Publicado em 22/09/2025 às 06h00.

Comunidade ‘socialista’ na Bahia foi dizimada pelo governo brasileiro há 128 anos

Em 22 de setembro de 1897 morreu Antônio Conselheiro, líder de Canudos

Raquel Franco
Única fotografia de Antônio Conselheiro foi feita pelo Exército brasileiro duas semanas depois da sua morte. Foto: Flávio de Barros/Exército Brasileiro

 

Há 128 anos, em 22 de setembro de 1897, morreu Antônio Conselheiro. O peregrino foi líder comunitário de Belo Monte, no interior da Bahia, cidade fundada por ele e atual Canudos. Não andava sozinho. Junto com ex-escravizados, indígenas, camponeses, percorreu caminhos entre o Ceará, Sergipe e Bahia em busca da construção de um mundo mais solidário, com fé e partilha.

Antônio Vicente Mendes Maciel nasceu no dia 13 de março de 1830 em Quixeramobim, no Ceará. Aos quatro anos ficou órfão da mãe, conviveu com um pai alcoólatra e uma madrasta violenta. Conselheiro era letrado, aprendeu latim e chegou a exercer algumas profissões. Foi auxiliar de professor, comerciante e advogado. Se casou com Brasilina, com quem teve filhos. Ao descobrir que a esposa o traía, se divorciou e mudou de cidade. 

Depois de procurar abrigo nos sertões dos cariris, iniciou sua jornada de peregrinação. Homem simples vestido sempre com camisolão azul, Conselheiro anunciava ao povo o chamado de Deus para uma vida mais humana e digna. Ele pregava que todos deveriam ter direito à água, comida e terra.

Conselheiro começou sua trajetória de líder religioso como beato, tirava rezas e arrecadava dinheiro para a igreja. Sabia latim, idioma oficial da igreja católica, mas pregava em português, língua que seus seguidores entendiam. Por onde passou, Conselheiro construiu igrejas, capelas, monumentos e cemitérios em parceria com a igreja católica, além de fazer milagres. 

Era reconhecido como uma figura santa, enviado de Deus para socorrer os mais pobres, que viviam em miséria. Ele também recebeu os nomes de Santo Antônio dos Mares, Santo Antônio Aparecido, Santo Conselheiro, Bom Jesus Conselheiro e Nosso Bom Jesus. Fundou Belo Monte em 1893, cidade que cresceu rapidamente e chegou a ser a segunda maior da Bahia, com 25 mil habitantes. Lá eram bem-vindos todos que procuravam abrigo, trabalho e comida.

O sucesso de Belo Monte e os discursos de Conselheiro pela justiça social começaram a incomodar latifundiários, a igreja católica e o Exército brasileiro. Interesses políticos e territoriais incitaram o início da perseguição contra aquele povo. “O maior equívoco da história nacional”, afirmou o historiador José Calazans, professor emérito da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e membro da Academia de Letras da Bahia (ALB).

Autoridades políticas e latifundiárias ordenaram a ida de expedições militares da República até a comunidade, acusando Conselheiro de querer restaurar o regime monárquico. Os conselheiristas resistiram a três ataques, mas sofreram um genocídio quando o Exército enviou tropas fortemente armadas, inclusive com canhões. Em outubro de 1897 o massacre matou mais de 20 mil pessoas e Belo Monte foi incendiado. 

O historiador canudense João Batista da Silva Lima, 39 anos, é descendente de conselheiristas e tem orgulho de ter a figura de Antônio Conselheiro como um dos heróis da pátria. Antônio Vicente Mendes Maciel está inscrito no “Livro de Heróis e Heroínas da Pátria”, obra formada por páginas de aço que reúne protagonistas da liberdade e democracia na história do Brasil. 

