Publicado em 22/05/2017 às 15h39.

Reynivaldo Brito: ‘Doutor Google é senhor absoluto do jornalismo hoje’

O jornalista, que colocou à disposição todo o seu acervo em um blog, comenta as diferenças entre as épocas e relembra diversas histórias de bastidores da profissão

James Martins
Foto: Izis Moacyr / bahia.ba
Foto: Izis Moacyr / bahia.ba

 

O jornalista Reynivaldo Brito se aposentou após mais de 40 anos de profissão. Estreando em redações em pleno período militar e, mais ainda, antes da internet e do Google, ele viveu um outro ambiente na profissão, onde se saía de ônibus para fazer pautas sobre assuntos ou personalidades de quem, às vezes, as únicas informações disponíveis vinham de recortes dos arquivos do próprio jornal. Pé-quente, deu matéria de capa em A Tarde antes mesmo de ser oficialmente contratado – uma fotografia ao lado de ninguém menos que o cineasta italiano Pier Paolo Pasolini, a quem perseguiu pela orla de Salvador, simboliza o feito.

Aposentado, mas não parado. Para não ficar em casa “mudando o jarro de posição”, Reynivaldo decidiu digitalizar todo o seu acervo de trabalho, que inclui também uma colaboração de 17 anos com a revista Manchete, e colocá-lo à disposição em um blog, que serve como verdadeiro repositório jornalístico das últimas décadas e onde desfilam personagens como Dorival Caymmi, Antônio Carlos Magalhães, Glauber Rocha e Mãe Menininha do Gantois. “Hoje, com essa facilidade toda, ninguém sai [das redações]. É tudo na internet”, alerta.

Ao comparar as épocas, ele, que curtiu bastante a boemia e o desbunde baiano dos anos 1970, acha, no entanto, que é besteira querer restabelecer o mesmo clima nos dias de hoje. Ou cobrar dos jovens uma postura mais farrista. “O jornalista gastava o dinheiro todo, às vezes até faltava dinheiro em casa, nos cabarés”, diz. Sobre Glauber Rocha, uma lembrança: “Quando eu bati na porta, que ele abriu, estava nu! E ele era cabeludão, parecendo um macaco. Nu! Aí eu fiquei assim na porta… Você imagine se fosse uma moça. E ele: ‘Entre’! Eu entrei… (risos)”.

São muitas as lembranças e os toques que fazem dessa entrevista um compromisso, um encontro inadiável, não apenas com a memória recente da história do país e, em particular, do jornalismo, mas também com o futuro. De ambos.

Leia a conversa completa abaixo:

Foto: Izis Moacyr/ bahia.ba
Foto: Izis Moacyr/ bahia.ba

 

bahia.ba – Reynivaldo, para começar, fale sobre sua formação e início de carreira. Como foi?

Reynivaldo Brito – Eu ia fazer medicina, imagine!, mas percebi que não daria, de jeito nenhum, para medicina. Aí, ainda no cursinho pré-vestibular, eu decidi que ia fazer jornalismo. Me inscrevi e passei em último lugar. Era classificatório, e eu passei em último. Mas, graças a deus, dos meus colegas eu fui o que mais se destacou.

.ba – Em que ano isso?

RB – Rapaz, eu sou ruim de ano, mas foi na década de [19]60, porque eu peguei a revolução na faculdade. Eu inclusive fiz Jornalismo e Ciências Sociais, que era o curso mais procurado pelos estudantes ligados à esquerda. Fui suspenso, por dois anos, por causa da minha atividade no movimento estudantil, e depois retornei e concluí. Então, eu sou bacharel em Jornalismo e bacharel em Ciências Sociais. E aí fui procurar uma atividade na área de jornalismo e terminei indo para uma assessoria de imprensa, primeiramente, lá na Secretaria de Minas e Energia. O secretário era um primo meu, Oliveira Brito, que tinha sido ministro da Educação. Mas a revolução o cassou também, junto com Navarro de Brito, no governo Luiz Viana. E o secretário que chegou falou com Fernando Rocha, que era do jornal A Tarde, que eu estava me perdendo ali, que devia ingressar no jornalismo e Fernando Rocha me levou para A Tarde e lá eu comecei.

