Roberto Sant’Ana: ‘Elis era uma filha da p*, mas é a maior cantora do Brasil’
Produtor conta como descobriu Alcione, Emílio Santiago e Fafá de Belém, fala sobre projetos e câncer e reclama: “Vivo de esmolas”
Aviso! Essa entrevista pode causar irritação na pele (e nas almas) de pessoas com mentalidade epidérmica. Em tempos de politicamente correto, Roberto Sant’Ana, um dos mais importantes produtores culturais da história do país, teima em falar o que pensa. E sem papas na língua. E, de novo, seu vocabulário pode assustar. “Viado”, por exemplo, é uma palavra que não sai de sua boca. Seria algum desejo oculto? Ele, que começou no teatro, ou melhor, “no Teatro Vila Velha”, como gosta de enfatizar, é responsável por algumas das melhores descobertas e lançamentos da música brasileira como Elomar, Emílio Santiago, Alcione, Fafá de Belém e Quinteto Violado.
Lançou também a Axé Music, através dos discos “Magia”, de Luiz Caldas, e “Mensageiro da Alegria”, de Gerônimo, e, na contramão, registrou para sempre as vozes de três dos nossos maiores poetas: Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes e Mário Quintana. “Drummond bebia mais que Vinícius. A gente precisava levá-lo escorado até o carro no final da gravação”, diz. E essa é apenas uma das surpreendentes revelações desta entrevista exclusiva ao bahia.ba – resultado de três horas de conversa. Difícil (embora inevitável) foi cortar trechos.
Aqui Roberto conta, com riqueza de detalhes, como evitou que Alcione fosse demitida da Polygram antes mesmo de iniciar sua carreira. Fala da relação difícil com Elis Regina: “Vivia pedindo minha cabeça. Era uma filha da puta! Morreu, vira deusa”. E, ao mesmo tempo, diz porque a considera a maior cantora brasileira de todos os tempos. E é nessa aparente dicotomia que está uma chave para ler bem e proveitosamente a presente entrevista: sem simplificações maniqueístas. “Já votei em Lula e em Paulo Souto”, diz ele, que expõe também seu “antipetismo consagrado” e devido ao qual os desafetos tentam carimbá-lo, mesmo com o seu passado comunista, como “de direita”.
Livre, inocentado de um processo que durou 11 anos, acusado de desvio de verba de um projeto cultural que é o seu xodó, as Domingueiras, Roberto Sant’Ana descobriu recentemente um câncer de próstata que o fez chorar madrugadas a dentro e até mesmo questionar a justiça divina. Mas, com sua voz firme e um temperamento que pode ser tomado por excessivamente viril, grosso mesmo, Roberto sorri. Sorri franco e sempre. E seu sorriso guarda e revela algo de extremamente infantil e, portanto, puro e delicado, em sua alma. É simbólico que a abreviatura de seu nome seja “RS” – sinônimo de riso na internet. Fica a dica. Como já foi dito, a entrevista durou três horas e, pela importância e interligação de tudo, mesmo cortando com pena alguns trechos, o resultado é enorme. Mas vale a pena!
Confira a íntegra abaixo:
bahia.ba – Então, para começar, você agora é um homem livre, não é, daquele processo por causa das “Domingueiras”?
Roberto Sant’Ana – Sou livre da sanha criminalista do PT, de todos os seus ladrões e de todos os seus viados. É o único partido que tem ladrões e viados (risos).
.ba – O único? Os outros não têm?
RS – Os outros também têm, mas em menor quantidade.
.ba – Menor quantidade de ladrão ou de viado?
RS – Dos dois (mais risos).
.ba – Mas, de qualquer forma, fale um pouco sobre esse processo, para os leitores entenderem. O que houve?
RS – Bom, eu saí do governo, montei minha empresa, criei um projeto que já estava em minha cabeça há muito tempo, inscrevi o projeto, consegui aprovação, normal, sem nenhum prestígio pessoal, consegui patrocínio da Coelba e da Ebal [Empresa Baiana de Alimentos S.A.] e fui a campo. Quando você escreve o projeto, você se acha o intelectual retado, você sabe tudo… Nada! O povo do sertão me ensinou muita coisa [durante o processo]. Então eu fui acertando o projeto. No segundo ano é que ele foi inteiro mesmo. Fiz esse projeto durante cinco anos e ia fazer o sexto, o décimo, o vigésimo…, se Márcio Meirelles deixasse. Eu nunca falei no nome desse viado, mas agora eu falo, porque estou liberado. Eu estava sub judice então não queria… Mas ele, que fez uma péssima administração na Secretaria da Cultura, tomou posse, me convidou para a posse, me abraça e me diz: “Vou precisar muito de você”. Então eu liguei para minha sócia no dia seguinte e disse a ela: “Nadjaí, encontrei com Márcio na posse, ele me abraçou e disse que ia precisar muito da gente”. Ela disse: “É?!”. E eu: “É, por quê?”. “Tô aqui na empresa esperando os auditores fiscais da Secretaria da Fazenda. Nós estamos sendo auditados, acusados de desvio de verba”. Fui para a empresa e ela me deu o documento pra dar entrada… [estavam lá] advogado, auditor fiscal…, não sei se tinha ‘secreta’ do PT. Me deram o papel: eu estava sendo auditado por desvio de verba do projeto para dar de presente ao presidente da Ebal. Você me apresente o presidente da Ebal, que até hoje eu não conheço (risos). E se eu fosse roubar eu ia roubar pra mim. Por que eu ia roubar para o presidente da Ebal? E depois, eu queria que eles me ensinassem como é que tira dinheiro de um projeto que tinha como exigência básica uma conta exclusiva em um banco de confiança do governo; só podia ser movimentada essa conta através de notas fiscais… Não tinha como sair dinheiro. Aí, essa coisa rolou 11 anos, rapaz! 11 anos! Eu levei ao promotor 12 pastas de xerox de todas as prestações de contas aprovadas pelo FazCultura, pela Secretaria da Fazenda e pelo TCU [Tribunal de Contas da União]. Acho que ele nunca abriu essas pastas. Ele tinha que me acusar e acusou. E aí, depois, ele quebrou meu sigilo bancário, meu sigilo fiscal, e viu que entre o que eu ganhava e o que eu declarava no Imposto de Renda tinha divergência. Aí questionou por que essa diferença. E eu assumi que mandei minha contadora não declarar o que não fosse preciso, para diminuir mesmo o imposto. É crime? Pode me prender. Então ele tira a acusação do desvio de verba e passa a ser de sonegação fiscal. Ou seja, me senti o próprio Al Capone (risos). Mas, enfim, provei, com meu advogado e com minha sócia, perante o Tribunal de Justiça da Bahia, que nós fomos corretos e fizemos o mais belo e brilhante projeto cultural coletivo, sem ser caça de votos, que já foi feito na Bahia.
“Se eu fosse roubar eu ia roubar para mim. Por que eu ia roubar para o presidente da Ebal?”.
.ba – Então fale sobre a lacuna que deixou, a falta que faz, na sua opinião, as Domingueiras.
RS – Eles sabem. O PT sabe a lacuna que é. Tanto que eles fazem os congressos culturais pelo interior, reúnem secretários de várias cidades, os diretores de cultura e perguntam: “O que é que vocês gostariam de ter?”. “Ah, as Domingueiras”. Aconteceu um congresso em Porto Seguro, com 120 cidades, o Cone Sul. Das 120, 86 queriam Domingueiras. Aí um profeta da série Márcio Meirelles disse: “Ó, nós não podemos dar as Domingueiras, mas podemos imitar”. No dia seguinte, 30 pessoas me ligaram: secretários, ex-secretários e tal. E disseram que estavam prometendo uma imitação das Domingueiras. Eu disse tudo bem, deixa eles. Liguei para Ângela Andrade, a que era braço direito de Márcio Meirelles, e disse a ela: “Olha, Ângela, acabei de receber um comunicado assim e assado, de que um tal de vocês prometeu montar um projeto parecido com Domingueiras, ou igual, com outro nome. Eu quero lhe dizer que sou inscrito em Cartas e Patentes, com a descrição total do projeto, como grupo musical etc., o que você pensar está lá registrado. Eu tomo as cuecas e as calçolas de vocês num processo”. Bom, houve tentativas de imitação, pedaços das Domingueiras feitos aí Bahia afora… mas, nada que comprometesse. Entrou Jorge Portugal e mandou Dulce Ferrero, eu dou os nomes porque não sou fofoqueiro, mandou Dulce Ferrero me propor retomar Domingueiras. Eu disse a ela: “Eu com o PT não faço. Mas eu tenho uma sócia que tem todo o direito de opinar. Deixe-me consultá-la”. Consultei Nadjaí, que topou. Chamei Dulce e disse: “Nadjaí topou. Agora, a administração é nossa”. Ela disse: “Ah, nós pensamos que você ia dar o projeto”. “Dar? Dar o quê? O que é que vocês deram pra mim? Um processo”. Ela levou o assunto a Portugal e os conselheiros dele disseram que não, que só eles administrando. Então, porra, escreva seu projeto e faça sua porra, não encha meu saco.
