Publicado em 26/06/2025 às 10h00.

‘Nossa revolução é tropical’: Don L rima futuros possíveis em novo disco

Em entrevista ao bahia.ba, o rapper reflete sobre o Caro Vapor II, com olhar afiado sobre o Brasil, imperialismo cultural e a urgência de imaginar novas formas de existir

João Lucas Dantas
Foto: Bel Gandolfo/ Assessoria

 

O rapper fortalezense Don L define um novo marco no rap nacional com o lançamento de Caro Vapor II – Qual a Forma de Pagamento?, que estreou em todas as plataformas digitais na última semana. Com 20 anos de carreira — iniciada no grupo cearense Costa a Costa, ao lado de Nego Gallo, Berg Mendes, DJ Flip Jay, Cabeça e Aluza — e 12 anos após a estreia de sua trajetória solo, com o lançamento de Caro Vapor – Vida e Veneno de Don L, em 2013, o músico conversou com o bahia.ba sobre sua caminhada, influências musicais, estéticas, o papel político de sua arte no Brasil, parcerias e shows em Salvador.

Sendo o quarto disco de estúdio, o cantor dá continuidade ao projeto após os volumes 3 e 2 de Roteiro pra Aïnouz (RPA), lançados em 2017 e 2021, respectivamente. Ao abraçar uma estética tropical, marcada por cores quentes e letras vivas, o rapper lança um trabalho mais expansivo, sem perder o tom crítico, retratando a relação do Brasil com sua própria cultura, sem vira-latismo, atento ao cenário político e social atual, com a vontade de reforçar a importância de também refletir sobre o amor.

Com o retorno marcado à capital baiana, como participação especial no show de Rachel Reis deste sábado (28), na Concha Acústica do Teatro Castro Alves, Don reforça sua conexão com Salvador e mostra que sua caminhada segue firme, rimando o presente e projetando futuros tropicais.

Quero começar sabendo por que decidiu dar continuidade ao Caro Vapor neste segundo volume, 12 anos após o primeiro, e dois volumes do Roteiro pra Aïnouz. Isso já fazia parte do seu plano?

Don L: 12 anos é muito tempo. Eu planejava sim. Já tem lá no primeiro, o volume I. Só que eu tinha adiado, colocado de molho pra poder criar as condições pra fazer do jeito que eu queria. Em outros momentos eu poderia ter feito, mas agora surgiram de novo as condições, e também a vivência, o sentir no coração que era a hora de fazer isso, que tinha a ver com o que eu estava vivendo, com as minhas aspirações artísticas, com o que eu queria dizer.

Dentro da sua obra, você enxerga o Caro Vapor e o Roteiro pra Aïnouz como dois universos diferentes em termos de criação? E como é que eles dialogam entre si?

Don L: Eles são complementares. O Roteiro tem uma história definida, é um roteiro mesmo. O Caro Vapor tem uma outra atmosfera sonora, o jeito que eu rimo nele é diferente, a complexidade dos flows nele é mais apurada. O RPA eu simplifiquei bastante em alguns momentos. Ele é mais introspectivo nesse sentido, mas também é um disco de vida, assim como os anteriores. Tem algumas semelhanças, mas pessoalmente são atmosferas bastante distintas. Acho que o Caro Vapor é uma onda mais tropical. Tem uma malandragem ali que é mais Fortaleza nesse sentido. Ele sempre me traz mais de onde eu vim, para aquela energia que me trouxe pro jogo.

Queria falar sobre o aspecto visual do seu trabalho. É muito interessante notar a diferença entre os dois projetos. O seu novo álbum vem com uma estética muito pautada nessas cores quentes, tropicais como você já mencionou, de laranja, azul, vermelho. É algo que você levou bem para as redes sociais, imagino que para o seu show novo também. Como é o processo criativo pra você definir a estética de uma nova fase musical?

Don L: A gente faz um mergulho na obra. Eu já tinha o conceito que eu queria, e aí o meu diretor artístico, André Maleronka, que trabalha comigo, que vai pegar a criação ali e tentar me propor coisas. Então trocamos uma ideia, ele já me propõe referências, e a gente chama uma outra galera, um designer, um videomaker, a produção executiva, um monte de gente para tentarmos transformar essa atmosfera, que é a gênese de tudo, a obra musical, o discurso, o que está sendo dito, o que as imagens trazem, o que eu quero passar.