.ba – Que era o nosso maior jornal!

RB – O maior jornal e tinha muito prestígio. Hoje A Tarde está um simulacro do que era, não é? Mas eu fui para lá e lá eu fiquei quase 40 anos. Comecei como repórter e terminei como editor-geral. E me aposentei com essa mudança, dos netos de Simões Filho, que chegaram aí para acabar com o jornal.

.ba – E, vindo bem mais para cá, para depois voltarmos ao início, por que você decidiu organizar suas matérias em um blog? E o que mudou, no jornalismo, com o advento da internet? Qual era a dificuldade de ser jornalista antes do Google?

RB – Muita dificuldade. Eu vi o primeiro computador nos Estados Unidos, em 1970. Era enooorme! Eu fiquei olhando, entusiasmado, como é que aquela máquina fazia esse negócio. Hoje em dia o telefone celular faz tudo, a gente tem um computador nas mãos. Então, naquela época, rapaz… vou citar o caso da morte do presidente Tancredo Neves. Antes de meia-noite fechava o jornal. Tancredo Neves levou vinte e tantos dias para morrer, né? A gente estava lá na redação e, quando dava meia-noite, o Antônio Brito, que era o porta-voz dele, dizia “o presidente Tancredo Neves apresentou melhoras e não-sei-o-que…”. Resultado: a gente tinha que entrar no jornal e consertar tudo na mão. Foi uma época muito difícil! E, antes disso, era pior ainda. Por que a gente ia pro arquivo pegar recortes de jornal, muitas vezes imprecisos, não tinha a facilidade do telefone, era telefone fixo e a gente esperava, às vezes, 20 minutos pra dar uma linha! Hoje, com um tapa a gente faz um jornal. Eu sou capaz de fazer um jornal sozinho! Aí, quando eu me aposentei, como sou muito inquieto, não quis ficar em casa mudando o jarro de lugar (risos) e, outra coisa, o mercado se fecha quando você se aposenta. Então eu pensei: “O que é que eu vou fazer?”. Aí olhei para aquelas revistas Manchete, onde trabalhei por 17 anos, simultâneo com A Tarde, e, mesmo ocupando cargo de chefia sempre gostei de fazer reportagem. Quando tinha uma reportagem interessante eu mesmo saía para fazer. Aí, sentei aqui e decidi colocar tudo que eu fiz na internet. “Eu mesmo vou colocar”. E você não sabe a dor-de-cabeça que foi… (risos). E eu não tomei curso nenhum, fui brigando com o scanner, por que não cabe uma folha da revista, tive que repartir, mas sei que consegui.

Me aposentei com essa mudança, dos netos de Simões Filho, que chegaram aí para acabar com o jornal.

.ba – Então você botou a mão na massa mesmo, não terceirizou?

RB – Não. Mas, quem fez o blog foi minha mulher, comigo ao lado dizendo como queria, por que não sou muito bom de internet.

.ba – E você também foi professor, não é, de jornalismo?

RB – Sim, ensinei na Ufba por mais de 15 anos. Muitos profissionais que estão aí foram meus alunos. Depois eu saí por que… [escolhendo as palavras] é difícil ser honesto nesse país.

.ba – O que houve?

RB – Quando eu fiz o concurso para a Ufba era uma vaga para quatro concorrentes. E eu passei. E, como eu trabalhava em jornal, optei por 20 horas, e ganhava metade do valor. Quem ensinava 20 horas era para ter uma, no máximo duas matérias. Mas, como eu divergia do pessoal, que tinham uns esquemas que só serviam para cooptar alunos para militância, e eu não gosto de manipulação de pessoas, então comecei a brigar e comecei a ser boicotado. Resultado: todo semestre botavam mais matérias para eu ensinar. Teve um dia que botaram quatro matérias pra eu ensinar. Eu sendo de 20 horas. E os de 40 horas, que manipulavam lá, ensinavam uma matéria. Então eu escrevi um pedido de demissão, coloquei dentro da caderneta e deixei lá. Perdi tudo na universidade, FGTS…

.ba – E sua estreia em A Tarde, antes mesmo de ser contratado, foi já naquele dia da visita de Pasolini aqui em Salvador. Como foi que aconteceu?