.ba – Hoje, diante dessa divisão política do país, querem te empurrar para a direita. Você que teve ligações inclusive com Cuba mesmo. Mas, porque você fala mal do PT, virou de direita?
RS – Pois é, eu não sei o que eu sou. Eu sou de uma família comunista. Eu apanhei na praça, eu corri do agente…, como é o nome dele? Daqui a pouco eu lembro o nome. É que eu tô velho, o alemão tá se aproximando, aí eu esqueço das coisas. Mas apanhei muito. Eu subi aquela ladeira de São Bento em alta velocidade, era jovem. Aí, porra, hoje me tornei antipetista consagrado já (risos) e eles dizem que eu sou de direita. O pior é que a família tá cheia de petistas.
.ba – Você votou em Lula em alguma eleição?
RS – Votei duas vezes nesse ladrão descarado. Não votei em Dilma, mas em Lula sim. Votei em Lula e em Paulo Souto [eleições de 2002]. Tinha uma placa enorme no fundo meu carro: “Para presidente Lula. Para governador Paulo Souto”. Sabe quem viu isso? O ministro Gilberto Gil, em São Félix, quando fui mostrar a ele o local onde eu queria fazer o Museu do Artesanato. O segundo ministro, o que ele botou no lugar, o Juca não-sei-de-quê, não sei nem o nome, aquele não tem capacidade de ser secretário de Cultura nem de Irará, quem dirá da Bahia, e foi o ministro de Cultura do Brasil. Pelo amor de deus! Para beneficiar alguém ou algumas pessoas. Enfim, não quero entrar nesse mister, mas eles viram isso, esse adesivo em meu carro. Viram minha independência. Eu votava em Lula, mas não votava em Jaques Wagner. No dia que a Lava Jato chegar aqui… meu amigo!
“Tinha uma placa enorme no fundo meu carro: ‘Para presidente Lula. Para governador Paulo Souto’. Sabe quem viu isso? O ministro Gilberto Gil. (…) Viu minha independência”.
.ba – Mas o que foi que motivou esse seu antipetismo?
RS – Essa acusação de ladrão. E, olha, não tinha sido deflagrada ainda a Lava Jato. Todos eram honestos perante deus e a lei. [hoje] Vá para as cadeias e tá tudo cheia de petista. Eu não tô lá. Tô?
.ba – Mas alegam que eles foram perseguidos, porque quiseram fazer a revolução social, mudar o Brasil, e aí a oligarquia se juntou para…
RS – É…, nota-se pela grana [que eles têm].
.ba – Mudando de assunto, fale de sua trajetória. Como foi que você entrou na vida cultural e se tornou um dos maiores produtores do país?
RS – Eu comecei no teatro. E no Teatro Vila Velha. Ou seja, eu tive bom começo. Porque eu comecei minha vida profissional com Lina Bardi, no Museu de Arte Moderna da Bahia. Tive grandes companheiros. Eu, um moleque de 16/17 anos, meus companheiros eram Paulo Gil Soares, Glauber Rocha, Sante Scaldaferri, Calasans Neto, Nilton Sobral, Renato Ferrari, Mário Cravo… e eu no meio dessa turma. E Lina Bardi chefiando todo mundo. Fazendo teatro no Teatro Castro Alves. No palco incendiado, dona Lina criou uma arquibancada e um palco imenso e ali nós fizemos a “Ópera dos Três Vinténs”, de Brecht, com Maria Fernanda no papel principal. Vários concertos. Peça com Sérgio Cardoso. Rapaz, a Bahia teve uma peça com uma orquestra, só flautas e cordas, uma orquestra de câmara, no palco do TCA incendiado. Lina Bardi realizou com Martin Gonçalves. Não era música de playback não, era música ao vivo. [cantando] “Três espadas, bem na frente do nariz…”, essa música me persegue desde aquele tempo. Nós montamos naquele foyer do Teatro Castro Alves algumas exposições que representam assim uma simbologia para as artes plásticas: os impressionistas franceses… De repente eu tava carregando um quadrinho de merda… de merda no tamanho, né? Dona Lina chegou para mim: “Roberto, cuidado!, sabe quanto você está carregando aí?”. “Não tenho a mínima ideia, dona Lina”. E ela: “Só de seguro para o quadro estar aqui são 150 mil dólares”. E naquela época, para mim, dólar era um negócio assim do diabo né? 150 mil dólares era um mundo de dinheiro. Ela disse que era um Renoir. Como eu não sabia quem era Renoir, tanto fez (risos). Eu conhecia era Sante e Calasans. Floriano Teixeira também. Para mim já eram o máximo. Carybé, Genaro de Carvalho. Mas não sabia quem era Renoir. Deixei o quadro na mão de alguém e me piquei para a biblioteca do museu e peguei um livro: Renoir! Aí eu aproveitei: Renoir, Matisse, Cézanne, Paul Klee. O quadro era “Rose et Bleu”, as duas meninas, que pertence ao Louvre. Carregado pelo neguinho de Irará! Veja que desgraça… (risos)!
.ba – E a entrada na música?
RS – Pois é, o CPC (Centro Popular de Cultura da UNE), eu sou de direita, mas eu estava lá, e eles não estavam (risos), chamou eu e Tom Zé, meu primo…
.ba – Inclusive eu li esses dias, em um site aqui da Bahia, que ele é seu irmão.
RS – Não. Eu já tenho o pecado de ser primo (risos). Pra ser irmão era dose cavalar. Mas, sim, nós fazíamos teatro e fizemos uma peça do poeta José Carlos Capinan, baseada no Bumba-Meu-Boi. Um Bumba-Meu-Boi político. Ficou uns 10 anos viajando pelos interiores, pelas capitais. Representamos dentro do palácio do governo de Sergipe, para o governador Seixas Dória, que, nota-se, era de esquerda. Não comunista, mas era socialista. E aí chegou um pedido do Oduvaldo Vianna Filho, Vianinha, para nós montarmos um núcleo de música popular. Imediatamente os dirigentes daqui determinaram que Tom Zé iria dirigir e eu iria ajudar. Imediatamente eu convoquei Gilberto Gil, que era sanfoneiro e morava no mesmo bairro que eu, ali pertinho dos Barris. Convidei Caetano e Bethânia. Bethânia não passou nem na porta. Caetano foi e tremia que nem vara verde, que era coisa de comunista, que a mãe dele não podia saber e tal. Caetano nunca foi político de partido nenhum, mas você pega as letras dele… Nós o pedimos para fazer uma música para a escola-de-samba do CPC e ele fez [cantando] “O samba vai crescer pelas ruas / vai correr numa grande batucada…” Conhece? É, um samba revolucionário de seu Caetano Veloso! Ele criticava os playboyzinhos né? “No Farol da Barra em falta de Copacabana / Vou queimar a pele no fim de semana (…)”. Enfim, fui me envolvendo com música, comecei a ir à Praça Castro Alves encontrar com Tião Motorista, que era taxista, e a gente pegava Batatinha no Diário de Notícias, ali onde hoje é o espaço da Caixa, na Carlos Gomes, ali era o Diários Associados, ficavam a Rádio Sociedade e o jornal.
.ba – De Assis Chateaubriand.
RS – Sim, mas aqui na Bahia os sócios eram Odorico Tavares e Paulo Nassif. E era uma grande escola. Caetano escreveu lá, Glauber escreveu lá, Florisvaldo Mattos, vários intelectuais. Tinha espaço livre, não precisava comungar do pensamento político de Chateaubriand – se é que existia um pensamento político de Chateaubriand. Chateaubriand era um maluco, chantagista… mas fazia! Ele fez o Museu de Arte de São Paulo. Foi ele que trouxe Pietro Maria Bardi e Lina Bardi ao Brasil. Ele fez muita coisa bacana Brasil afora. E fez as maluquices dele mesmo: assediar artista para dar quadro pra ele. O que Odorico também fazia aqui, com um pintor primitivo que vivia ali na Praça da Sé. Odorico botava ele no jornal e ele tinha que dar 10 quadros para Odorico.
.ba – Aí você entrou nessa. Mas como é que você chega à Polygram?
