Publicado em 05/06/2017 às 11h00.

‘Políticos são burros em tecnologia’, diz presidente da Campus Party

Em relação ao “preconceito” contra o setor de inovação, Francesco Farrugia revelou que, "após muita luta", o evento foi aceito pela Lei Rouanet

Clara Rellstab
Foto: Carol Garcia/GOVBA
Foto: Carol Garcia/GOVBA

 

Presidente do Instituto Campus Party, evento que será realizado entre 9 e 13 de agosto na Arena Fonte Nova, em Salvador, Francesco Farrugia alfinetou os políticos brasileiros por não se atualizarem ao mundo digital. Em entrevista exclusiva ao bahia.ba, ele criticou que as ações do Legislativo ainda são baseadas na sociedade industrial.

“O que eu falei exatamente é que os políticos são burros em tecnologia, em geral (risos). O problema do Poder Executivo é outro, é que eles têm que gerir em contingência e a questão da evolução do mundo digital e da revolução digital é muito rápida. Você vê o governo nacional agora, ele tem tanto problema dele mesmo para resolver, que não pensa em mudar a educação para o mundo digital, fazer investimentos em uma start up, modificar as leis em que… Entenda, a gente tentou construir uma frente parlamentar de cidades inteligentes, para dar suporte nesse quesito a deputados e senadores de todos os partidos, e não aconteceu. As leis terão de mudar com a revolução digital”, sentenciou.

Italiano radicado na capital baiana, ele se disse pertencente de uma geração “ignorante” e se mostrou surpreso positivamente com a realização do projeto mundial pela primeira vez no Nordeste brasileiro. Em relação ao “preconceito” contra o setor de inovação, Farrugia revelou que, enfim, a Campus Party foi aceita pela Lei Rouanet.

“Mas com uma grande luta e com muito esforço para explicar que a Cultura Digital também é cultura. Que um cara que desenha games, joguinhos, é igual a um pintor. Ou que um cara como o Kobra, que é grafiteiro reconhecido mundialmente, é um artista. É muito difícil de fazer entender aos conservadores que existe uma nova cultura”, assinalou.

Confira a entrevista na íntegra:

Francesco Farruggia

 

Bahia.ba – A Campus Party é um evento internacional que já é obrigatório no calendário de eventos de tecnologia do Brasil…

Francesco Farrugia – Isso. A Campus Party nasceu há uns 20 anos, na Espanha. Temos edições em vários países: Portugal, Inglaterra, México, Argentina… Há quase dez anos viemos pela primeira vez para São Paulo e só neste ano chegamos em Salvador.

.ba – E aqui em Salvador vai acontecer em um estádio, algo que não é muito comum. Já aconteceu em alguma outra edição no mundo? Será que a atmosfera vai ser diferente?

FF –É a primeira vez. Eu acho que não vai mudar muita coisa porque os estádios só fortalecem algo que já é visto nas Campus Party: a participação. A Campus é um evento colaborativo, ou seja, as pessoas decidem tudo o que acontece. Os palestrantes, as competições e qualquer outra atividade são decididos por elas. A Campus tem 30 áreas de conhecimento, que vão de desenvolvimento, robótica, redes sociais, aeronáutica… Nós vamos ter 250 horas de palestras em cinco dias.

.ba – A Campus Party daqui esgotou todas as 3 mil barracas em menos de um mês de venda. Vocês já têm uma estimativa de quantas pessoas são esperadas ao todo?

FF – Ainda não e é difícil estimar além do que já foi vendido, porque a Campus Party tem duas áreas: essa área das barracas, que é fechada e é onde acontecem todas as palestras, todos os tipos de atividades e é apenas para quem compra o ingresso. E tem uma segunda área, que é aberta, que nós chamamos de open. Ela é gratuita e de livre acesso para todos. Na área fechada a pessoa tem que ser maior de 18 anos ou estar acompanhada pelos pais, porque convive diretamente com os outros acampantes durante os cinco dias. Eu gostaria de convidar a todos da Bahia, não só de Salvador, a participar da área aberta e gratuita. Lá a gente vai ter corrida de tron, simuladores, um setor de start ups, não só do estado, mas de todo o Brasil. Há também o campus future onde as universidades trazem todo o seu resultado de pesquisas na área de tecnologia. Lá também teremos a Olimpíada de Robótica do estado da Bahia. Os ganhadores e finalistas da competição serão encaminhados à Nacional e depois à Olimpíada Mundial.