RB – Rapaz, eu tava chegando, botei um paletó, meio surrado, meio apertado, e quando cheguei lá, era de tarde, não tinha ninguém no jornal. Dr. Cruz Rios chegou e disse “manda o menino lá”, comigo. E eu pensando “eu não sei italiano, não aprendi inglês” -por que a minha geração era contra os americanos- “o que é que eu vou fazer atrás de Pasolini”? (risos) Aí fui ao arquivo do jornal, peguei uns recortes, li sobre a vida dele e me mandei pra lá com um fotógrafo de polícia. Naquela época tinha fotógrafo exclusivamente de polícia. E, ele, João Alves, que já morreu, andava com uma pistola na cintura. Quando chegamos no Hotel da Bahia, no balcão de informações, ói Pasolini! Eu conferi na foto que levei: É ele! Aí virei pra João e pedi pra tirar várias fotos que, mesmo que a gente não conseguisse falar nada, tinha as fotos. Ele aí fotografou Pasolini. E Pasolini subiu o elevador, eu tentei subir junto e ele não deixou (risos). Fiquei por lá e tal… E aí depois ele desceu com a Maria Callas, com quem ele namorava, a grande soprano, nós seguimos o carro deles, que foi para os lados da orla, e a certa altura ele desceu: “PolicIa, policIa” [destaca a pronuncia com ênfase no “ia”]. E, com isso, já deu para eu fazer um textozinho. Voltei pro jornal, onde já tinham feito a parte de pesquisa, e eu fiz a matéria. Tenho até uma foto com ele. E acabou sendo a capa do jornal! Quer dizer, no meu primeiro dia, dei a manchete com primeira capa! Uma sorte danada! Você vê o que é jornalismo, tem muito de sorte. Tinha um fotógrafo aqui, chamado Leão Rosemberg, pouco se fala nele, mas é o cara que fotografou a Bahia nos anos 1960/70. Ele dizia: “o fotógrafo bom é aquele que carrega a máquina”. Por que, se você estiver com a máquina, um dia você vai fazer uma grande foto.

.ba – Ao te ouvir falar sobre a redação vazia, fiquei pensando em uma diferença que talvez seja vantajosa para o jornalismo do passado: os jornalistas na rua. Hoje, em geral, o jornalista é mais de redação, alguns nunca saíram a campo. Tudo muito chupado um do outro, pela internet. Isso enfraquece o jornalismo?

RB – Empobreceu o jornalismo. Você vê o Jornal Nacional, é a repetição do que aconteceu de manhã. É o mesmo jornal. É uma preguiça muito grande! Ninguém vai ouvir ninguém. Eu acho que o jornalismo perdeu uma… No meu tempo a dificuldade era grande, a gente ia de ônibus, ou na caminhonete que distribuía o jornal. Depois, melhorou um pouquinho, ia de vez em quando de táxi. Hoje, com essa facilidade toda, ninguém sai. É tudo na internet. E no Google. Doutor Google! Doutor Google é o senhor absoluto do jornalismo hoje.

Foto: João Alves 1970 / A Tarde
Com Pasolini, no Hotel da Bahia. 1970, pé-quente! (Foto: João Alves 1970 / A Tarde)

 

.ba – E a diferença de perfil dos jornalistas? Quando os mais antigos querem afrontar os d’agora costumam lembrar que naquele tempo todo jornalista bebia, fumava… o perfil boêmio do jornalista x os meninos do iogurte. É isso mesmo?