RS – Eu estudava teatro na Ufba, até ser expulso em 1964. Aí fiquei aqui dirigindo shows com Sui Safira, Gilda Spencer, cantoras e cantores da época. Cantor, na verdade, não tinha. A Bahia sempre foi fraca de cantores. Eles se envolvem em grupos… um Tito Bahiense vai ser do grupo de Ivete, tá lá há duzentos anos. Canta pra cacete! Ray Gouveia, que foi da Confraria da Bazófia. Você já viu Ray solando? Ele canta pra cacete! O grave de Ray é um negócio sério. Só Nelson Gonçalves dava aquele grave. Mas, eles vão se encostando e não proliferam como artistas solo. Ficou quem, nesse tempo todo? Lazzo. Bom, fiquei produzindo e criei um projeto chamado “Temporada de Verão”, eu e meu saudoso amigo Mário Almeida, mais conhecido como Mário Tabaréu, que morreu num acidente de carro no Rio de Janeiro. Foi uma época em que eu aluguei todos os teatros da Bahia: Gamboa, Vila Velha, Castro Alves… Todos. E, durante dois meses e meio tudo era produção minha. Foi uma época de crise política e eu tive um prejuízo fantástico (risos). Foi quando eu lancei Fafá de Belém, aqui. O primeiro show dela, individual, foi aqui [em Salvador], meia-noite, no Teatro Vila Velha.
“Chateaubriand era um maluco, chantagista… mas fazia! Ele fez o Museu de Arte de São Paulo. Foi ele que trouxe Pietro Maria Bardi e Lina Bardi ao Brasil. Ele fez muita coisa bacana Brasil afora. E fez as maluquices dele: assediar artista para dar quadro a ele”.
.ba – Então fale de outros lançamentos seus.
RS – Aí o maestro Carlos Lacerda, do piano, me convidou para jantar em um restaurante que tinha ali na Joana Angélica e lá eu conheci Elomar. Eu digo: “O que é isso?!”. Foi a primeira coisa: “O que é isso?!”. Perguntei a Lacerda como era que se classificava aquilo e Lacerda me disse que não tinha classificação. Bom, eu pensei, isso tem que ser registrado. Aí propus à Polygram, que na hora aceitou. Eu gravei com Mazzola, grande produtor e grande técnico, que veio do Rio para gravar em um estúdio de dois canais, que era o estúdio JS, só tinha esse, ali na Rua Chile. Gravamos o disco e ele levou para editar no Rio, enquanto eu fui providenciar fotos etc. Chamei meu amigo Sílvio Robatto, que era fotógrafo, que chamou o amigo dele que tornou-se meu amigo, Jameson Pedra, também arquiteto e hoje artista plástico. Eu aluguei um Opala, um Opalão, e fomos fotografar Elomar na fazenda dele de bode, no interior de Vitória da Conquista. Fomos para Conquista, para a Barranca do Rio Gavião, fazenda de Elomar. Ele dormia em uma tábua, com uma arma na mão, um fuzil. Eu digo: “Esse cara vai acordar aí assustado e vai atirar na gente” (risos). Os morcegos davam rasantes… Passei duas noites sem dormir. Um calor fantástico e eu só deixava o nariz de fora. Dali a pouco os bodes começaram a berrar e Elomar saiu pela janela, tiros, o caralho, de repente tinha uma onça lá estirada. Ele ia defender os bodes dele, claro. Para tomar banho no rio só meia-noite, porque a água era quente, parecia chuveiro elétrico. É que o rio Gavião corria em leito de pedra, o dia inteiro aquele sol terrível, a água era quente de não dar para tomar banho. Meia-noite ficava morna (risos). E essas coisas me emocionaram muito! Fizemos o encarte com mais de 200 fotos. Dos bodes, que ele tratava como nobres espanhóis, Francisco Orellana…, nomes assim… Bom, fomos fazer o lançamento no Rio, com Quinteto Violado e Grupo Bendegó – eu era produtor dos três. Saiu o lançamento, o Quinteto Violado ficou para fazer uma semana e ficou seis meses. Sucesso! Um show que eu escrevi e dirigi pra eles chamado “Berra Boi”. Depois fomos para o Tuca, em São Paulo. Elomar vai para a esquina da Santa Efigênia com Ipiranga picar fumo de corda. Quando ele acendeu o cigarro de palha a polícia passou: foi preso! Conseguimos, depois de muito explicar, tirar Elomar das mãos da polícia. E eu fui me envolvendo com música. Até que em 1969, da “Temporada de Verão” onde foi gravado “Chico & Caetano no Teatro Castro Alves”, eu recebi o convite de André Midani para ir pro Rio. Eu não contei até três: vou! Não sabia quanto ia ganhar, se ia ganhar, o que ia fazer. Eu vou. O máximo que pode acontecer é ele me mandar de volta. Chega lá me apresentei, no dia 3 de março de 1970. Me apresentaram a Heleno [Oliveira], [Roberto] Menescal, Armando Pittigliani… A primeira coisa que aconteceu, quando cheguei à Polygram, foi que tinha uma cantora que eu não conhecia, não tinha visto pessoalmente, só ouvia a voz cantando uma música chamada “Figa de Guiné” [Nei Lopes e Reginaldo Bessa]. Era uma homenagem à Bahia e a negra cantava de um jeito que eu me sentia nas festas populares. Aí, numa reunião para dispensar fulano, beltrano, artistas que não deram certo, citaram a cantora e eu disse assim: “Eu queria pedir licença, eu sei que ainda tô chegando, mas essa cantora me emociona e eu queria ter uma chance de fazer um disco com ela”. E eu me lembro que o diretor comercial disse: “Porra nenhuma. Tem chance porra nenhuma e tal”. Até hoje ele se lembra também, tá com 80 anos, mora em Friburgo, Heleno de Oliveira – o maior vendedor de discos que esse país já teve. Aí eu digo, porra, uma chance. Uma só. Não vai fechar a companhia por isso. Ok. Me deram dois anos com ela. Maravilha! Menescal a chamou, me apresentou, explicou porque eu estava ali com ela e tal. Comecei a produção do disco. E aí tem uma história um pouco comprida que você vai ter que aturar. Tinha uma dupla que ninguém queria ouvir porque assim nessa distância em que nós estamos ninguém aguentava o fedor dos caras. Quando eu ia saindo para o almoço, eles estavam sentados, cochilando, no banco da fome, como a gente chamava, o corredor da morte, e eu disse “olha, eu vou almoçar e na volta vou ouvir vocês”. Aí cheguei do almoço, mandei a secretária “Lene, prepara a sala que eu vou ouvir a dupla fedorenta”. Ela: “Eu não vou preparar porra nenhuma!” (risos). Aí eu mesmo arrumei tudo, botei o gravador no fundo da sala e abri a janela que dava para o Aterro do Flamengo…, o vento batia e levava o fedor para lá (risos). Liguei o gravador e digo: “Pode gravar. Só digam os nomes das músicas antes e os autores”. E todas eram de Totonho e Paulinho Rezende, eles mesmos. Na quinta música eles cantaram “O Surdo”. Eu aí parei o gravador, nem precisava ouvir mais nada. As cinco músicas eram cinco sucessos. E eu gravei todas. Disse a eles: “Olha, eu vou registrar essas porras, se vocês tiverem roubando música ou plagiando, vocês vão presos e eu não vou lá soltar ninguém”. “Não, é nossa, doutor”. Terminei, chamei Jairo Gualberto, técnico de som, pedi para editar direitinho e botar num cassete. E aí liguei para Marrom, quer dizer, não era Marrom ainda, era só Alcione. “Alcione, quero lhe mostrar umas músicas”. Ela me chamou para ir à sua casa. Primeiro toquei “O Surdo”, em seguida “A Morte de um Poeta”, essa música foi sucesso na Itália, rapaz!, música não tem explicação, elas andam sozinhas… Ela fez: “Sant’Anna, o que é isso?! Onde você foi buscar?”. Eu aí contei a história. Ela: “Eles fedendo eu não quero conhecer não, mas depois eu quero” (risos). “Vou mandar eles tomarem um banho pra vir aqui” (mais risos). No dia do lançamento do disco dela e do show, eles estavam de banho tomado, tinham adquirido uma bela grana de adiantamento, roupa nova, sabonete bom, eu os apresentei, eles chorando, emocionados e tal… Até hoje Paulinho Rezende é meu amigo no Facebook e volta e meia fala comigo, me chama de padrinho, diz que tá com saudades… E diz a todo mundo que ele é Paulinho Rezende por minha causa. Pra mim basta! Sim, aí aproveitei a contratação de Alcione e contratei Emílio Santiago, porque eles trabalhavam na mesma boate: a “Preto 22”, de propriedade do senhor Flávio Cavalcante. Lá tocava também a orquestra do Maestro Cipó, a primeira boate com orquestra do Rio de Janeiro. E o diretor artístico se chamava Dori Caymmi.
.ba – Barra pesada!
