundamental entre os homens e da fraternidade foram os inspiradores do conceito de Bem Comum.

De acordo com o postulado, resta claro o entendimento de ideal de convivência que, transcendendo à busca do bem-estar individual, permite-nos construir uma sociedade onde todos, e cada um, tenham oportunidades e condições de realizar as suas potencialidades como pessoa e da conscientização e prática dos seus valores éticos, morais e espirituais.

É diante de tal contexto, em momento de reflexão no isolamento social em pleno feriadão de Páscoa, que não posso deixar, nessa situação ímpar observada no mundo, de voltar a provocar o debate sobre o tema em assunto que me incomoda há anos, por nada de efetivo ter acontecido.

Vejamos: em 20 de outubro de 2015, no comentário econômico que fazia no programa A Voz do Trabalhador, do sindicalista e amigo Magno Lavigne, na Rádio Tudo FM, ainda no governo da presidente Dilma, falei sobre o aumento da desigualdade, com base nos dados publicados no relatório do Banco Credit Suisse.

O documento, que tinha passado quase que despercebido pela mídia, apontava o aumento da desigualdade econômica mundial, onde metade da riqueza do planeta se concentrava nas mãos de apenas 1% da população.

A Oxfam International, Organização Não Governamental britânica voltada ao combate à pobreza no mundo, ratificava tais informações. Segundo seu estudo, qual, a desigualdade aumentou continuamente desde 2008, ano em que irrompeu a crise financeira global. Em 2014, o índice de concentração da riqueza mundial apresentou crescimento superior a 3% em apenas um ano.

O estudo levava em conta dados da riqueza de 4,8 bilhões de pessoas, o equivalente à população adulta à época (de mais de 200 países). Para estar no 1% mais ricos era preciso ter acumulado patrimônio de mais de US$ 759,9 mil, hoje algo em torno de R$ 4 milhões. A riqueza inclui dinheiro, imóveis e ações, descontando-se as dívidas.

O relatório citava que a lista da Forbes de 2014, com as 80 pessoas mais ricas do planeta, seguia o ritmo da concentração. Esses 80 possuíam a mesma riqueza de 50% da população mundial mais pobre, que compreendia 3,5 milhões de pessoas. Em 2010, esse grupo era composto por 388 pessoas.

Alertava que a concentração de riqueza no mundo poderia se radicalizar ainda mais, se governos, sociedades e organismos financeiros multilaterais não adotassem ou reforçassem as suas políticas de distribuição de renda.

Citava que no Brasil, um país tão desigual, como estamos cansados de ouvir falar, os dados das declarações de Imposto de Renda divulgados naquele mês, pela Receita Federal, mostravam que menos de 1% dos contribuintes concentravam cerca de 30% de toda a riqueza declarada em bens e ativos financeiros do país. Os dados revelavam, ainda, que quem estava nas camadas mais altas pagava menos impostos, proporcionalmente à sua renda. Informava que, em 2013, do total de rendimentos da faixa de contribuintes que receberam acima de 160 salários mínimo/ano, apenas 35% foram tributados. Na faixa dos que receberam de três a cinco salários, por sua vez, mais de 90% da renda foi alvo de pagamento de imposto. O certo é que as pessoas que têm mais renda, mais riqueza, consequentemente mais poder, são muito bem agasalhadas pela legislação tributária do Brasil.

Por conta do aumento da audiência e dos muitos pedidos de ouvintes, na semana seguinte, em 27 de outubro de 2015, no mesmo comentário econômico, voltei a tratar do tema, agora com uma questão polêmica, “verdadeiro mito”, que deveria estar no meio do debate nacional como saída para o aumento da arrecadação do governo e a promoção da justiça social.

Defendi a instituição do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF), único dos sete tributos federais previstos na Constituição de 1988, no inciso VII do seu artigo 153, que não foi instituído. Lembrando que, em 1989, o presidente FHC colocou a proposta, mas a pauta não avançou não avançou no Congresso.

Em 2010, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Congresso Nacional aprovou, mas o projeto de lei complementar não havia, até aquela data, sido submetido ao plenário.

Quase exatamente um ano depois, em 9 de novembro de 2016, meu artigo “Imposto provisório sobre grandes fortunas – a hora pode ser agora” foi publicado no importante site de notícias locais bahia.ba.