RB – Isso é besteira. Mas, eu peguei essa fase da boemia e fiz muita farra. Era por que os jornais e as rádios eram concentrados no centro da cidade. Você tinha ali Jornal da Bahia, Diário de Notícias…, Estado da Bahia e Rádio Sociedade no mesmo prédio, ali na Carlos Gomes, e também A Tarde, Rádio Excelsior… Resultado: tudo junto. Aí, quando fechava o jornal, todo mundo ia farrear no bar Cacique, na Praça Castro Alves. Os mais farristas ainda ficavam para ir ao puteiro, que ali era uma zona de putaria muito grande… No puteiro tinha até orquestra, rapaz! E lá para as duas horas da manhã as casas menores fechavam e abria o grande cabaré que era o Tabariz, ali ao lado de onde hoje é o Glauber Rocha, que tinha um grande dancing. Então as putas saíam dos cabarés e iam para lá… Naquela época as meninas não eram fáceis e todo mundo tinha que ir é pro puteiro mesmo (risos). O jornalista gastava o dinheiro todo, às vezes até faltava dinheiro em casa, nos cabarés.

.ba – E quem era os maiores putanheiros do jornalismo da Bahia?

RB – Ah, Jeová de Carvalho, Silva Filho… muitos. Todos eles, daquela geração, um pouco mais velhos do que eu, todos eram altamente farristas. E saíam de lá e ainda iam pra Sete Portas, comer feijoada… E naquela época tinha feijoada embaixo do Elevador Lacerda, onde também tinha um cabaré famoso, chamado “Saionara”, com umas meninas muito bonitas, vindas do Rio Grande do Sul, Santa Catarina (risos). E, antes disso, tiveram as polacas, nos anos 50.

O jornalista gastava o dinheiro todo, às vezes até faltava dinheiro em casa, nos cabarés.

.ba – Uma coisa curiosa que li numa matéria sua antiga, e que me fez pensar em como parece às vezes que a história se repete mesmo, foi que no carnaval de 1981 o então governador Antônio Carlos Magalhães decretou um dia a mais, que foi a quinta. Este ano, 2017, o neto dele decretou mais um dia, que foi a quarta…

RB – [interrompendo] Daqui uns dias vai ser um mês de carnaval!

.ba – Mas, como era cobrir carnaval naquela época?

RB – Eu cobria pra Manchete e tem um negócio engraçado: as mulheres ficavam mais nuas do que hoje. Elas botavam os peitos de fora brincando. Teve um ano aí que foi as mulheres tudo com os peitos do lado de fora nos trios elétricos. Mas, por outro lado, o carnaval era comportado. Tinha uma briga ou outra, mas era coisa muito rara. Tinha ladrão, batedor de carteira, evidentemente, mas você andava pelo meio do povo numa tranquilidade danada e não tinha esses absurdos de hoje em dia que são os camarotes. Eu sou contra camarote. Acho um absurdo, não tem nada a ver com carnaval. Os caras ficam tocando música eletrônica enquanto o carnaval tá lá embaixo. Privam o povo de espaço. Ninguém pode passar numa avenida dessas no carnaval. Eu mesmo era muito carnavalesco. Agora, para cobrir a gente fazia as pautas, designava que ia cobrir os blocos de trio, os afoxés etc. Geralmente era um par: repórter e fotógrafo. E depois montávamos o jornal. E todo mundo ficava também responsável por recolher as curiosidades, que eram muitas…

.ba – Você lembra alguma?

RB – O desfile das bichas lá na Praça Castro Alves, quando surgiu, aquilo era uma coisa curiosa. E tinha uma bicha famosa aqui, na época, argentina, chamado Fernando Noy – aquele cara escandalizou! Uma vez ele apareceu com uma fantasia com a bunda toda de fora.

.ba – Por falar naquela época, você tem algumas histórias de matérias com Caetano Veloso, né?

RB – Uma matéria interessante com ele, que ainda tenho até gravada em cassete, é quando a esquerda do sul do país começou a esculhambar com ele e ele sofreu como o diabo. E eu tenho uma entrevista feita na casa dele, em Ondina, ele chorando… sentado no chão e chorando… Quem mais esculhambava com ele era aquele Maurício Kubrusly, que na época era crítico musical e socava o pau em Caetano.

Foto: Izis Moacyr / bahia.ba
Foto: Izis Moacyr / bahia.ba

 

.ba – E, nessas entrevistas, às vezes em momentos conturbados, você já passou algum perrengue, já teve dificuldades para chegar?