RS – É, era outro tempo. Aí Dori me disse “rapaz, contrate esse negão”. Eu digo “mas só tenho ordem pra contratar Alcione”. E Alcione também falou “Sant’Anna, contrate o negão que o negão é bom”. Eu nem tinha reparado, mas o negão cantava pacaralho! E ele lá com o conjunto dele, com o tio dele, Laércio de Freitas, no piano, que foi quem o ensinou a cantar, ele pegava a música e virava de cabeça pra baixo. Qualquer música. Eu digo, eu vou peitar se eu tenho prestígio ou não – e contratei. No outro dia cheguei na empresa, chamei o meu patrão direto, Roberto Menescal e mostrei o contrato de Alcione e mais o de Emílio Santiago. “Quem é esse? Não conheço”. Ele disse que não ia assinar o de Emílio, que não tinha autoridade para isso. Aí eu digo, se eu não tenho autoridade e você não tem, fecha essa porra. Isso aqui é pra contratar artista, pra jogar, pra experiência, e eu garanto que esse cara canta. Quando botei o cassete tava Emílio cantando “Bananeira”, com João Donato no piano. Ele aí me olhou e disse: “É, já que você contratou, para você não chegar lá de cara grande eu vou assinar”. E assinou. Aí eu fiz os discos dos dois concomitantemente, gravando um de manhã outro de noite. Terminei os discos juntos. Heleno de Oliveira, que é mulato, o diretor comercial, virou pra mim e perguntou como eu ia fazer para divulgar os discos. Eu disse: “O que eu falar tá valendo?”. “Tá valendo”. “Eu quero três passagens: Rio, Belo Horizonte, Brasília, Manaus, Belém, São Luís, Fortaleza, Recife, Maceió, Salvador, Rio. Quero uma verba pra alimentação e hospedagem”. Aí me deram um dinheiro que na hora que eu peguei era um dinheirão, mas, quando chegou em Manaus já não tinha mais dinheiro. E aí começamos a fazer show em churrascaria, puteiro, o caralho.
“Quando conheci Elomar, eu disse: “O que é isso?!”. Foi a primeira coisa: “O que é isso?!”. Perguntei a Lacerda como era que se classificava aquilo e Lacerda me disse que não tinha classificação”.
.ba – Era a mesma banda?
RS – Que banda? Um violão. Só deu tempo de ensaiar com um violão. Enfim, chegamos em Recife e no aeroporto eu vejo Heleno de Oliveira. Eu disse “Marrom, olhe quem tá ali, Heleno! Veio atrás da gente. Por um dos dois motivos: ou veio cancelar tudo e mandar a gente pra puta que pariu, ou veio melhorar nossa vida”. Fui lá falar com ele. Ele aí disse: “Vim aqui encontrar vocês”. Nessa hora eu tremi: Tá todo mundo desempregado. Não vou nem ao Rio, vou direto pra Salvador (risos). Ele então perguntou onde a gente ia ficar. Era na Pensão Suíça: minava água pela parede, era quase dentro do rio (risos). Ele aí disse não, vamos para o hotel, já reservei. Que hotel? Era o Hotel Del Rei, um cinco estrelas, o melhor de Pernambuco na época. Eu pensei: sair da Pensão Suíça pro Del Rei, alguma coisa está acontecendo. Fomos. E da janela eu vi que ele tava tomando uísque na piscina. Fui também. Chamei Alcione e Emílio e disse que ia lá conversar com Heleno, que eles ficassem olhando pela janela, se fosse boa notícia eu chamava, se fosse ruim eu acenava para nem virem. Cheguei pra ele: “Heleno, vomite aí, o que é que tá acontecendo? Veio mandar a gente embora?”. Ele respondeu: “Ao contrário. Como é que eu vou mandar meus principais artistas embora? Vocês estão estourados em execução e vendas”. Quando ele perguntou que porra eu fiz, eu respondi: dois discos bons. Aí a vida mudou. E eu cheguei ao Rio como o Midas – tudo que ele bota a mão vira ouro.
.ba – Então você salvou Alcione de ser demitida antes mesmo de começar?
RS – Sim. E incluí a música que ela fez no compacto simples, a que eu gostava, nos shows dela: “Figa de Guiné”. Aí de produtor eu passei a ser coordenador-geral de produção do selo Phillips e um ano depois eu era diretor artístico do selo. Continuando a me reportar a Roberto Menescal. E aí chegou o disco da Elis Regina. Ela tinha, havia um ano, saído de 10 mil discos, 20 mil discos para 150 mil discos vendidos, com “Falso Brilhante”. Eu respeitei aquilo, mas ela era minha inimiga. Vivia pedindo a minha cabeça. A minha e a do Heleno. “Esse baiano filho da puta!”. Porque ela sim era uma filha da puta, né?
.ba – Mas, por que ela pedia sua cabeça? Você sabe?
RS – Eu vim com ela para a Bahia e levei-a para dar uma entrevista à TV Aratu, que era a única que tinha, repassava a Globo, e quando nós chegamos na sala de espera soou o alto falante dando a notícia da queda de um avião onde morreu Leila Diniz. Ela disse que fui que mandei dar a notícia, pra fuder com ela, que começou a chorar, acabou nem dando a entrevista. Eu digo: “Elis, eu queria ter esse poder de mandar dar notícia na televisão”. E daí em diante ela ficou minha inimiga. Ela era muito louca! Morreu, vira deusa. Um dia chegou Menescal: “Roberto, eu tô me sentindo mal, mas eu vou lhe pedir um favor: Elis brigou com o irmão e botou ele pra fora e ele tá recém-casado, tá fodido e tal”. Porque eu tinha minha empresa, com Mário, de produção de shows, além de trabalhar na Polygram. Eu disse: “Pronto, ele tá empregado”. Trabalhou comigo dois anos e meio. E um dia ela chegou no aeroporto de Brasília e me viu sentado lendo jornal, o Quinteto Violado, e Rogério, o irmão dela, administrando tudo: check in, check out, o caralho! Ela então mandou César Camargo falar que o queria de volta. Ele aí veio falar comigo, “minha irmã me quer de volta…”, e eu digo “vá, é sua irmã, cara”. Ele foi e a primeira pergunta dela pra ele: “Aquele baiano de merda ficou retado?”. Ele respondeu: “Não, ele disse que achava que eu devia vir, que você é minha irmã, merecia respeito”. Ela abaixou a cabeça e ficou calada.
“Elis Regina vivia pedindo a minha cabeça. A minha e a do Heleno. ‘Esse baiano filha da puta!’. Porque ela sim era uma filho da puta, né?”.
.ba – Sim, mas você tava falando que ela vinha de vender pouco, passou a vender bastante com “Falso Brilhante” e…?
RS – Ela mandou o próximo disco. Eu ouvi e, para mim, era um cemitério. Hoje eu ainda sinto o cheiro de vela, mas não é mais cemitério. Botei para tocar na reunião de produtores. Vendedor que pega um disco que vende 150 mil, naquela época era muito, ele quer o próximo no mesmo quilate para vender 300 mil. Então, os representantes comerciais brocharam. E Menescal comunicou a ela. Ela disse que não, que era “esse filho da puta desse baiano querendo me foder”. Eu disse: “Então eu vou lançar o disco assim, não vou nem mexer, como está eu vou lançar”. E Heleno falou que não tinha nenhuma responsabilidade naquilo. “A responsabilidade é de Sant’Anna”. Ok, eu assumo. Em outra reunião, toca o telefone e André atende: “Menesca, é pra você, Elis”. Ela disse: “É o seguinte, diga a esse filho da puta desse baiano – ela só falava assim; era um adjetivo – que vai ser capa dupla”. Ele tentou argumentar e ela: “Não quero conversa. É capa dupla, se não eu rescindo o contrato”. E não podia rescindir o contrato de Elis. Eu disse, será capa dupla. E capa dupla na época tinha dois problemas: acrescia em 20% o preço do disco e empenava. Mas, é com ela e a porra. Aí chamei Heleno de canto e acertei com ele que de cada loja que pedisse, por exemplo, 100 discos, ele entregasse 20, dizendo que a produção tava pequena e o volume de pedidos, grande. Ele falou que aguentava isso por um mês. Ok. Um mês depois a fábrica toda, todas as prensas, estava fazendo o disco dela. E vendeu 800 mil cópias!
.ba – Que disco foi?
RS – “Transversal do Tempo” [1978]. Eu fiquei de gostoso dentro da empresa, não é? Porque eu assumi a porra toda.
.ba – Mas você não acreditava também, não é?
RS – Eu? Era o primeiro a não acreditar. Quando Heleno dizia “Sant’Anna, cheguei a 400 mil” eu dizia “vai tomar no teu cu, neguinho, tu não vendeu nem dois” (risos). Pior que vendeu.
.ba – Melhor, né?