“Você vê o governo nacional agora, ele tem tanto problema dele mesmo para resolver, que não pensa em mudar a educação para o mundo digital. […] As leis terão de mudar com a revolução digital”.

.ba – Como foi que se deu o apoio do governo do Estado ao evento? E, na prática, como é que eles entrarão com este apoio?

FF – A gente já queria fazer uma Campus em Salvador há um tempo, porque eu moro em Salvador. Eu sou presidente da Campus no mundo, mas eu moro aqui. Só que não tínhamos condições para fazer, não tinha apoio. Até que eu conheci o deputado Florence [Afonso Florence, deputado federal pelo PT], que está há dois anos trabalhando comigo para trazer a Campus para cá. Ele me apresentou ao Vivaldo Mendonça [José Vivaldo de Souza Mendonça Filho, do PSB], que é o atual secretário de tecnologia do Estado [Secretário de Ciência, Tecnologia e Inovação da Bahia] e juntos fomos falar com o Rui Costa [governador da Bahia, pelo PT]. Ele já sabia da nossa intenção e tinha conhecimento do que acontece no campo da tecnologia na Bahia e no país. O apoio do Estado é o que colocou o lugar [a Arena Fonte Nova] à disposição da gente. Além disso, eles estão liberando a captação de dinheiro e recursos privados para ajudar financeiramente a operação.

.ba – Em uma cerimônia realizada no início de abril, no Salão de Atos da Governadoria, o senhor disse que, “em todo o mundo, o Executivo costuma ser o poder mais burro quando se trata de tecnologia”. Qual dos outros dois poderes é, então, mais entendido no assunto?

FF – O que eu falei exatamente é que os políticos são burros em tecnologia, em geral (risos). O problema do Poder Executivo é outro, é que eles têm que gerir em contingência e a questão da evolução do mundo digital e da revolução digital é muito rápida. Eu vou dar um exemplo: dois anos atrás, um ano atrás, mais ou menos, eu tinha uma reunião marcada com o Haddad [Fernando Haddad, ex-prefeito da cidade de São Paulo, do PT], e ele chegou meia hora atrasado. E ele falou: ‘desculpa, eu cheguei pontualmente aqui na Prefeitura, mas aqui embaixo estava acontecendo uma guerra entre taxistas e motoristas de Uber’. E eu falei: ‘Fernando esse problema não existe’. E ele falou: ‘Como assim não existe? Venha ver’. Nós estávamos no quarto andar, olhamos para baixo e o trânsito não estava andando, porque uma das categorias havia interditado a via. Aí eu respondi que não existe porque os carros, em torno de uns quatro, cinco anos, serão todos autônomos, e não vai haver nem motorista de táxi, nem Uber! Ele disse que concordava, mas que não tinha nada que pudesse fazer no momento.

Você vê o governo nacional agora, ele tem tanto problema dele mesmo para resolver, que não pensa em mudar a educação para o mundo digital, fazer investimentos em uma start up, modificar as leis em que… Entenda, a gente tentou construir uma frente parlamentar de cidades inteligentes, para dar suporte nesse quesito a deputados e senadores de todos os partidos, e não aconteceu. As leis terão de mudar com a revolução digital.

Por exemplo, uma start up desenvolve um aplicativo para uma prefeitura melhorar o atendimento no SUS, no transporte público, na segurança ou em qualquer coisa. Mas não é o suficiente: a prefeitura tem que abrir uma licitação… mas, gente, esses são produtos únicos! Não são obras que você tem que abrir uma licitação, tem que ser feito rápido. Nós ainda temos leis da sociedade industrial enquanto, na verdade, já estamos em um mundo digital. A velocidade dos procedimentos, a burocracia, tudo atrapalha, porque a tendência é que essas start ups sejam feitas por dois garotos que não têm uma empresa (risos), eles acabam não tendo tempo, não tendo a capacidade de se envolver totalmente em um aplicativo que, se saísse do papel, poderia mudar a vida de um cidadão

Então, tudo isso atrasa muito. Eu acho que algumas coisas até estão fazendo. Por exemplo, o Estado da Bahia está fazendo muita coisa estratégica, que é resultado de um amadurecimento, como o apoio a um evento como a Campus Party. Me surpreendeu que o Rui Costa fosse tão informado sobre esse tipo de problema.