RB – Eu chegava com facilidade. Não é vaidade não, mas eu nunca tive dificuldade de chegar. As pessoas sempre me respeitaram. Só que, uma vez, quando a Lucinha Lins largou o Ivan Lins, foi um escândalo! Ela fugiu com um bailarino e o pessoal dizia que o bailarino era gay (risos). E ela veio aqui pra Bahia. Quando eu fui abordá-la, ela não quis de jeito nenhum. Aí eu sentei, chamei para tomar um café e tal… e ela perguntou se eu iria tratá-la bem, preocupada. “Como é seu nome?”. Eu: “Reynivaldo Brito”. E ela disse: “Eu vou lhe chamar de Brito”. E nesse papo eu já estava entrevistando, por que eu tenho uma coisa que eu não tomo muita anotação, só de uma frase assim, que eu queira botar como declaração. E aí conversei com ela bastante e fiz uma matéria respeitosa, entendeu? Eu trabalhava na Bloch Editora, que tinha 54 revistas, inclusive uma chamada “Amiga”, de fofoca de artistas. Menino, o cara pegou meu texto, virou de cabeça pra baixo, fez uma fofoca horrorosa (risos). Felizmente eu nunca mais encontrei com Lucinha Lins (mais risos). Ô dia que eu fiquei com raiva! O editor, muitas vezes, acaba com o texto que você faz.

.ba – E caso de entrevistas que não rendem?

RB – Ah, tem gente que só responde “sim”, “não”. Gil é o contrário. Gil é uma das pessoas que mais falam… Você tem que mandar parar! (risos). Fala, fala, fala… se deixar ele fala o dia todo (mais risos). Agora, tem gente que é monossilábico. Por exemplo, João Gilberto.

O editor, muitas vezes, acaba com o texto que você faz.

.ba – Como foi sua história com João?

RB – Eu peguei ele pelo braço e sentei no sofá, lá no aeroporto, três horas da manhã. A história foi que o Mick Jagger tinha dado um pontapé na rótula de um fotógrafo lá na Inglaterra. E diziam também que João Gilberto tinha maltratado uma pessoa no Rio. Aí a Manchete me mandou esperá-lo. Mas eu já fui preparado, disse “ói, se prepare, porque se ele me der um pontapé eu vou rumar o pontapé nele; se ele me der um tapa, vou rumar um tapa nele” (risos). Comigo não tem esse negócio de repórter estar apanhando não, oxe! Aí, quando ele chegou, peguei-o pelo braço, sentei no sofá, ficamos lá conversando… E teve uma cena que nunca esqueci: uma hora daquelas, tinha uma menina, sozinha, esperando para entregar uma rosa a ele. Sozinha. E naquela época… que hoje em dia é fácil chegar ao aeroporto, mas, naquela época! Aí eu disse “entregue a sua rosa a ele”. Ela entregou e ele só fez [se curva, em sinal de reverência]. E eu entrevistei ele, numa boa…

.ba – E ele falou?

RB – Falou, aquele negócio dele… Agora, difícil né? É uma das pessoas difíceis de entrevistar.

.ba – Mas não se recusou nem te tratou mal, não é?

RB – Não, de jeito nenhum. Tomou um choque assim, né?

Gil é uma das pessoas que mais falam… Você tem que mandar parar! [risos]. Fala, fala, fala… se deixar ele fala o dia todo [mais risos].

.ba – E Glauber Rocha, nu, no Hotel da Bahia? Aí o choque foi seu?