RS – Melhor! E aí, pronto, Menescal e André chamaram Elis para um jantar e disseram: “Olha, ele está esperando em casa, junto ao telefone, para vocês fazerem as pazes e tal, afinal de contas ele assumiu tudo o que você pediu, capa dupla etc.”. Ela disse: “Não. Lançaram porque quiseram. Eu não devo nada a esse nêgo baiano”. Aí deu umas 11 horas da noite e eu digo “vou dormir”… Meia-noite toca o telefone. Chamei minha mulher e pedi pra ela atender. Era André, dizendo que não precisava ir, que o jantar já tinha acabado e que ela não aceitou a proposta do encontro. Rapaz, eu dormi tanto… No outro dia cheguei na empresa 10 horas da manhã. Aí o pessoal: “Você dormiu hein!”. Tirei um caminhão das minhas costas, carregado. Então André mandou me chamar. Cheguei e disse: “Antes de você dar uma palavra, eu quero dizer uma coisa – você pode me demitir agora, mas eu não falo com essa mulher nunca mais em minha vida”.
.ba – E ela morreu com vocês assim?
RS – Inimigos. Sim, inimigos.
.ba – Agora, essas discussões que sempre aparecem, sobre quem é a maior cantora do Brasil. Para você foi quem? Elis?
RS – Sim, cantora foi Elis. A capacidade vocal dessa mulher, o que ela fazia… era a melhor! Você não a conheceu pessoalmente, conheceu? Era desse tamanho, semi-anã, zarolha, virgem até os vinte e poucos anos… Tudo errado (risos). Mas cantava! Ainda mais quando César Camargo Mariano começou a comer ela e a fazer os arranjos… Aí foi foda!
.ba – Você viu o filme que fizeram sobre ela? Gostou?
RS – Vi e não gostei.
.ba – Por quê?
RS – Tem muita mentira.
.ba – Por exemplo.
RS – Que o produtor da empresa de discos mandou-a voltar seis meses depois. Nunca houve isso. E aquele produtor, que o filme não dá o nome, chama-se Armando Pittigliani. Jamais Armando mandaria um cantor voltar seis meses depois. Jamais!
.ba – Você citou só uma boate aí que tinha Cipó, Alcione, Emílio e direção de Dori. Como é que você vê o cenário hoje da música brasileira?
RS – Eu vejo um empobrecimento total. A maioria dos compositores, hoje, faz Axé, na Bahia. No Brasil, 90% fazem música de consumo imediato. Ainda mais depois desses MC’s aí, essas bundas… Mulher Melancia, Mulher-Não-Sei-o-Quê… Acabou. E a internet tem uma culpabilidade imensa em levar esses artistas para as televisões e as televisões são culpadas em levar isso para o grande público. Mas eu ando pesquisando na própria internet e vou lhe dar dois nomes para você ouvir: uma cantora paulista que mora em Maceió, chamada Renata Finotti. E um garoto de 21 anos, compositor do Ceará, Matu Miranda.
“Eu vejo um empobrecimento total. A maioria dos compositores, hoje, faz Axé, na Bahia. No Brasil, 90% fazem música de consumo imediato. Ainda mais depois desses MC’s aí, essas bundas… Mulher Melancia, Mulher-Não-Sei-o-Quê… Acabou”.
.ba – Outra coisa, saindo um pouco da música, mas continuando, como é aquele projeto seu da calçada da fama da cultura baiana. E por que não foi pra frente?
RS – Porque isso não dá voto. Com a Secretaria de Cultura do Estado eu não faço nada enquanto for PT…
.ba – E a prefeitura?
RS – Na prefeitura Fernando Guerreiro barrou. Não sei porque.
.ba – E qual é a ideia, resumidamente?
RS – É o seguinte: existiram e ainda vão continuar existindo pessoas que extrapolam as fronteiras da sua cidade, do seu estado, do seu país. E eu tomei como média extrapolar as fronteiras do estado, não é nem do país. Por quê? Um belo dia eu estava em casa, vendo a TV Senado, e tinha uma reunião no Congresso Nacional homenageando Rômulo Almeida, um grande economista, que criou o Centro Industrial de Aratu, o Polo Petroquímico de Camaçari etc. Esse homem fez 100 anos. Pois os jornais, rádios, da Bahia, não deram nenhuma vírgula sobre ele. Eu aí escrevi denunciando que isso é uma vergonha. Esse cara foi um economista que vivia de palestras nas grandes universidades do mundo. Então fui ao colégio Manoel Devoto, pedi à diretora para reunir uns 30 alunos, de 16, 17, 18 anos e propus a eles o seguinte: eu vou botar o nome aqui e vocês vão dizer se conhecem ou não e o que sabem deles. Aí botei Dorival Caymmi – todo mundo conhecia, de Itapuã, “Coqueiro de Itapuã”… Jorge Amado – todo mundo conhecia pelas novelas da Globo. Ninguém falou em livro. Rômulo Almeida – “Não sei quem é”. Luiz Gama – “Não sei quem é”. Major Cosme de Farias – “Não sei quem é”. Genaro de Carvalho – “Não sei quem é”. Ou seja, memória é o ponto fundamental de um desenvolvimento cultural. Aí o que eu propus? Um projeto chamado “Acontece Que Eu Sou Baiano” – eram placas com o nome dessas personalidades, informações como data de nascimento e morte, local, alguma coisa referente à vida dele, um esboço de um desenho fisionômico, prefeitura, patrocinador, quilometragem. Eu começaria do Porto da Barra, ali do marco português, quilômetro a quilômetro uma placa, ia terminar exatamente na Sereia de Itapuã: 36 quilômetros. E a divulgação disso em revistas, nas televisões etc. seria: “Na Bahia, até passeando você pisa na cultura”. Desculpe, mas isso é uma sacada de gênio! E aí vinham os nomes: Milton Santos… eu tenho 45 nomes. Um dia desses perguntei a uma jornalista daqui se ela sabe quem é Luiz Gama e ela só sabia que era um nome de rua. Porra, falam tanto em empoderamento, que os negros são foda, mas não sabe quem é Luiz Gama. Luiz Gama nasceu em 1830 na Bahia e foi vendido a uma família portuguesa. Em 1850 ele já morava em São Paulo e pediu para estudar Direito no Largo de São Francisco. Foi negado o direito dele estudar Direito, porque ele era negro. Então ele pediu pra pelo menos ter o direito de visitar a biblioteca. Com pena do neguinho, deixaram ele entrar na biblioteca. Ele engoliu a biblioteca! Leu tudo! Final da história: esse cara virou professor titular, sendo rábula, da escola de Direito do Largo de São Francisco. Esse homem hoje é mais respeitado em São Paulo do que na terra dele. A Bahia não sabe que Luiz Gama é baiano. Quando eu fiz o disco de Gordurinha, algum idiota escreveu que o governo do Estado estava gastando uma grana fazendo um disco de artistas cearenses, que era Gordurinha (risos). Só porque ele fez uma música linda chamada “Súplica Cearense” (mais risos).
.ba – Se fosse assim Ary Barroso seria baiano, não é, por ter feito todas aquelas músicas sobre a Bahia?
RS – Pois é. Aliás, o secretário que substituiu Márcio Meirelles, diretor da Escola de Comunicação, professor da Escola de Comunicação da Ufba, deu uma entrevista dizendo que Caymmi estava muito feliz por ter feito “Na Baixa dos Sapateiros”. Eu escrevi no Facebook: “Rubin, Caymmi e Ary Barroso estão tremendo nos seus túmulos devido à ignorância de um professor universitário e secretário de Cultura”.
.ba – E falando em todos esses nomes, Roberto, você se incomodará se no futuro for lembrado como o pai de Lucas Santtana?
RS – Não. Eu sou o pai. Vou ficar triste por quê? Primeiro, ele escolheu fazer música não foi por mim, foi por ele. Tanto que nenhum dos outros quatro filhos foram pelo caminho musical. Só que ele escolheu um caminho que eu não percorreria. Muito difícil. O tipo de música, a estrutura poética…
.ba – Mas isso tem escolha ou é uma imposição do talento, da sensibilidade do artista?
RS – Tem a coisa da sensibilidade, da formação cultural, mas ele tem a cabeça para pensar. E a visão de mercado. Essa coisa de que artista vive de comer ar e beber nuvem é uma mentira há muitos anos. O pintor, o tapeceiro, o compositor têm que ter uma visão macro do país, se inserir nela, sabendo onde estão os buracos para eles se meterem. Não é pra fazer música de ocasião para ganhar dinheiro não. É pra fazer… quando Gil fez “Refavela” ele não fez música para ganhar dinheiro. Ele nem sabia que ia vender tanto… Ele fez a música…
“Eu escrevi no Facebook: ‘[Albino] Rubin, Caymmi e Ary Barroso estão tremendo nos seus túmulos devido à ignorância de um professor universitário e secretário de Cultura'”.