Defendia que naquele momento, quando o Governo Federal e os demais governos da federação buscavam a ampliação da arrecadação, o tema deveria voltar a ser discutido no Congresso e na sociedade, de forma pragmática e sem paixões ideológicas.

À época, deixei claro que por ser um economista com experiência técnica e não acadêmica, não tinha a pretensão de dizer verdades absolutas, de esgotar o tema, mas sim provocar o debate, estimular reflexões a partir do que escreveu o economista francês Thomas Piketty, em seu livro de muito sucesso “O Capital no Século XXI”, e em artigos interessantes, com visões favoráveis e visões antagônicas sobre o mesmo tema.

No seu livro, Piketty afirma que não discutir impostos sobre riqueza é loucura. Para o autor, o IGF poderia ser atrelado à diminuição da carga tributária sobre o consumo. Além da regulamentação do imposto sobre grandes fortunas, a obra fala da importância de taxar de forma significativa a herança de valor elevado.

Bem, está aí um bom debate econômico que penso e, como disse no início, quero e devo voltar a provoca-lo nesse momento, quase quatro anos depois da publicação original. Porém com dados atualizados de fontes que têm credibilidade, aliado a uma proposta ampliada com foco nos três tributos, únicos, a meu ver, que podem minimizar a questão da desigualdade no Brasil, em especial, mas também em qualquer nação do mundo, salvo aquelas que já os têm em vigor. Refiro-me a tributação sobre grandes patrimônios (fortunas), grandes heranças e sobre os lucros e dividendos. Visando maior compreensão, penso ser necessário um alinhamento prévio sobre conceituação de tributos, comparativo percentual das cargas tributárias dos países, assim como características da regressividade e progressividade da tributação. Para tanto, me utilizo a seguir do material didático publicado pela Politize ONG, conceituada organização que atua por meio da educação política, na formação de uma nova geração de cidadãos mais conscientes e comprometidos com a democracia.

Na realidade, sabemos que o Brasil tem uma distorção tributária muito grande, pelo excesso de impostos e taxas sobre consumo, tributação indireta, e sub tributação do patrimônio e da renda. Quando se tem uma tributação mais equilibrada, como nos países desenvolvidos, os encargos sobre o consumo têm muito menor participação percentual na carga tributária.

Primeiramente, precisamos entender o que, de fato, são tributos: tributo é tudo aquilo que o governo arrecada para si, para que possa prestar serviços públicos essenciais aos seus cidadãos. Esta arrecadação ocorre subdivididas em três modalidades: impostos, taxas e contribuições.

Embora a variedade de tributos que nos são cobrados no Brasil seja grande, individualmente, eles não têm tanto volume, o que faz com que a carga tributária aqui (soma de todos esses tributos) não se encontre tão diferente das de outros países.

O conceito de regressividade da tributação representa a maior diferença entre a tributação brasileira e a de países considerados desenvolvidos. Apesar de o país estar com uma carga tributária próxima da média desses países, em torno de 34%, no Brasil quem mais contribui com impostos, taxas e contribuições, infelizmente, são os que menos recebem.

Em nosso modelo tributário atual, os detentores dos menores patrimônios acabam tendo de contribuir com uma porcentagem muito maior de seu salário do que os ricos. Isso acontece porque aqui os tributos incidem majoritariamente sobre o consumo, e não sobre a renda. Ou seja, o governo impõe tributos fixos sobre os produtos e serviços e, consumindo-os, a população acaba transferindo parte de seu dinheiro para o Estado.

Tributação regressiva, portanto, considera somente a porcentagem da tributação, independente do valor da renda. Dessa forma, quanto mais pobre, maior será a porcentagem de contribuição relacionada à renda. A tributação fixa sobre bens e serviços é, indubitavelmente, regressiva.

Vejamos um exemplo simples: João recebe R$ 1 mil por mês e Maria recebe R$ 10 mil. Ambos têm a necessidade de comprar arroz, feijão e carne.