RB – Sim, eu marquei com Glauber Rocha no Hotel da Bahia. Cheguei e ele me autorizou subir. Quando eu bati na porta, que ele abriu, estava nu! E ele era cabeludão, parecendo um macaco. Nu! Aí eu fiquei assim na porta… Você imagine se fosse uma moça. E ele: “Entre”! Eu entrei… (risos) Aquela figura… Eu sentei em uma cadeira… e ele nu. Aí ele foi lá na cama, assim, pegou um short azul, meio vagabundo, e começou a falar de Geisel. Ele era doido por Golbery do Couto e Silva. Golbery era uma pessoa inteligentíssima e que era o cérebro do fim da revolução. E Glauber defendia Golbery e o pessoal do Rio e de São Paulo socava o cacete nele, dizendo que ele estava virando a folha. Ele dizia que Golbery era quem iria fazer a abertura política etc. E ali eu estava entrevistando, entrevistando, e ele se aproximou da janela e tinham umas senhoras no prédio defronte que, quando viram aquele homem nu, pá, fecharam a porta (risos). E eu nem olhava pra ele, aquele homem nu. Uma hora o calção caiu e ele se abaixou pra pegar (mais risos)… Foi aí que João Ubaldo chegou e disse: “Tome vergonha, Glauber, vista essa porra desse short aí, rapaz!”.

.ba – E Dorival Caymmi, com quem você fez uma longa matéria cujas fotos hoje são clássicas, como foi?

RB – Ah, Caymmi eu peguei em casa, ali em Amaralina, e o levei a Itapuã, peguei o violão de minha mulher, que estava aprendendo, e levei-o para o Abaeté, Bonfim… passei a tarde toda com ele. Era uma figura doce.

.ba – E você chegou a sofrer censura nos tempos da ditadura? Teve dificuldades com políticos?

RB – Na verdade não.

.ba – E de ACM, alguma lembrança?

RB – Eu nunca tive problema com ele, mas também nunca me aproximei do carlismo não. Embora o tenha entrevistado muitas vezes. Me dava muito bem com ele, mas mantive uma certa distância da política.

Foi aí que João Ubaldo chegou e disse: ‘Tome vergonha, Glauber, vista essa porra desse short aí, rapaz!’

.ba – E como é que você vê a política hoje em dia?

RB – A grande decepção são as pessoas que participaram do movimento armado, do movimento estudantil… Pra depois cair na roubalheira? Quer dizer, tudo aquilo que a gente era contra, os caras assumiram o poder e fizeram pior. Não fizeram nem igual, fizeram pior: sistematizaram o roubo. O roubo virou uma instituição. E se você não aceita, os devotos dizem que você é fascista. Primeiro era coxinha, agora é fascista (risos). Eu acho que a Lava Jato é um exemplo pro mundo. Quem imaginava ver Marcelo Odebrecht na cadeia? Olhe, eu dava assessoria à Fenagro e Marcelo é criador de gado de raça. Quando esse cara chegava lá, rapaz, parecia que chegava o rei da Inglaterra. Uma arrogância danada! Hoje tá lá na cadeia…

Foto: Izis Moacyr / bahia.ba
Foto: Izis Moacyr / bahia.ba

 

.ba – Tem uma matéria sua de 1978 cujo título é “A morte dos sobradões do Pelourinho”. Esse assunto voltou à imprensa recentemente, por causa da queda de um casarão na Soledade, onde inclusive morreram pessoas. São quase 40 anos de distância. A pergunta é: a Bahia não melhora, não anda?

RB – Não anda. Eu chamo o Iphan de o arquivo morto do patrimônio. O Iphan só faz catalogar, e pouca coisa faz pelo patrimônio público. Só faz dizer “você não pode fazer isso, não pode fazer aquilo” e o casarão vai ficando até que cai a parede, cai tudo. É o cemitério do patrimônio histórico.

.ba – Você andou muito por ali, pelo Pelourinho?

RB – Claro. Fui até assessor do professor Vivaldo da Costa Lima. E eu me dava muito com Mestre Pastinha e com a mulher dele dona Romélia.

.ba – Que era baiana de acarajé.

RB – Era baiana de acarajé e fazia um acarajé horroroso (muitos risos)! Mas era minha amiga, entendeu?, e eu ajudei muito Pastinha. Quem arranjou uma aposentadoria pra Pastinha fui eu com Osvaldo Gomes, na prefeitura de Mário Kertész. Eu sentado lá, ela disse “meu filho, nós estamos passando necessidade”. Eu, repórter, dei um dinheirinho a ela e disse “vou arranjar uma aposentadoria pra Pastinha”. Chega me emociono quando eu falo [mostra o braço arrepiado]. Fui à Praça Municipal, Osvaldo Gomes era um jornalista, assessor de imprensa de Mário Kertész, eu contei a história a ele, que falou com um vereador e se arrumou uma pensão pra Pastinha. Ele viveu os últimos anos dessa pensão.