.ba – Você acha que hoje o artista mais refinado está fora da vida cotidiana, do povo em geral, da televisão aberta etc.? Como você, que lidou com artistas comerciais e também com artistas questionadores até mesmo do sistema de composição mais palatável, enxerga isso? Por que, veja que sujeitos como Caetano Veloso e Raul Seixas não eram exatamente isso que hoje se chama de artista alternativo. Se você cantar um trecho de “Sampa” ou de “Ouro de Tolo”, as pessoas todas na rua, do analfabeto ao doutor, completarão a letra. Enquanto que hoje artistas desse tipo ganham prêmio de prestígio, são respeitados, sei lá, em Berlim, mas podem andar nas ruas anonimamente que o povo nem sabe quem são. Como você avalia essa mudança?
RS – Então, vamos falar um pouco: cultura de ontem e de hoje. O que é que acontecia no ambiente cultural ontem? Tinha-se mais tempo para estudar, pesquisar, menos ofertas para ir-se à rua, ao lazer… Por tudo isso sobrava tempo para pesquisar, ler estudar. Eu sou de uma geração que lia por prazer. E não lia um tipo de literatura, lia tudo. Eu até hoje sou apaixonado por poesia. Na minha juventude, a partir dos 16 anos, eu já trabalhava com pessoas formadoras de opinião: Lina Bardi, no Museu de Arte Moderna da Bahia, e outros já citados como Glauber, Paulo Gil, Vivaldo da Costa Lima, doutor Walter da Silveira, criador do Clube de Cinema. E aos sábados frequentava a casa de Jorge Amado e Zélia Gatai e lá, além do casal, eu encontrava Genaro de Carvalho, Jenner Augusto, Carybé, Floriano Teixeira e muitos visitantes estrangeiros. Eu ali ficava de butuca aberta e olhos escancarados ouvindo e gravando tudo e saía procurando saber o que era. Bar existia o Anjo Azul e mais dois ou três. Tudo era menor. A cidade era menor. Eu ensaiava o “Nós, Por Exemplo” na casa de Maria Muniz, no Boulevard Suíço, e saía de lá duas/três horas da manhã com Gal Costa e ia deixá-la na Graça, na Rua Rio de São Pedro e voltava sozinho até a Rua Direita da Piedade, onde ficava a pensão onde eu morava – e nunca fui abordado, nem por ladrão nem por polícia. Nunca. Era outro ambiente, que te permitia frequentar os lugares. No Tabariz, eu ia atrás das putas? Também. Mas ia para ver Lindembergue Cardoso tocar com o Maestro Vivaldo, para ganhar um dinheiro e poder pagar cursos extras para seu conhecimento musical. Infelizmente morreu cedo, mas deixou uma obra inestimável. E agora, o que é a cultura da Bahia? 350 trios elétricos! Com corda ou sem corda, não me interessa. Que tipo de música? Absolutamente igual. Pastel. As ideias são todas do “eu”, do “meu”. E não ideias coletivas. Os projetos de hoje são “minha peça”, “meu disco”… Não uma coisa como Domingueiras, por exemplo, que tratava de música, dança, artesanato, coral… Isso tudo, meu amigo, implica em não atingir a coletividade.
.ba – Agora, você citou aí vários nomes, de várias áreas, jornalistas, e até mesmo um ex-secretário, que se revelam ignorantes da própria cultura baiana que eles administram e/ou divulgam. Você não se sente, nesse quadro, subaproveitado? Um cara com seu conhecimento, experiência, desempregado?
RS – Sabe o que eu ouço? Que eu sou acima da média. Que eu sou excelência. Que merda de excelência é essa que não é aproveitada? Eu tô desempregado há mais de 10 anos. Você é testemunha, eu vivo de marmita. E por que meus irmãos pagam, meus filhos pagam meu plano de saúde. Um irmão paga aluguel e condomínio. Eu tô vivendo assim! E não paro de escrever projeto. Além do “Acontece Que Eu Sou Baiano”, eu tenho outros projetos, de igual ou maior importância. Mas que tratam, coletivamente, de cultura.
.ba – E você acha que esses projetos são barrados por quais interesses?
RS – E eu sei lá! Pode ser porque eu não dou grana. Não vai ter mutreta comigo.
.ba – Quando você falou no Axé Music, 350 trios elétricos, e na cultura do eu-eu-eu, meu-meu-meu, fiquei pensando: você que, de certa forma, lançou o Axé, com o disco de Luiz Caldas, se sente culpado de alguma forma?
RS – De jeito nenhum. Tenho orgulho! Luiz Caldas é um grande músico, excelente compositor e canta razoavelmente bem. Eu tenho um respeito por ele, além de tudo por que César Rasec me pediu uma entrevista para uma biografia dele e eu disse que só daria se saísse ipsis litteris o que eu dissesse. Ele consultou Luiz, que aceitou. E minha entrevista saiu tudo.
.ba – E o que é que tinha de polêmico assim, que você pensou que ele não iria botar?
RS – Ah, tá lá no livro… (risos)
“Sabe o que eu ouço? Que eu sou acima da média. Que eu sou excelência. Que merda de excelência é essa que não é aproveitada? Eu tô desempregado há mais de 10 anos”.
.ba – Outra coisa, você apresentou Caetano a Gil não foi?
RS – O mínimo que eu fiz. Eles iriam se conhecer de qualquer forma, é claro, em Salvador naquela época. Mas, quando vêm me perguntar isso eu digo que fiz muito mais por eles do que só apresentar. Eu produzi os shows que os mostraram para o mundo. Produzi os carnavais de Caetano, três discos de Gil. Tem um disco, “Antologia do Samba de Breque”, com Gil e Germano Mathias. “Muitos Carnavais”, de Caetano, fui eu que coordenei aquele projeto.
.ba – E os discos dos poetas?
RS – Pois é, eu também criei esse projeto. Álbum duplo, hein! Drummond, Quintana e Vinícius. O quarto… isso sim eu fico triste de não ter feito, mas não foi por minha culpa. Tava tudo certo, eu ia gravar o disco em Gana, na África, ele era embaixador lá, mas a mulher dele ficou doente de câncer e foi desmarcado. Era João Cabral de Melo Neto. Chegou no Brasil ele brochou e não quis mais gravar. Mas eu fiz esses três poetas.
.ba – E como foi esse lance com os poetas, os bastidores? Você os conhecia, fora Vinícius?
RS – Nada. Quem me ajudou foi Suzaninha, filha de Vinícius, que era afilhada de Drummond e muito amiga de sua filha. E a filha conseguiu o Drummond. A maior surpresa é que, para mim, o único poeta que bebia era Vinícius de Moraes, mas Drummond bebia mais do que ele! Drummond derrubava uma garrafa de uísque puro, sem gelo. A gente carregava ele… escorava um, escorava outro, a gente o imprensava pelo meio para levar até o carro, quando terminavam as gravações.
.ba – Foram quantas sessões?
RS – Cinco ou seis.
“A maior surpresa é que, para mim, o único poeta que bebia era Vinícius de Moraes, mas Drummond bebia mais do que ele!”.
.ba – Em todas ele chapava? Será que era pela timidez? Porque eu conversei com Augusto de Campos, sobre a impressão pessoal dele com o Drummond, e ele disse que o achou muito fechado, mineiro típico.
RS – Drummond era mineiro, rapaz. Do interior. Nunca deixou de ser. E era de pouco falar, não era de estardalhaço. Não era um Vinícius de Moraes. Como Quintana também não era. E ele se fechava, fazer o quê? Era a defesa dele. Quem falava por ele eram os poemas. E falavam muito bem, não é? Eu tomei um susto quando fomos apresentados. Tem até uma foto, eu, ele e Suzaninha dentro do estúdio. Perguntei: “Poeta, tem suco, guaraná, café, chá… o que é que o senhor quer?”. Ele disse: “Um uisquinho”. Eu disse: “Gelo?”. E ele: “Não, não, copinho de café”. Aí botou um copinho dentro do outro, para ter mais resistência, e terminava a gravação bêbado. Depois eu fui gravar Quintana lá no Sul, graças a Luís Fernando Veríssimo, que participou tocando sax. Gravamos a zorra lá em Porto Alegre e a minha luta era a seguinte: grava com dentadura ou sem dentadura?
.ba – O som muda né?
RS – Com dentadura ele assobiava e sem dentadura embolava (risos). Gravamos metade com e metade sem. O importante era o registro da voz dele.
.ba – Você me contou uma vez uma história, não lembro se você perguntou a ele ou ele a você quem era o maior poeta do Brasil. Como é que é?
