Publicado em 28/10/2016 às 14h20.

Crise do Ilê inclui salários atrasados e débitos de água e energia

Bahia.ba visita sede do bloco, Vovô faz raio-x dramático da situação, que ameaça até o carnaval, e volta a criticar investidores: ‘Eles são capitalistas, mas antes são racistas’

James Martins
Foto: James Martins/ bahia.ba
Foto: James Martins/ bahia.ba

 

O Ilê Aiyê, uma das mais importantes entidades carnavalescas e de combate ao racismo no país, o primeiro bloco afro, vive um momento difícil, que pode ser constatado pelo bahia.ba, em visita à sede da instituição, nesta sexta-feira (28). A crise, como noticiamos nesta quinta (27), vai impossibilitar até mesmo o tradicional cortejo de aniversário da agremiação, que completa 42 anos no dia 1° de novembro. Mas, segundo o presidente e fundador do bloco, Antônio Carlos Vovô, esse ainda não é o maior problema. O Ilê está há três meses sem pagar os funcionários, mesmo período em que a Banda Erê (o braço infantil do bloco) também suspendeu as atividades. Além disso, contas de água e energia se acumulam e a sede do “mais belo dos belos” corre o risco de ter os fornecimentos cortados.

Abrigada na Senzala do Barro Preto, a Escola Mãe Hilda, de educação infantil, mantida pelo bloco, também passa por dificuldades. “A situação de bloco afro é sempre complicada. Nosso patrocínio é sempre menor que o de outras entidades carnavalescas. É como diz a música: ‘negro sempre é vilão’. Os caras pensam que qualquer dinheiro nas mãos do negro é pra fazer farra… não levam em consideração o trabalho desenvolvido por nós”, desabafa Vovô.

Sem querer citar marcas, o presidente confirma que, com a crise, o valor dos patrocínios caiu. E o poder público também não tem cooperado como deveria. Há oito meses foi publicada, no Diário Oficial do Estado, uma parceria entre o Ilê Aiyê e a Secretaria de Justiça, para prestações de serviço, palestras e oficinas em bairros periféricos. Seria um alento. Porém, a publicação ainda não se materializou em ação.

Já a Bahiatursa, sob alegação de falta de verbas, é outra porta por ora fechada. “O potencial turístico do Ilê é ignorado. Antigamente, a cultura negra só era representada internacionalmente pela capoeira ou então pelas escolas de samba do Rio de Janeiro. E no começo das viagens dos blocos afro, o Olodum e o Ilê principalmente, isso começou a mudar. Hoje o Ilê tem núcleos espalhados pela Europa e Estados Unidos; o que atrai divisas para o estado, visitantes etc. Se a Bahia investisse mais nesse tipo de segmento, as coisas aconteceriam com muito mais facilidade”, argumenta Vovô.

No entanto, ele não conta apenas com os poderes públicos e empresariais para que o bloco possa se manter sem percalços. O apelo maior é dirigido à própria comunidade negra, amigos e fãs do Ilê. “Nosso maior patrocinador potencial somos nós mesmos. Estamos fazendo uma campanha agora no Benfeitoria [site de financiamento coletivo, crowdfunding] e esperamos contar com a ajuda de todos. Mas, mais do que isso, nós negros precisamos aprender a comprar de nós mesmos. O cara paga fortunas para ir ao Festival de Verão, por exemplo, se organiza, divide no cartão etc. Já aqui reclama achando que tudo é caro”, diz.

Vovô ainda complementa, enfaticamente, o raciocínio: “Você não faz questão de comprar várias marcas internacionais? Aqui também tem uma marca, uma boutique, temos bolsas, camisas, tecidos… Os gringos compram, mas os baianos não. O Ilê ganhou o Prêmio da Música e ninguém quer comprar um CD, um DVD. Então, se a gente não mudar de mentalidade e conseguir fazer com que a moeda circule entre nós, não adianta reclamar dos governantes brancos. Se eu vou ao restaurante aqui em frente, eu pago. Então, se ele vier aqui também tem que pagar o ingresso, não é?”.

Os produtos da loja do Ilê, localizada na Rua das Laranjeiras, 16 (Centro Histórico), são realmente uma excelente opção de presente para baianos e turistas. Um corte de tecido com a identidade visual do bloco custa R$ 40. Uma camiseta R$ 50. Um DVD, R$ 30.

Foto: James Martins/ bahia.ba
Foto: Divulgação

 

Perguntado sobre a possibilidade de se apresentar no Réveillon de Salvador, promovido pela prefeitura e com alguns cachês já anunciados (O Rappa, por exemplo, receberá R$ 300 mil), Vovô assinala positivamente: “Já até mandamos a proposta e estamos aguardando. Inclusive, quando tocamos no Réveillon eles viram que atraímos muita gente. Espero que nos convidem de novo”. Fica a dica! Porém, para o carnavalesco, nem tudo se resume à mera questão financeira ou à crise. Racismo ainda é uma palavra muito presente nesse tipo de relação, mesmo em áreas como das artes e entretenimento, onde a presença do negro é maciça.

Sobre a questão das cervejarias, por exemplo, ele diz que não entende a falta de um investimento maior, senão explicado pelo viés racial. “Hoje mesmo é dia do funcionário público. Onde você for, a negradinha tá toda tomando cerveja, em qualquer lugar. Se bater uma palma, tá tomando cerveja. E os pesquisadores [das agências publicitárias] não veem isso? Não veem que o público alvo da cervejaria é a população menos favorecida, majoritariamente negra, que toma mais cerveja? Mas você não vê eles fazerem um investimento pesado”. A conclusão pode surpreender, mas, ao mesmo tempo iluminar: “Eu sempre digo isso: os caras são capitalistas, mas antes eles são racistas”.

O tema do Ilê Aiyê para o carnaval 2017 já está escolhido “Os Povos Ewé/Fon – A Influência dos Povos Jeje Para os Afrodescendentes”. As apostilas também já estão confeccionadas. Contudo, não será fácil botar o bloco na rua. “Estamos nos movimentando em busca de novos parceiros, inclusive internacionais, da África, de São Paulo etc., e, claro, o governo da Bahia e a prefeitura, que também vamos procurar para garantir. O Ilê é um dos poucos afro que vende fantasia, mas, ainda assim, um carnaval é muito gasto, muito complicado. Com fé em Deus e nos orixás tudo vai dar certo”, finaliza.

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