A gente sempre pensou que seria essa vibe tropical, que teria essas cores. E eu sempre quis fazer uma referência ao design, às histórias e à arte brasileira. Então é um disco que também tenta, em todos os aspectos e sentidos, trazer o que é nosso. Então tudo isso vai contribuindo até chegar no resultado.

Uma coisa interessante de notar, ao longo da sua carreira solo, é a periodicidade dos seus lançamentos: o primeiro Caro Vapor, de 2013; os dois volumes do RPA, de 2017 e 2021; e agora o novo disco, de 2025. Esses intervalos de quatro anos são algo planejado ou refletem o tempo do seu processo de criação?

Don L: Não, é só falta de dinheiro mesmo. Se eu tivesse o dobro de dinheiro, seria metade do tempo. Eu invisto muito nos meus trabalhos. Esse investimento precisa que eu pare um tempo de fazer show, por exemplo. Agora, eu tenho uma equipe, e tenho que pensar nessas pessoas que vão ficar sem trabalhar durante esse tempo em que eu tô sem me apresentar. Eu ainda tenho que performar de vez em quando, porque eu sou um artista independente. Tenho uma empresa pequena. Produzir um disco é um empreendimento dispendioso pra um artista independente.

Pra mim, não falta ideia. Não falta vontade. É o que eu amo. Eu adoro produzir música, estar em estúdio. Eu adoro o show também, mas o estúdio é meu coração. Essas coisas vão ficar aí depois que eu já não estiver nem mais aqui. Esses quatro anos geralmente é o tempo que tem demorado, mas espero que não seja assim sempre.

 

Foto: Bel Gandolfo/ Assessoria

 

No Instagram, você postou uma série de filmes que inspiraram o seu novo trabalho. Na lista tem de Glauber Rocha a David Lynch, sem contar suas menções nas letras a Carlito’s Way (Dir. Brian de Palma, 1993), Charles Chaplin e Matrix (Dir. Lilly e Lana Wachowski, 1999). Como a sua relação com o cinema te inspira criativamente?

Don L: É uma arte que eu gostaria muito de ter condição de participar, de fazer também. Mas a gente vive no Brasil, e é muito mais caro. Já é caro fazer um disco, imagina um filme. Um clipe já envolve equipes sinistras, muitas pessoas trabalhando. Mas é uma arte que envolve todas as outras. No cinema, você tem imagem, tem som, tem tudo ali. Então é sempre inspirador.

Eu gosto de assistir, não sou um cinéfilo como muita gente pensa. Gostaria de ser mais, mas tô sempre muito envolto na criação musical também. Eu produzo, curto sonoridades, sintetizadores, sons de drum machine, tudo isso. Então nosso tempo é limitado pra ser expert em tudo.

Já ouvi algumas pessoas me dizendo: “Suas rimas são muito visuais. Eu consigo ver a cena quando você canta”. E é uma característica mesmo. A minha música te remete a imagens. Resolvi aproveitar e colocar referências de coisas que vão compor um imaginário de imagens com a música que eu faço. É interessante também deixar a imaginação da galera criar o filme. E aí eu coloco algumas referências que vão lembrar elas de algumas coisas.

Falando sobre uma de suas letras mais famosas, Aquela Fé, você encerra com a ideia de que “uma frase muda o fim de um filme”. Você diria que uma frase pode mudar também uma música ou um disco?

Don L: Quando eu cito isso, é no sentido de que o passado é construído no presente. Você pode ressignificar o teu passado inteiro com uma frase, com uma forma de fazer sentido pra você, e criar um futuro novo. Uma frase pode mudar uma música, um disco, uma vida, pro bem ou pro mal. A palavra tem muito poder.

Eu recebo muitos depoimentos de pessoas que tiveram suas vidas profundamente impactadas por um trecho ou por uma música inteira. É muito impressionante, porque quando você começa a fazer rap, pensa: “Eu faço essa parada porque teve uma hora que isso mudou a minha vida”. Mas você nunca imagina o quão profundamente pode mexer com a vida de alguém. Eu recebo todos os dias depoimentos impressionantes.

Explorando mais as suas referências musicais, nesse novo trabalho você recria um dos clássicos de Milton Nascimento, Para Lennon e McCartney, com um título muito curioso: Para Kendrick (Lamar) e Kanye (West). Hoje em dia, são dois músicos em espectros políticos muito diferentes. Isso é algo que você leva em consideração ao escutá-los? Ou o que importa é a transformação musical promovida por eles?