RS – Ele me perguntou: “Pra você, Sant’Anna, quem é o maior poeta brasileiro?”. Eu disse: “Um momento”. E pensei, filho da puta, eu vou dizer que é ele e ele vai me chamar de puxa-saco. Se eu disser que não é ele, ele vai ficar puto e vai embora (risos). Se eu disser que é Drummond, Vinícius, Cabral, do mesmo time, ele vai achar que eu tô em cima do muro. Aí me deu aquele estalo e eu fui lá pra trás. Disse: “Poeta, o senhor sabe que eu sou baiano né?”. E ele: “Eu sei, minha sobrinha me falou”. “Para mim, o maior poeta brasileiro até hoje chama-se Antônio de Castro Alves”. Fez-se um silêncio, eu saí da sala, fui lá para dentro preocupado. Quando voltei, perguntando “vamos gravar?”, ele virou para mim e disse: “Sant’Anna, você tem razão. O cara que antes dos 20 anos escreveu ‘sinto em mim o borbulhar do gênio’, ele era um gênio. Parabéns, bem escolhido!”. Entrou no estúdio para gravar e me deu aquele alívio, ufa (risos)!
.ba – Engraçado que, em “Verdade Tropical”, Caetano cita exatamente esse verso como “aquele verso horroroso de Castro Alves”.
RS – E Caetano é isso! Ele se sente isso. O borbulhar do gênio é Caetano. Caetano, rapaz, é o cara mais egocêntrico e o maior marqueteiro. Caetano é o grande marqueteiro da música brasileira. Uma vez, eu era da Polygram, saiu a notícia: “Caetano rompeu com a imprensa”. Eu penso, filho da puta, e não me diz nada? Peguei o carro e fui à casa dele: “Caetano, eu quero saber, para poder me armar, você brigou com a imprensa?”. Ele: “Briguei nada, rapaz, isso é para chamar a atenção pra virem atrás de mim, que eu tava pouco falado”. E era batata, quando ele tava pouco falado, rompia com a imprensa e a imprensa toda corria atrás dele.
“Caetano, rapaz, é o cara mais egocêntrico e o maior marqueteiro. Caetano é o grande marqueteiro da música brasileira”.
.ba – Das pessoas que você conheceu, esses milhões de nomes aí, quem é a personalidade que mais te impressionou? Glauber?
RS – Não. Glauber foi um deles. Lina Bardi foi outra. Jorge Amado. Algumas pessoas me impressionaram na vida, não tem um. Maria Bethânia é uma pessoa que me impressiona até hoje, muito!
.ba – Por quê?
RS – Ela tem os ebós dela (risos). Eu gosto dela fora e dentro do palco. De modos diferentes. Ela tem uma postura, não é? Por exemplo, até hoje a imprensa não teve a coragem de perguntar se ela é mesmo sapatão ou não. Ela nunca permitiu. Nunca se defendeu de nada, por que ela nunca permitiu que saísse nota que ela tava comendo A, B ou C. E ela come gente pacaralho! Bethânia é foda! Bethânia fez um livro com os peitos de fora. Imagine! Dona Canô e Seu Zezinho tremeram em Santo Amaro. Na casa dela, lá em São Conrado, de peito de fora. Uma cantora!
“Maria Bethânia nunca se defendeu de nada, por que nunca permitiu que saísse nota que ela tava comendo A, B ou C. E ela come gente pacaralho! Bethânia é foda!”.
.ba – E mesmo assim nunca perdeu o respeito. É quase uma reverência, não é? Na verdade as pessoas têm quase até um medo dela, né?
RS – Ninguém nunca perguntou a ela porque botou os peitos de fora. E ela também nunca disse. Essa mulher é um ser muito especial! E eu tô muito a cavalheiro, porque deve ter uns cinco ou seis anos que eu não encontro com ela, não vejo, não falo. Ela não me procura, eu não procuro ela e tá tudo certo. Agora, as minhas reverências a Bethânia serão eternas.
.ba – E recentemente você descobriu um câncer. Mas também ficou aliviado porque o tratamento não é tão sofrido quanto esperava. Como é que está?
RS – Tô fazendo. Não sei o que vai dar…
.ba – Você ficou com medo?
RS – Pacaralho! Chorei aqui pra cacete! É triste você escutar que você não está diabético, você tem um câncer de próstata. E não pode ser operado porque já tem metástase. As histórias de câncer que eu tenho na família… Eu acabei de perder uma prima, Nadja Turenko, com um câncer brabo. Novinha! Excelente atriz. Eu chorei aqui sozinho, de madrugada. E aí vem aquela pergunta cabotina, descarada: “Por que eu?”. Ora, por que fui escolhido. Não sei. Mas eu perguntei à médica, objetivamente, qual a chance que eu tenho. E ela disse: “Você vai morrer de gripe, mas esse câncer não lhe mata”. Estou apostando nela (risos)!
.ba – Você tem medo de morrer? Você acha que depois da vida tem o quê?
RS – Eu acredito na vida. Que prossegue… Reencarnação, tudo isso… Tenho certeza absoluta. Eu nunca fui lá, não vi, claro, mas meu pai, que já se foi, veio, incorporou e disse que existe. Acabou. Meu pai falou é lei (risos).
“Chorei aqui pra cacete! É triste você escutar que você não está diabético, você tem um câncer de próstata. E não pode ser operado porque já tem metástase”.
.ba – E qual é o seu defeito dessa vida que você acha que na próxima vai corrigir?
RS – Todos (risos). Eu não quero vir um santo, que eu não tenho cara de santo, mas com certeza eu quero vir uma pessoa melhor.
.ba – Algum arrependimento forte? Arrependimentos todos temos, aquela bola que poderia ter sido chutada mais alto para o goleiro não pegar. Mas eu digo um arrependimento assim daqueles que incomodam profundamente, latejam, você tem?
RS – Arrependimento não, mas uma constatação. Eu sempre fui putanheiro. Casei-me muito jovem, com uma pessoa muito especial, mas eu queria mais. E separei e fui casando, casando, casando… fazendo filho… Eu hoje não tenho uma aposentadoria, aos 74 anos de idade. Eu nunca pensei em mim. Eu vivo hoje de esmola. Com toda excelência que dizem que eu sou, eu vivo de esmola. Você não tem vergonha de dizer isso? Eu não. Se eu vivo mesmo de esmola, por que eu vou ter vergonha? Eu poderia dizer tá tudo bem, eu tô maravilhoso, não falta nada… mas falta tudo! Falta tudo!
“Eu nunca pensei em mim. Eu vivo hoje de esmola. Com toda excelência que dizem que eu sou, eu vivo de esmola. Você não tem vergonha de dizer isso? Eu não”.
.ba – Mas sobram lembranças, você quer falar de mais alguma?
RS – Além dos discos dos poetas, tem outra coisa que eu criei junto com o meu amigo Armando Pittigliani, e que tá na história da música brasileira. Ninguém fazia música instrumental no Brasil. E ninguém gravava porque nunca deu dinheiro e nem vai dar. E nós criamos o “MPBC: Música Popular Brasileira Contemporânea”. Conseguimos que a Polygram desse o estúdio, a fita e 20 mil reais, 30 mil reais… nem lembro que moeda era… Fizemos 30 discos! 30! Eu e Armando só fizemos os quatro primeiros, aí a Polygram tomou conta porque alguns vendiam o suficiente pra se pagar. Outros não vendiam nada. Nem o autor comprava (risos)! Mas os quatro primeiros que nós fizemos foram Nivaldo Ornelas, Grupo Índex, Djalma Correa e Orquestra de Nelson Ayres. Se você reparar, nós dividimos Minas, Rio de Janeiro, Bahia e São Paulo. Ou seja, percussão, metais… E aí eu descobri a solidariedade do artista para o artista, do músico para o músico. Mesmo com toda a rivalidade pra saber quem é o melhor baterista, o melhor não-sei-o-que, na hora que um músico precisa de uma coisa, todos ajudam. Nivaldo Ornelas trouxe o Coral Ars Nova para o seu primeiro disco. Deu só o ônibus, que era só o que tinha, sem dinheiro sem nada: “Vocês vão ter que chegar lá, descer, cantar, comer um sanduíche e voltar”. Pois o Coral Ars Nova inteiro saiu de Belo Horizonte ao Rio, cantou três ou quatro músicas no disco e foi embora.
.ba – E o disco da Nara Leão?