.ba – Mas, mesmo assim, viveu mal, não é? Por que tem um depoimento dela, Romélia, dizendo que, quando ele morreu, enviaram um caixão de indigente e ela então comprou um outro, digno, e o pagou no tabuleiro do acarajé.

RB – É, o grande sofrimento do Pastinha foi quando ele foi tirado da casa dele, pelo pessoal do Sesc. E, como ele ficou cego, botaram ele em um casarão ali perto de onde tinha o Instituto Nina Rodrigues. Ele passava o dia todo em cima de um banquinho, com as perninhas cruzadas… Aí quando os repórteres chegavam pra fazer reportagem, ela me ligava: “Reynivaldo, tem um repórter aqui, é fulano, eu dou entrevista?”. Eu digo: “Dê”. E os caras ficavam retados comigo. Mas não era eu quem proibia de dar entrevista, não. Ela me consultava por que me respeitava, confiava.

.ba – Você falou que o A Tarde hoje é um simulacro do que foi. E o jornalismo atual, como você o vê?

RB – Hoje, o que prevalece, como comunicação mesmo, são as redes sociais. Depois das redes sociais você lê um ou outro artigo, né? E nas redes sociais as pessoas também compartilham os artigos que saem nos jornais eletrônicos. Então, o jornalismo hoje precisa se reinventar, tem que sair na frente. E, para sair na frente, só na internet. O jornalismo impresso você vai se preocupar em ler os artigos de fundo. Se os artigos de fundo vierem pra cá [internet], vai acabar mais rápido ainda com os jornais. Os jornais estão se acabando no mundo inteiro.

.ba – E a situação específica do jornal A Tarde, que foi o maior do estado?

RB – O jornal A Tarde foi o maior do Norte/Nordeste, por muitos anos. Tirava cento e tantos mil exemplares. Hoje em dia não sei se tira 10 mil, entendeu? E tinha prestígio fantástico. O que A Tarde dizia… Quando eu chegava numa coletiva, quase só davam atenção à TV Aratu, na época, e ao jornal A Tarde. Se não chegasse o jornal A Tarde eles não começavam.

.ba – Mas, além dos efeitos naturais da internet, aconteceram também erros internos, administrativos, que acarretaram a decadência?

RB – Muitos! Por que um jornal vive de uma coisa chamada credibilidade. E credibilidade lhe é dada pelas pessoas que dirigem o veículo, seja ele qual for. Com essas mudanças aí, A Tarde perdeu credibilidade. O Sílvio Simões, que assumiu, é um capitalista que queria ser socialista (risos). Uma vez eu disse a ele “distribua as ações com a gente, você não é socialista?”. E ele ficou dando risada. Então, Silvio Simões não tem nenhuma… Sair das mãos de Dr. Jorge Calmon para as mãos de Silvio Simões, é uma diferença de água pro vinho. Aí botaram pra fora os editores experientes e colocaram um monte de meninos, pra pagar menos, trouxeram uma empresa de Brasília pra fazer uma auditoria… essa empresa fez uma auditoria maluca que ninguém entendeu nada… e não implantou nenhuma novidade que viesse salvar o jornal, pelo contrário, ajudou a afundar o jornal.

.ba – E dos políticos que você entrevistou, ficou alguma história engraçada pra gente encerrar?

RB – Eu evitei bastante essa política partidária, mas lembro do dia em que Collor de Melo esteve no jornal. Ele pegava sua mão e fazia assim ói [sacode bruscamente]. Aí, quando ele me cumprimentou, chegou a me doer o braço. E ele é grandão! Aí Dr. Jorge Calmon me chamou e perguntou: “O que é que você achou?”. Eu disse: “Eu achei que é um maluco!”. E eu também perguntei a ele: “E a impressão do senhor?”. Ele: “Minha impressão também é essa – um doido!”. Oxe, foi dito e certo.

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