Don L: Isso é muito essencial na escolha desse título. Para Kendrick e Kanye é uma provocação pros gringos e pra gente aqui também. Porque a gente os considera tanto e cada vez mais somos aculturados, bebemos de um imperialismo cultural cada vez mais forte. E lá nos anos 1970 o Milton e o Lô Borges já estavam mandando esse recado, dizendo: “A gente escuta Beatles, e é legal ter essa referência, mas aqui é outro bagulho”. Não é pra vocês. Vocês estão vivendo uma parada aí que é de um jeito e é muito mais fácil. Aqui é muito mais treta.

A forma como vocês se enxergam, achando que são progressistas, não muda o fato de que, perante o sul global, a postura de vocês é também imperialista. Quando eu coloco o Kendrick e o Kanye, eu estou dizendo que, apesar de eles serem de espectros políticos totalmente opostos — o Kendrick sendo um cara mais à esquerda e o Kanye um cara de extrema-direita, que agora se assumiu nazi, que é um absurdo — os dois, quando olham e atuam no terceiro mundo, exercem uma imposição cultural imperialista, sem devolver nada do que recebem ali.

Esses caras ganham muito dinheiro da África, da América do Sul, que consome a arte deles. Porque eles impõem essa influência através do poder do dólar, do imperialismo norte-americano. Então, eles agem de forma colonial também, não importa o espectro político que eles ocupem.

Nas suas músicas nós podemos sentir esses ritmos e estilos essencialmente brasileiros. Você tem feito muitas parcerias ultimamente. Além de Djonga, Marcelo D2, Rael, entre tantos outros, você também trouxe, por exemplo, nomes como Alice Caymmi para o seu novo disco. E acabou de fazer uma parceria com Rachel Reis no disco dela. A que você atribui essa facilidade de transitar entre artistas tão diversos com o seu rap?

Don L: Aprendi a fazer rap em cima de discos que não eram batidas do gênero. Eu não tinha acesso. Eu estava em Fortaleza. A internet não era de fácil acesso. Não é igual a hoje, que todo mundo tem uma internet no celular. Eu comprei uma vitrola e tinha um gravadorzinho de mão. Ficava botando uns discos que eu tinha e, às vezes, eram discos que não eram de rap. Tem um disco da Sade, por exemplo, que tinha uma batida no final. E foi com ele que comecei a fazer rimas.

Gosto muito de música. Por exemplo, Enquanto Acaba (no Caro Vapor volume I) é um jazz que toca em três tempos. Eu chapei naquilo, botava o disco e ficava rimando em cima. Eu gostava de rimar em cima de coisas com diferentes ritmos, em diferentes tempos. E aí isso se tornou algo que eu gosto de fazer, principalmente quando são artistas que eu admiro tanto, e com quem eu me conecto às vezes mais do que com o próprio rap.

Tenho me conectado cada vez menos com o rap mais convencional que tá sendo feito no Brasil e no mundo. Porque eu acho que houve um empobrecimento musicalmente e de discurso também. Mas eu não vou começar a fazer samba, o que eu faço é rap. A galera acha que todo rapper, quando começa a ficar mais velho, vai fazer samba. E eu posso rimar num samba, posso até cantarolar, mas eu faço rap. Desde o começo tô rimando em jazz, em outros gêneros.

Hoje é uma grande satisfação pra mim que uma artista como Rachel Reis me convide pro trabalho dela, uma artista que eu admiro. É uma obra fantástica e esse último disco dela tá muito bonito. Trazer esses artistas pra minha obra também, como Giovani Cidreira, Alice Caymmi, Anelis Assumpção. Isso é uma realização pra mim.

 

Foto: Bel Gandolfo/ Assessoria

 

Sua obra traz uma dimensão política que não se limita somente a denúncias. Você propõe também formas de existir, de amar, de imaginar o futuro, sobretudo a partir de uma existência negra, nordestina e periférica. Como é que você enxerga o papel do seu trabalho nesse cenário político que nós vemos hoje no Brasil?

Don L: Eu tento fazer exatamente o que você descreveu. Hoje, é o que a gente tem feito como pessoas criativas e inventivas no Brasil desde que o país foi invadido por uma caravela de europeus. A gente se tornou esse povo, e a gente criou o samba. A gente criou essa forma de vida que é a malandragem, de, apesar de tudo, conseguir fazer uma ginga aqui, driblar as condições adversas pra viver, tirar uma onda.

A gente precisa disso também pra falar de política. A nossa revolução é tropical. Ela não é a revolução chinesa. Máximo respeito, mas a nossa parada é outra. O povo não quer só desgraça. Nós não temos essa disposição de pensar “a vida vai ficar legal pros meus tataranetos”. A gente quer agora.