O reconhecimento de Conselheiro com título de herói só veio em 2019. Figura controversa, ele ainda é retratado como fanático religioso e político e é acusado de ser monarquista, como em “Os Sertões”, livro mundialmente conhecido de Euclides da Cunha. Batista não concorda com essa alegação e diz que, entre os pesquisadores, não há consenso. “Antônio Conselheiro sem dúvida era anti republicano”, diz o professor. Segundo ele,  essa foi uma narrativa criada para justificar o massacre contra o povo de Canudos. “Ele foi vítima de um jogo de poderes”, afirma. 

 

 

Memória de Antônio Conselheiro

Segundo o professor Batista, a primeira canudos foi destruída pelo fogo. A segunda, que ressurgiu das cinzas de Belo Monte de Antônio Conselheiro, foi destruída pelo açude do Cocorobó, projeto aprovado por Getúlio Vargas, que inundou Canudos em 1969. 

“Essa terceira Canudos em que eu vivo nasce das águas”, diz Batista. A cidade foi emancipada em 25 de fevereiro de 1985. Para ele, os moradores têm a esperança de que os canudenses possam viver com dignidade e liberdade. O Instituto Popular Memorial de Canudos é responsável por preservar a memória do Conselheiro e realizar a Romaria de Canudos. Neste ano, ela acontece de 24 a 26 de outubro e tem como lema “Nos passos de Antônio Conselheiro, somos peregrinos/as de esperança.”

A Casa de Antônio Conselheiro fica na cidade natal do peregrino, em Quixeramobim. Pedro Igor, 33 anos, é natural da cidade e gestor cultural do espaço. Para ele, o Estado brasileiro ainda deve um pedido de desculpas formal pelo massacre de Belo Monte. “Antônio Conselheiro monarquista foi uma das primeiras fake news que existiram”, diz. Ele também acredita que esse discurso foi usado como justificativa para a matança. “Se estivesse vivo hoje, Conselheiro seria contra a anistia e regimes autoritários”, diz.  

Igor entregou ao governador Jerônimo Rodrigues (PT) nesta quarta-feira (17) um projeto de patrimonialização dos caminhos de Antônio Conselheiro entre Quixeramobim (CE) e Canudos (BA), especialmente nos locais onde ele construiu capelas e cemitérios. A proposta prevê o tombamento dos bens materiais e o estímulo cultural nos territórios em que Conselheiro passou.

Alan dos Santos Souza, 28 anos, agricultor e estudante de agroecologia na Universidade Estadual do Estado da Bahia (UNEB), acredita que o projeto é essencial para manter o legado de Antônio Conselheiro e a história de Canudos viva. “A história não morre nunca. O reconhecimento do caminho de Conselheiro é importante porque essa história não vai se perder”, afirma. 

Ele é um dos líderes do Coletivo de Jovens CUC – Canudos, Uauá e Curaçá, coletivo que funciona inspirado no modelo de organização de Antônio Conselheiro. “A gente leva adiante esse legado de história do Conselheiro e dos conselheiristas, fazendo uma relação direta com os dias atuais”. Santos acredita que Conselheiro é inspiração para movimentos sociais, como o de reforma agrária e luta por moradia. 

“Nêgo Bispo vai nos dizer que várias lutas sociais confluenciam”, diz o professor Batista antes de finalizar a entrevista recitando poesia do ativista.

Fogo! … Queimaram Palmares, nasceu Canudos

Fogo!… Queimaram Canudos, 

Nasceu Caldeirões.

Fogo!… Queimaram Caldeirões,

Nasceu Pau de Colher.

Fogo!… Queimaram Pau de Colher…

E nasceram, e nasceram tantas outras comunidades que os vão cansar se continuarem queimando.

Porque mesmo que queimam a escrita,

Não queimarão a oralidade.

Mesmo que queimem os símbolos,

Não queimarão os significados.

Mesmo queimando o nosso povo

Não queimarão a ancestralidade.

Poesia de Antônio Bispo dos Santos, conhecido como Nêgo Bispo.

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