Blade Runner 2049 é muito mais do que o thriller de ação prometido
A continuação do clássico de 1982, estrelado por Harrison Ford, estreia em Salvador nesta quinta-feira (5). Confira a resenha
Blade Runner teve uma recepção fraca – tanto de público quanto da crítica – quando foi lançado em 1982. O status de cult veio bem depois, com direito a sete diferentes versões do mesmo filme lançadas pelo inconstante e nunca satisfeito Ridley Scott. A situação é completamente diferente, 35 anos a frente, com Blade Runner 2049, que já estreou como clássico. E, por sorte do público, o filme consegue fazer jus à reputação dada às cegas.
Boa parte do mérito vem do êxito da equipe de publicidade e marketing do longa que conseguiu manter o bico fechado sobre a trama.Todos os detalhes mais importantes ficaram escondidos nas artes e trailers divulgados, que dão a entender que a obra é só mais mais um remake em tons de laranja estrelado por Harrison Ford. Ele é muito – mas muito – superior a isso.
A história começa 30 anos depois do original. Em um universo que se expande além da já conhecida Los Angeles distópica, somos apresentados ao protagonista da vez, o consistente Ryan Gosling, que interpreta K., um caçador de androides ultrapassados. Em uma rotina solitária, ele divide apartamento com sua namorada virtual, a Joi. Diferentemente do sistema operacional interpretado por Scarlet Johansson em Her (2013), a personagem da modelo cubana Ana de Armas tem formas – ela é praticamente um holograma – e age sob a vontade do usuário. Como o próprio slogan do produto diz: “ela pensa o que você quer, ela fala o que você quer”.
Assim como Rachel (Sean Young) e Deckard (Harrison Ford), K. é uma personagem complexa, com diversas camadas e sentimentos conflitantes. Ele carrega em si todo a questão filosófica que o livro de Philip K. Dick traz, sobre a contínua indagação metafísica sobre humanos e humanoides – que vai muito além da pergunta que dá título ao romance que o inspirou: “Androides sonham com ovelhas elétricas? ”. Agora temos uma noção de que, longe de serem simples robôs ou inteligências artificiais, os replicantes são humanos sintéticos. Ou seja, seriam eles mais humanos do que os próprios humanos?
Jared Leto – que, mais uma vez, falou mais antes de o filme ser lançado do que no longa em si – surge como Niander Wallace, o comprador da Tyrell Corporation, originalmente responsável pela criação dos replicantes. Agora, os androides sofreram melhoramentos e assumem trabalhos como “prestadores de serviço” em uma Terra irreconhecível e nas suas colônias espaciais que também não estão em suas melhores condições. Como todos os personagens de Leto, caracterização é o que não falta: cegueira, fala pausada, figurino de clara inspiração oriental e discursinhos inspirados. A única coisa que não apareceu, em meio a tanta paramentação, foi a motivação de Wallace. Mas ok, a culpa, desta vez, não é do vocalista da 30 Seconds to Mars.
Suposto vilão da nova roupagem, Leto é completamente ofuscado por Sylvia Hoeks, que aparece como seu braço direito Luv. A atriz, que é dos Países Baixos e passou longe dos filmes blockbusters até agora, também consegue ser mais interessante do que a personagem de Robin Wright que, por incrível que pareça, faz menos aqui, com mais tempo em tela, do que fez em sua participação pífia, mas inesquecível em Mulher Maravilha (2017). Além delas, vale ressaltar as agradáveis aparições de Barkhad Abdi, indicado ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante por Capitão Philips (2016), e de Mackenzie Davis, do episódio San Junipero de Black Mirror (2016).
A Bíblia está com tudo em Hollywood. Depois de mother! (2017) do Aronofsky construir uma alegoria bíblica de tirar o fôlego, Blade Runner 2049 também faz referência ao texto, principalmente nos monólogos de Jared Leto. Aos mais atentos à obra, dicas como as menções da mulher de Jacó, Raquel, que era infértil e recebeu de Deus a dádiva de ser mãe de gêmeos antes de morrer por complicações do parto, e sobre a criação dos seres humanos pelo barro podem dar dicas do que virá na óbvia continuação.
Diferentemente do primeiro que é mais sutil em suas reviravoltas e deixa sob alçada do público a resolução de algumas pontas soltas, este se pauta nas revelações. Alguns diálogos extraexpositivos e com pouco ritmo enfraquecem o roteiro fiel de Hampton Fancher – que também assina o original – e Michael Green (de Alien: Covenant). Nada que a fotografia do “esquecido no churrasco” Roger Deakkins não compense. Indicado e esnobado 13 vezes pela Academia, o diretor de fotografia consegue ser bem-sucedido nos inúmeros ambientes que aparecem, desde os externos, com o apartamento minúsculo e bem explorado de K. e o interior futurista das instalações da empresa de Wallace, quanto na sujismunda Los Angeles e em uma Las Vegas que parece viver sob uma constante tempestade de areia.
Mérito deste visual impecável é, também, de uma direção esplendorosa. Sejamos justos: Dennis Villeneuve conseguiu. Responsável pelos os excelentes Sicario (2015) e A Chegada (2016), o franco-canadense se consagra como o grande diretor de ficção do novo milênio. Cada frame de seu reino chuvoso e banhado a neon é uma fotografia e ele se dá conta disso, já que prolonga seus takes pelos espaços milimetricamente calculados e enquadrados. E, se o primeiro filme é taxado como narrativamente lento, sua continuação anda a passos de tartaruga: Blade Runner 2049 é uma película de atmosfera a ser contemplada – nada próximo do thriller de ação que alguns teasers sugeriram que ele seria.
Filme para ver no cinema, como qualquer obra que tem a trilha sonora assinada por Benjamin Wallfisch e Hans Zimmer, em todos os seus três atos, a obra se estabelece como uma gigante do gênero. Tal qual o origami que aparece nos dois longas, Blade Runner 2049 consegue, sem “cortar ou colar”, manter e atualizar, sem perdas, o ar noir e futurista que o consagrou. Sobre neon e noir leia também a crítica de João Gabriel Veiga no Cinegrama.
Blade Runner 2049 estreia em Salvador nesta quinta-feira (5). Confira o trailer:
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