Publicado em 27/06/2024 às 09h57.

O direito à saúde no sistema dos Juizados Especiais

André Elbachá alerta para prejuízos à cidadãos e advogados

Redação
Foto: Divulgação

 

Artigo de André Elbachá*

Nos últimos anos, as demandas judiciais dos usuários dos sistemas de saúde pública e suplementar, objetivando a cobertura de tratamentos, procedimentos e medicamentos, cresceu de forma vertiginosa. A esse fato, podem ser atribuídos inúmeros motivos, tais como a falta de clareza ou a abusividade das cláusulas contratuais dos planos de saúde, a negativa de cobertura de procedimentos médicos e hospitalares, geralmente por motivos meramente financeiros, a insuficiência da rede pública de saúde, a demora para regulamentação e aprovação de técnicas, aparelhos e medicamentos por órgãos como ANVISA e ANS e a necessidade de tratamentos de alto custo.

Para a população, em geral, que precisa buscar no Poder Judiciário o amparo para tratar adequadamente questões relativas à saúde, o caminho mais utilizado é pelo procedimento dos Juizados Especiais, que foram instituídos pelas Leis 9.099/1995, 10.259/2001 e 12.153/2009. Em todas essas Leis, o intuito maior sempre foi, justamente, abranger as camadas mais desamparadas da sociedade, dando-lhes um acesso mais ágil, mais simples e menos burocrático, com decisões baseadas em equidade.

Para os advogados, em especial para a Jovem Advocacia, o sistema dos juizados especiais representa a “porta de entrada” para a atuação profissional. Essa significativa parte da sociedade e da advocacia, que demanda perante o sistema dos juizados especiais, nos últimos meses vem encontrando grandes dificuldades de manejar os seus pleitos de cobertura assistencial à saúde, em especial perante a Justiça Estadual, em razão de um equivocado, salvo melhor juízo, entendimento de que a competência para processamento de tais demandas deveria observar se o custo total do tratamento pleiteado excederia o limite de 40 (quarenta) ou de 60 (sessenta) salários mínimos para as causas contra operadoras de planos de saúde e contra a fazenda pública, respectivamente.

Esse entendimento decorreu da aprovação do enunciado n° 56 do Colégio de Magistrado dos Juizados Especiais da Bahia. Fala-se em equívoco, com a devida vênia, porquanto o pleito de cobertura assistencial, em regra, não tem natureza indenizatória, mas consiste, em sua essência, em obrigação de fazer, ainda que o seu cumprimento tenha um custo para ser implementado.

Esse custo, entretanto, é algo negociado diretamente entre o Poder Público, nos casos do SUS, as operadoras e os fabricantes e prestadores de serviços médicos, o que é inerente à própria atividade dos atores que prestam esse tipo de serviço. Em sendo uma obrigação de fazer, o entendimento predominante sempre foi de que não há limitação de alçada para atuação perante o sistema dos juizados especiais, salvo as situações excepcionais que exijam perícia complexa.

Então, para esse tipo de demanda judicial, no máximo, o valor econômico que estaria em jogo seria o valor das mensalidades do plano de saúde, que, exceto raríssimas exceções, escaparia do limite financeiro da competência dos Juizado Especiais.

O enunciado mencionado, apesar de não possuir vinculação obrigatória e automática, vem servindo de grande inspiração para que considerável parte dos magistrados dos juizados especiais em todo o estado passe a ter um motivo para, com apenas uma decisão judicial, extinguir a ação sem resolução do mérito, eliminando, assim, mais um processo do seu acervo em um curtíssimo espaço de tempo.
É sabido, de fato, que os juizados especiais estão assoberbados de processos, mas acredita-se que a aplicação do entendimento esposado no enunciado nº 56 não seja o melhor caminho para enfrentar esse problema.

