Salvador mergulha de cabeça na onda crespa
Movimento estético e político de valorização do cabelo natural alcança seu ponto alto neste sábado (7) em Marcha no Campo Grande
Basta uma toalha para maquiar a realidade. O comprimento e o aspecto sedoso representam os cabelos longos, lisos e, é claro, “bons” das mulheres brancas da televisão e do cinema. No interior das casas baianas, a toalha brindava a milhares de meninas negras, talvez, o maior prazer delas com seus próprios cabelos crespos. A prática que durante muito tempo foi costumeira, atualmente faz parte do mesmo passado em que músicas como Nega do Cabelo Duro, de David Nasser e Rubens Soares, e Fricote, de Luiz Caldas, embalavam euforicamente a população baiana, sem filtros e sem reservas na desconstrução da identidade estética das mulheres negras.
Hoje, o ato de assumir os cabelos naturais faz parte de uma extensa onda de densas ventanias, onde a toalha não passa de um utensílio restrito ao banheiro. A prova disso é a realização da primeira Marcha do Empoderamento Crespo na Bahia, que ocorre neste sábado (7), a partir das 14h, no bairro do Campo Grande, centro de Salvador. Só no Facebook, são 1,6 mil pessoas confirmadas para o evento e quase 12 mil pessoas participantes do grupo de discussão.
Mais do que aglutinar pessoas, ideias e experiências, o movimento estético e político de valorização da beleza e autoestima da mulher negra vem arruinando o sistema preconceituoso e racista da indústria cosmética brasileira e da ditadura do padrão global de beleza. “Afirmar o cabelo crespo é também uma forma de tornar o corpo negro inviolável. Todas as violências que acontecem com o corpo negro é porque ele não é respeitado. O racismo antes de matar fisicamente, mata simbolicamente”, destaca Andrea Souza, da comissão organizadora da Marcha.
No caso dos cabelos crespos, a violência começa de maneira simbólica e culmina na física. Durante quinze anos, a estudante de marketing Nil Santana, 27, fez 48 relaxamentos e mais de duas mil chapinhas antes de assumir seu cabelo natural. A agressão física começou ainda criança e foi indiretamente motivada pelos pais que julgavam que a melhor forma de proteger Nil do racismo era obedecendo os padrões de beleza. “Quando eu completei 25 anos, eu percebi que o meu cabelo não combinava com as minhas ideias. Eu passei mais da metade da minha vida vendo no espelho, uma pessoa que eu não conhecia, porque eu nunca tinha visto o meu cabelo da forma como ele realmente é”, conta a jovem.
Desde 2012, Nil vem passando por um processo que é conhecido como transição capilar. Trata-se de um método no qual as mulheres de cabelo crespo que fizeram tratamentos químicos com o desejo de ter os cabelos lisos, hoje buscam recuperar seu cabelo natural. A transformação estética tem diversas técnicas e tempos, uma delas é através do big chop (ou grande corte), que tira praticamente pela raiz o alisamento ou o corte em etapas até que o fio do cabelo esteja completamente natural.
Libertação – Aceitar a mudança transpassa o desejo íntimo de quem a faz, uma vez que as resistências contra o cabelo naturalmente crespo continuam enraizadas nas relações cotidianas. “Eu sempre tive vontade de ter um cabelo black, mas me negava a assumi-lo. Eu imaginava que as pessoas iriam rir, fazer piadas de mau gosto, coisas que ouvimos diariamente pelas ruas. Sem contar a falta de apoio na minha família, meu pai tinha o pensamento de que cabelo bonito é cabelo cortado”, revela Sassá Dias, que há um ano e cinco meses assumiu o black e, hoje, é referência estética e política para os jovens do seu bairro.
Embora muitos homens e mulheres negras tenham feito suas cabeças, no sentido físico e espiritual, a estrutura racial brasileira ainda cria tetos para o cérebro de cabelos oprimidos. A escritora estadunidense, Alice Walker, no texto “Cabelo oprimido é um teto para o cérebro” reflete acertadamente sobre as aflições que o cabelo constrangido gerou em sua vida durante quarenta anos e as alegrias que ele (o cabelo) lhe proporcionou. “Finalmente descobri exatamente o que o cabelo queria: queria crescer, ser ele mesmo, atrair poeira, se esse era seu destino, mas queria ser deixado em paz por todos, incluindo eu mesma, os que não o amavam como ele era”.
Para Naira Gomes, antropóloga que estuda a estética/cabelo das mulheres negras, a afirmação dos cabelos naturais representa um grande saldo político que é o de “descontruir de forma dolorosa e libertadora conceitos, modos de se pensar e pensar o mundo; descontruir o que foi forjado contra nós e reconstruir a nosso favor; retirando sobre o cabelo crespo o estigma da feiura, da sujeira, da pobreza”.
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