Considerando que eles irão ao mesmo supermercado e comprarão a mesma quantidade desses produtos, que somam um montante final de R$ 60 (R$ 25 de tributos e R$ 35 referentes ao preço de custo mais o lucro). Sendo assim, João acaba pagando em tributos 2,5% do seu salário, enquanto Maria pagará apenas 0,25%. Dessa forma, Maria, que ganha 10 vezes mais do que João, contribuiria com a mesma quantia, em valores absolutos que ele, porém, para ela, esse valor é insignificante, enquanto para ele, faz uma grande diferença no seu orçamento.

Já nos países desenvolvidos, a tributação incide quase que na totalidade sobre a renda, e de maneira progressiva. Assim, quem é mais rico contribui com mais e quem é mais pobre, contribui com menos. Se João e Maria morassem em algum desses países, seriam cobrados, suponhamos, 25% de tributos diretamente do salário de João, por este necessitar de grande parte de sua renda para comprar insumos básicos, como comida, papel higiênico, água, aluguel, entre outros. Já sobre o salário de Maria, a tributação seria de 35%, pois se considera que seu salário é suficiente não só para que ela adquira insumos básicos, como os de João, mas também lhe sobrem reservas para formar poupança e investir. Sendo assim, ela teria condições de contribuir com uma porcentagem maior que João.

Isto, por si só, mostra que o sistema tributário nacional, além de complexo e desigual, fere o princípio da função distributiva do Estado.

No momento, feito esse relato, voltemos para o assunto principal, até porque, pelo que tenho acompanhado essa questão da regressividade está sendo bem discutida e trabalhada nas diferentes propostas de reforma tributária que se encontram hoje em tramitação no Congresso Nacional.

A relevância do Estado em cobrar tributos essencialmente sobre renda e patrimônio, está na clareza de que, além da capacidade maior de arrecadação se faz necessário aplicar como instrumento de justiça social.

Especificamente sobre referidos três tributos, apresento partes do recente documento publicado, em conjunto pelas entidades representativas na área de tributação, tais como a Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (FENAFISCO) e a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (ANFIP). O documento informa que tributar os super ricos pode garantir a arrecadação de R$ 272 bilhões, para serem usados contra a crise econômica e para amenizar os impactos da pandemia da COVID-9.

Desse total, R$ 100 bilhões iriam especificamente para um Fundo Nacional de Emergência. Os recursos para abastecê-lo sairiam da tributação da renda e do patrimônio dos super ricos, através da taxação de lucros e dividendos, grandes heranças e fortunas (patrimônios), entre outras medidas.

O Fundo Nacional de Emergência seria composto por: 50% do valor arrecadado através do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF); 50% pela arrecadação de uma Contribuição Social sobre Altas Rendas das Pessoas Físicas (CSPF); 50% da arrecadação da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) dos setores financeiro e extrativista mineral; e 20% do valor arrecadado de Imposto de Renda decorrente da cobrança.

A Contribuição Social sobre Altas Rendas das Pessoas Físicas (CSPF), objeto de proposta de reforma tributária em discussão no Congresso, teria incidência imediata sobre rendimentos de qualquer natureza que ultrapassasse R$ 80 mil reais por mês. Ao todo, seriam 194.268 contribuintes (0,7% do total), de onde se arrecadaria R$ 72 bilhões por ano.

A proposta também prevê criar uma alíquota adicional extraordinária de 30%, com vigência temporária da CSLL, apenas para bancos e instituições financeiras. E aumentar a alíquota da CSLL para mineradoras e setores com alta lucratividade e baixa quantidade de empregos.

No que se refere ao imposto sobre grandes heranças, tributação de competência dos Estados, a proposta prevê aumentar a alíquota máxima do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) para 30% – hoje, o teto da cobrança sobre herança no país é de 8%.

Por fim, prevê a instituição do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF), com alíquotas progressivas de 1%, 2% e 3% sobre o patrimônio conhecido que exceder os valores de R$ 20 milhões, R$ 50 milhões e R$ 100 milhões, respectivamente.

Sobre esse polêmico imposto, que, como disse desde 2015, vem a ser o único dos sete tributos federais previstos na Constituição de 1988, no seu Inciso VII do Artigo 153, que não foi até o presente momento instituído, para qualificar o debate, a seguir apresento considerações contrárias à sua implementação.