Os povos originários estavam aqui no Brasil quando os europeus chegaram. Eles tinham as tretas deles, tinham armas pra se defender, e lutaram bravamente. Mas isso não era o foco da vida deles. Se você for ver, muitos desses povos tinham vidas invejáveis do ponto de vista atual. Porque a galera queria mais era viver.

Eu acho que essa junção da nossa cultura com a africana, e também com a dos imigrantes portugueses e dos europeus pobres que vieram pra cá ser operários, é uma cultura de gente que quer viver pra hoje. Temos que lutar pra transformar o Brasil de um jeito que a gente também não fique só falando de desgraça, que a gente tenha soluções de vida. E só dá pra fazer isso de forma criativa.

O amor, o afeto, o erotismo também são aspectos muito presentes nas suas músicas. Você considera que falar de amor, hoje, é por si só um ato político?

Don L: Por si só eu não acho que nada seja um ato político. Porque eu acho que tem muito esse discurso assim: “Só o fato de eu sobreviver é um ato revolucionário”. Não é não, cara. Vamos ser sinceros. A gente tem que ser mais pé no chão também, porque senão fica um discursinho fácil. Amar é importante. O resgate tem que se estender também a uma forma de amor que seja menos materialista.

O amor como posse, como a gente pensa a formação da família patriarcal desse jeito que ela é, que traz tanto sofrimento. Pessoas de várias gerações, das nossas famílias mesmo, viveram sob traumas profundos do que é a paternidade, a pressão familiar, e de um machismo em cima dos homens, que depois vão descontar nas mulheres.

O que é ser homem? O que é a figura masculina? Esse nível de violência a que a gente é submetido, forçado a ser e a usar, na nossa formação inteira. A gente tem que pensar o amor. Aí pode ser revolucionário, se você começar a pensar em outra forma de amar, por exemplo.

E principalmente o amor que não seja egoísta. Esse amor que hoje em dia é pregado, eu acho muito pobre. Um amor que tá nas letras das músicas aí toda hora, que é só uma coisa que te completa, essa história da “sua metade”, é uma visão de mundo pobre. A gente é educado a pensar isso. E já existiram e existem muitas outras. Então eu acho que a partir daí podemos pensar num amor revolucionário.

Você acabou de ser confirmado como participação especial no show da Rachel Reis, na Concha Acústica, neste sábado (28). O que você espera desse show e os fãs de Salvador podem esperar mais novidades por aqui em breve?

Don L: Tô com saudade de Salvador. Tô feliz duplamente, por participar desse show, que, na verdade, eu já queria assistir, porque eu sou fã da Rachel. Acho ela incrível. Tá muito bonito esse disco (Divina Casca). Voltar com o Rincon Sapiência, que é outro cara que eu tenho grande admiração. Um dos maiores talentos da história do rap brasileiro. Tô na mesma música com ele. A gente vai dividir o palco. Vai ser uma tiração de onda.

E voltar aí, que é a primeira cidade do Nordeste que me abraçou depois de Fortaleza. Quando eu comecei lá em Fortal, eu sempre conto essa história, a gente fez sucesso de degrau por degrau. Primeiro na minha rua, depois no meu bairro, depois na região, depois na capital, depois no Ceará. Depois fui pro Nordeste. E, quando fui, foi a Bahia que me abraçou primeiro.

Tive grandes amigos desde o começo, grandes fãs. A galera do rap aí me conhece de longa data, somos parceirões. É uma cidade que tá no meu coração desde essa época. Eu sei que influenciei muita gente daí, muita gente do rap. Quando chegamos com o Costa a Costa, ressurgiu um monte de gente que tinha desistido de fazer rap. Porque é difícil para os nordestinos. Os caras falavam: “Vocês fizeram a gente ter gás de novo, porque a gente tava de cabeça baixa, sem autoestima”. Voltar pra Salvador é uma coisa que eu queria fazer todo mês, pelo menos. Vai ser massa.

João Lucas Dantas

Jornalista com experiência na área cultural, com passagem pelo Caderno 2+ do jornal A Tarde. Atuou como assessor de imprensa na Viva Comunicação Interativa, produzindo conteúdo para Luiz Caldas e Ilê Aiyê, e também na Secretaria Municipal de Cultura e Turismo de Salvador. Foi repórter no portal Bahia Econômica e, atualmente, cobre Política e Cultura no portal bahia.ba. DRT: 0007543/BA

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