Explica-se. Sob um primeiro aspecto, a limitação do custo do tratamento destoa do princípio fundamental do acesso à Justiça e da inafastabilidade da prestação jurisdicional. Por outro lado, a consequência lógica da aplicação desse entendimento está provocando um efeito ainda pior, pois direciona aquelas demandas que são simples, menos complexas e de rápida duração para tramitação perante as Varas da Justiça Comum, gerando um efeito muito oneroso, demorado, complexo e injustificado, tanto para as partes, como para a Advocacia e também para o Poder Judiciário.

Registre-se ainda que a verificação de competência com base no enunciado nº 56 traz para a parte autora da ação um ônus desarrazoado que não é seu: o de ter que fazer cotação de preço de um serviço, que em sua origem somente é negociado entre o prestador do tratamento e a operadora ou o poder público.

O paciente, via de regra, está adoecido e vulnerável, precisando de tratamento imediato, além de ser parte hipossuficiente, tanto em relação ao poder público, como também perante as operadoras de planos de saúde. É também muito comum que os estabelecimentos médicos e profissionais de saúde, a pretexto de uma estratégia comercial de não exposição de preços, se recusem a divulgar documentalmente a terceiros estranhos ao contrato de credenciamento os preços praticados com determinada operadora de plano de saúde, sob o risco de serem pressionados pelas demais a reduzir o respectivo valor de tabela.

Assim, uma boa medida para reduzir a judicialização da saúde seria o Poder Judiciário passar a proferir decisões cada vez mais firmes, assegurando as coberturas comprovadamente necessárias, com meios e penalidades mais rigorosas para garantir o efetivo cumprimento dessas medidas. A partir do momento em que o ente público ou privado, responsável por assegurar essas coberturas assistenciais, passar a ter um tratamento mais rígido, possivelmente mudará suas posturas perante os seus usuários até mesmo de forma administrativa, reduzindo significativamente a necessidade de judicialização.
Felizmente, no início do mês de maio desse ano, a Exma. Sra. Desembargadora Presidente da Turma de Uniformização de Jurisprudência do Estado da Bahia, reconheceu fundamentadamente a existência de divergência de entendimento entre os Magistrados do Sistema dos Juizados e concedeu decisão liminar suspendendo a aplicabilidade do enunciado nº 56, até o julgamento do mérito daquele incidente de uniformização, momento em que a advocacia e a sociedade esperam a revogação desse enunciado de forma definitiva.

E a OAB/BA, como está atuando no caso? A advocacia perdeu forças e precisa se reerguer. Mesmo diante de todos os efeitos danosos que a aplicação do referido enunciado está causando à sociedade e à advocacia, a nossa OAB/BA mantém-se totalmente inerte, atuando com uma passividade idiossincrática, como mera expectadora em um momento no qual verdadeiramente poderia ser protagonista e fazer história.

Nossa Seccional possui comissões que tratam de temas intimamente ligados a essa situação, dentre elas a Comissão dos Juizados Especiais, a de Acesso à Justiça e a de Direito Médico e Saúde. Os presidentes dessas comissões e os membros da diretoria da OAB, até o momento, não praticaram qualquer ato visando coibir a prevalência desse danoso enunciado, seja através de intervenção nos autos do incidente, seja por nota oficial da instituição ou por provocação formal ao Tribunal de Justiça. Não há sequer uma “nota de rodapé”.

A crítica é pertinente, razão pela qual é salutar instar a nossa instituição a agir com brevidade, pois não é demais lembrar que seu múnus é defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado Democrático de Direito e os direitos humanos, além de promover a representação e defesa dos advogados. Desta forma, espera-se que a uniformização da jurisprudência e a ação efetiva da OAB/BA defendendo, a um só tempo, a sociedade e os interesses da advocacia, possam restaurar em definitivo a competência dos Juizados Especiais para tratar essas demandas, garantindo o pleno acesso à saúde e à Justiça de forma mais equitativa.

*André Elbachá é advogado especialista em Direito à Saúde e sócio da Advocacia Mendonça e Elbachá.

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