Bernard Appy, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda de 2003 a 2009, disse, “Imposto sobre grandes fortunas não funciona, essa é a experiência mundial. Os donos das grandes fortunas vão tirar domicílio do Brasil e não vamos conseguir arrecadar”.

Appy diz que um imposto desse tipo só funcionaria em nível mundial, admitindo a ideia defendida pelo economista francês Thomas Piketty, especialista em desigualdade, mas afirmando ser de difícil execução.

“É um imposto completamente ineficiente”, disse Everardo Maciel, ex-secretário da Receita Federal por 8 anos no governo FHC”.

Ele disse que o imposto sobre fortunas (ISF) da França foi apelidado de “imposto inglês” por ter estimulado a migração de fortunas para o país vizinho.

No Brasil, um Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF) estava entre as medidas preparadas pelo ex-ministro Guido Mantega para depois das eleições de 2014, mas foi barrado pelo seu sucessor Joaquim Levy.

Em fevereiro de 2015, o ex-ministro Levy disse que “a taxação estática de grandes fortunas não arrecada muito e não tem muita vantagem. O principal instrumento de tributação é a renda”(iii). Penso que ele deixou de considerar o aspecto mais relevante da medida, que seria a promoção da justiça social e econômica.

Como contraponto, em seu novo livro a ser lançado o economista francês Thomas Piketty sustenta a tese de que o retorno sobre o capital – o que inclui investimentos financeiros, propriedades, terras e máquinas — é maior do que o da economia como um todo. Ou seja, quem tem muito sempre acaba ganhando mais.

Por esse motivo, defendo, assim como ele, que mesmo com prováveis impactos negativos, a tributação sobre grandes fortunas (patrimônios) deva ser instituída no Brasil, em última instância em caráter provisório, o que depende somente da vontade política. Para os muito ricos, isso significaria muito pouco, uma fração mínima do que eles têm. Esses recursos iriam ajudar milhões de brasileiros a sobrevirem com dignidade durante a crise, e, depois dela, investindo em educação, minimizar a violência das cidades e otimizar a igualdade de oportunidades para os jovens de classes mais pobres.

Essas boas ideias adequadas ao século XXI, até mesmo economistas que não concordam com o francês reconhecem que é dele o crédito por colocar o tema da desigualdade no topo da agenda mundial. Atualmente, faz parte do programa do Partido Democratas na campanha presidencial nos EUA.

Diante dessa crise mundial sem precedentes do COVID-19, que infelizmente não podemos prever quando deve terminar, reconhecendo que não há consenso nem sobre como se dará o debate da Reforma Tributária no Congresso Nacional, só posso defender, nesse momento de guerra, que situações extraordinárias demandam ações extraordinárias.

Registro aqui as falas propositivas, de esperança no nosso país, proferidas por dois dos maiores mestres para mim em economia e em filosofia, pensadores de muita credibilidade, respectivamente, os doutores Antonio Delfim Netto e Roberto Mangabeira Unger. “Que a volta do crescimento aconteça com maior aumento da igualdade de oportunidades e ênfase total na perspectiva de aumento do acesso geracional dos cidadãos. Torço para que essa crise seja uma oportunidade civilizatória.” Disse Delfim Netto, “Não há país no mundo mais disponível para uma grande construção transformadora que o Brasil. O momento de crise ou de múltiplas crises é favorável, pois a crise é a maior aliada de quem deseja transformação”, afirmou Mangabeira Unger.

Concluo este artigo com reflexões “sobre o que o mundo está vivendo”, do mestre Oscar Motomura, fundador e principal executivo do Grupo Amana Key, especialista na atualização e no desenvolvimento de líderes, de quem tive a honra de ser aluno. Ele tem a percepção do momento de transformação, da oportunidade do sistema de se mega reinventar, encontrar soluções a partir da consciência coletiva, onde os princípios da Carta da Terra, éticos fundamentais para a construção, no século XXI, de uma sociedade global justa, sustentável e pacífica, com o propósito da busca do bem comum, seja possível de acontecer. Torço e acredito nessa percepção positivista.

Que Deus nos proteja e, principalmente, nos ilumine.

Economista, Antônio Carlos Dultra é coordenador técnico da diretoria da presidência da Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia (Conder)

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