Foto: Divulgação/Raphael Leite/Campus Party
Foto: Divulgação/Raphael Leite/Campus Party

 

.ba – Ano passado vocês tiveram um problema com a captação da Lei Rouanet. Ainda há preconceito e dificuldade em entender a Cultura Digital como um tipo de cultura como qualquer outro?

FF – Não chega a ser preconceito. O problema é que os velhos, como eu, são ignorantes (risos). Não é preconceito, é ignorância em não entender o que está acontecendo com a garotada, qual é a cultura. Entender que hoje se vende mais e-books do que livros de papel, não entender que um youtuber está fazendo comunicação audiovisual e pensar que só o cinema tradicional é comunicação audiovisual. Tudo isso é muito difícil de fazer entender aos velhos.

Mas tenho uma boa notícia: esse ano a gente conseguiu a Lei Rouanet (risos). Mas com uma grande luta e com muito esforço para explicar que a Cultura Digital também é cultura. Que um cara que desenha games, joguinhos, é igual a um pintor. Ou que um cara como o Kobra, que é grafiteiro reconhecido mundialmente, é um artista. É muito difícil de fazer entender aos conservadores que existe uma nova cultura.

Por exemplo, eu não sei se você sabe, mas existe uma atividade chamada casemod. Na minha época, eu que sou velho, a gente tunava os carros, modificava a carroceria, a suspensão, trocava o pneu, modificava o motor… a garotada agora quer modificação nos computadores. Fanáticos de casemod, no mundo, já são 70 milhões. Tem gente que gasta R$ 30 mil por ano para modificar, para tunar seu computador. E tem um garoto que se chama Marcel Barreto, que é baiano, de uma cidadezinha que eu nunca lembro o nome, perto de Itabuna, no interior da Bahia, e ele é bicampeão mundial de casemod. Ele é o melhor do mundo e é baiano! Faz coisas maravilhosas. Está agora na Coreia competindo pela terceira vez o mundial e o pessoal não sabe disso. Se você colocar no Google, ‘Marcel Barreto’, você vai ver o que ele faz. É muito difícil fazer entender que existem essas coisas novas dentro do mundo tradicional da cultura, mas mais difícil era fazer isso há 20 anos.

.ba – Você já disse que o presidente Lula foi crucial para trazer a Campus Party para o país, em 2008. O contexto político atual, com a saída do PT da Presidência e a onda conservadora que tem tomado conta, não só do Brasil como do mundo,vai interferir na manutenção do evento nos próximos anos?

FF – Não sei se o contexto político, mas talvez o contexto econômico pode influenciar. Quando a economia não vai bem, não vai bem nada para ninguém. A parte política é um problema porque não tem estabilidade. A gente não pode costurar estratégias com ministérios que são fundamentais como o Ministério da Ciência e Tecnologia ou Ministério do Planejamento, porque eles estão mudando constantemente. Você não consegue planejar de uma maneira orgânica.

Quando você tem estabilidade política, tem um progresso econômico e tudo fica mais fácil. Eu acho que a gente não vai ter problema porque é um evento internacional já firmado e reconhecido, mas muitos eventos de qualquer categoria terão anos difíceis. Eu acho que, quando você tem um projeto que funciona, ninguém de qualquer partido vai querer ser inimigo disso. Não acho que é uma questão política, mas uma questão de como vai o país. E o problema da economia não é só brasileiro, é de outros países também.

“Estamos fechando com uma surpresa que ainda não posso confirmar. Mas é muito bacana!”

.ba – Recife recebeu, em abril, uma Comic Con, e agora a Campus Party chega a Salvador. O que aconteceu para os empresários passarem a enxergar o Nordeste como um palco potencial para eventos voltados ao público geek ou aficionado em tecnologia?

 FF – Não sei, eu acho que estão se dando conta que o mundo está mudando. E isso não quer dizer que coisas regionais como Carnaval ou como São João sejam suspensas. São coisas que sempre vão ter sucesso. A garotada hoje quer integrar isso com coisas novas e as coisas novas são essas. A Campus não é uma feira, porque não se vende nada, é um intercambio de conhecimento. Eu acho que a garotada gosta porque encontra algo que não vê nas suas escolas, nas universidades, nas suas casas…

.ba – Quatro nomes já foram confirmados na edição de Salvador. Dá para adiantar mais alguém?

FF – Ah, estamos fechando com uma surpresa que ainda não posso confirmar. Mas é muito bacana! Os contratos estão sendo assinados, então vamos deixar o mistério… Mas vai deixar muita gente feliz!

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