RS – É histórico também. Se chama “Os Meus Amigos São Um Barato” [1977]. Tem dois fatos importantíssimos nesse disco. Ela escolheu os 12 amigos. Um desses amigos disse não tinha interesse e tal, então não era tão amigo, ela achava que era. Não vou dar o nome por que o amigo era dela. Eu disse: “Eu tenho um amigo para botar no lugar”. E ela: “Quem é?”. “Nelson Rufino”. Ela disse que não sabia quem é e eu respondi que ela tinha que fazer novos amigos. Nunca tinham sequer se visto. Nara não sabia nem uma música de Nelson Rufino. E morreu sem ouvir os grandes sucessos dele na voz de Zeca Pagodinho. E eu ainda botei-o no disco cantando com ela. O outro fato: eu fui pedir a música que ela mandou, a Chico Buarque. Fui à casa dele, dentro da Floresta da Tijuca. Ele me atendeu gentilmente, expliquei o disco de Nara Leão e tal e ele disse que o problema era que não tinha música, não conseguia compor nada haviam seis meses: “Todo dia eu pego o violão e não sai nada”. Tudo bem. Combinamos que, se saísse alguma música ele me avisaria e que eu ia dizer isso a Nara. Peguei o carro e cortei caminho para já sair perto do Jardim Botânico. Na curva, já para sair lá, dei de frente com o prédio onde morava Sivuca, grande amigo! Fui visitar. “E aí, tá fazendo o que aqui, que milagre é esse?”. Contei que estava na casa de Chico Buarque, que Nara pediu uma música para o disco e ele não tem. Ele, de imediato, disse: “Mas eu tenho”. “Mas ela não lhe pediu. Seu nome não está aqui na lista”. Ele disse: “Mas você pode dar minha música para Chico e ele faz a letra”. “Chico também não me pediu nenhuma música sua para letrar”. Olhe, Sivuca me encheu tanto o saco que eu decidi ligar na presença dele para Chico: se ele desse o ok eu levava a fita com a música lá, se ele dissesse não era não. Liguei para Chico e expliquei a situação. Aí Chico disse: “Sem garantia, que eu não sei se vou gostar da música, e se gostar não sei se vou conseguir fazer a letra, traga”. Dei um prazo de meia-hora. Só aí Sivuca me falou que não tinha fita, ainda tinha que gravar. O piano todo desafinado, como ia gravar? Ele foi lá, pegou a escaleta e tocou a melodia. Gravamos. Levei a Chico. Dois ou três dias depois, toca o telefone e minha mulher atende: “Um cara dizendo que é Chico Buarque”. Atendi e ele disse: “Roberto, você é um homem de sorte, pari uma música aqui. Espremi, espremi e saiu. Quando você pode vir buscar?”. “Tô indo p’raí”. Eu morava no Recreio dos Bandeirantes, a casa dele na Gávea. Bicho, eu tinha um carro potente na época, sentei a bota. Cheguei na casa de Chico acho que não levei nem 15 minutos. Ele ficou surpreso: “Você já tá aqui?”. E eu digo: “Ah, para pegar uma música de Chico Buarque a gente senta a bota” (risos). Me mandou sentar, pegou o violão e começou a cantar a música. E eu pensando: “fodeu, Nara não vai gostar dessa música”. Quando terminou, eu disse: “Puta que pariu! Acho que Nara vai adorar!”. Essas falsidades é que eu não aguento mais (risos). Peguei a música, botei no carro e fui ouvindo, da Gávea até o Recreio. Chegando em casa, minha mulher perguntou pela música, se era boa, eu disse que detestei e botei para ela ouvir. Ela também detestou. Liguei para Nara: “Já estou com a fita de Chico Buarque”. Aquela festa, maravilha! “Você gostou?”. Eu disse que era para ela ouvir. No outro dia levei. Ela aí botou a fita, toda saltitante… Chico, né?! Foi tocando a música e ela descendo no sofá… terminou quase deitada. Aí me disse: “Eu não vou gravar isso não”. E eu: “É a mim que você tá falando? Pegue seu telefone e ligue para seu amigo Chico Buarque e diga a ele”. Ela insistiu que era para eu dizer e eu propus parar a produção do disco ali mesmo, que eu não era menino de recados: “Nós somos amigos. Você gostaria que eu dissesse alguma coisa a você que fulano não fez uma música por que disse que não gosta de você, ou não gosta de sua voz ou de você cantando? Você não iria gostar. Então, não vamos tratar do assunto. Fale você com Chico”. Ela aí disse que deixasse a fita lá que ia ouvir outras vezes para ver se se acostumava. Aí fiz uma cópia e deixei. E também continuei ouvindo. E confesso que, uns dois dias depois, eu já tava… essa música não é tão ruim assim… Aí Nara me liga: “Sabe que eu tô gostando da música do Chico?”. Eu digo: “Ah, que bom!”. “E quem vai fazer o arranjo?”. Expliquei que já tinha tudo arrumado, o arranjo seria de Sivuca, fazendo contrapontos no acordeom. Ela estranhou: “Sivuca fazendo arranjo?”. Eu: “Oh, Nara, você gosta de Miriam Makeba?”. “Adoro!”. “Pois todos os arranjos são de Sivuca, inclusive o ‘Pata Pata’”. Bom, marcamos a gravação. Ela cantou, Chico cantou, Sivuca fez o contraponto na sanfona, cantando junto com a sanfona, as notas que ele dava no beiço ele dava nela… Ok, obrigado, agora o trabalho é meu. Comecei naquele mesmo dia a mixar. Só tava faltando uma faixa, “Fotografia”, com Tom Jobim, que chegou quase um mês depois, bêbado, às seis da tarde, e tinha que estar às oito horas em outro bar para continuar bebendo… Ele gravou e deixou o buraco para Nara gravar. Eu botei como última faixa, no lado C do disco, se é que existe (risos)! Eu disse: “Esse é teu amigo? Estamos há três meses fazendo esse disco e ele chega no último dia, bêbado, grava e vai embora…”. Ela: “Roberto, é Tom Jobim, eu não posso deixar de gravar”. “Grave, agora a montagem do disco é minha”. Tinha “Odara”, de Caetano, tinha “Meu ego”, de Roberto e Erasmo. Eu peguei essas músicas e botei para abrir. Peguei a música de Chico e botei, sei lá, faixa três do lado B, meio escondida. Lançamos! Tocava no Rio de Janeiro pacaralho: “Odara” e “Meu ego”. As vendas: cinco discos aqui, três ali… Fodeu! Aí começaram a chegar os números de São Paulo: 1,5 mil discos, 3 mil discos, 4 mil discos… Enlouqueceram?! Aí conversando com Heleno, ele me disse: “Por que você não vai a São Paulo ver o que está acontecendo?”. Fui. Chegando lá fui direto para a sede da Polygram. Pedi uma reunião com toda a turma de divulgação, vendas… Perguntaram sobre o que era. Eu disse: “Sobre o disco da Nara. Nós estamos meio putos lá no Rio. Tô aqui por que Heleno me pediu para vir”. Eles morriam de medo de Heleno. Aí cheguei e a turma estava tremendo. Perguntaram o que era que eu desejava saber. Eu digo: “Nara Leão, o que é que está havendo? Que música é que tá tocando aqui?”. Aí explicaram que o disco foi distribuído com o ‘X’ em “Meu ego” e “Odara”, só que a rádio que era primeiro lugar em São Paulo, a Jovem Pan, o dono e a mulher dele adoravam Nara Leão e levaram o disco para casa e escolheram uma faixa, e que a rádio deles estava tocando 10 vezes por dia. E as outras rádios copiando, por que sempre copiaram a Jovem Pan. Então, São Paulo estava tocando a faixa de Chico Buarque. Eu pensei: “Que música filha da puta!”.
.ba – “João e Maria”?
RS – [cantando] “Agora eu era o herói e meu cavalo só falava inglês…”. Agora, pare e pense: estamos sentados aqui, você nunca ouviu, eu começo a cantar… o violão mal tocado, que Chico tocava… toca mal até hoje, e você ouvir “agora eu era o herói e meu cavalo só falava inglês, a noiva do cowboy…”. Que cowboy? Que cavalo? E você tem que dizer: “Ah, Nara vai adorar!”.
.ba – Mas essa música é muito bonita!
RS – Hoje! Hoje é fácil (risos). Isso nós devemos a Tutinha, que é dono da Jovem Pan até hoje. Aí eu votei pro Rio e no outro dia liguei para Heleno e pedi para mandar um telex para a moçada virar a faixa para “João e Maria”. Ele disse: “Você é louco?”. E eu: “É o que tá acontecendo em São Paulo. São mais de 100 execuções em São Paulo, entre AM e FM”. Aí ele botou a menina do telex para fazer hora extra até uma hora da manhã. E começou, aos borbotões, vendeu pacaralho! Então virou essa coisa do Midas – de Alcione que replicou em Nara, em Emílio… Tudo que esse cara pega vira ouro! E não era bem assim. Fiz um puta disco com MPB-4, com texto de Millôr Fernandes, e não aconteceu nada. Vendeu 10 mil, oito mil discos.
.ba – Obrigado Roberto.
RS – Obrigado a você.
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